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Anis, o Companheiro
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Rouhulláh Mehrabkhani : Anis, o Companheiro
Rouhulláh Mehrabkhani
Anís, o Companheiro
Uma história de amor
Título em espanhol: Zunúzí, una história de amor
Editora Bahá'í do Brasil
Tradução: Ceres Araújo
Revisão: Laila Coltro

"Esta história, que fez ressoar os sete céus, ao pobre de espírito se apresenta sem importância."

Háfiz

Dedicado aos valorosos mártires da Idade Formativa da Dispensação Bahá'í, que revivificaram as intrépidas epopéias da Idade Heróica e que, graças ao seu sangue derramado, imbuíram de uma nova vida a comunidade dos seguidores do Mais Grande Nome.

Esta primeira edição em português foi possível graças ao apoio recebido em nome do irmão Rodrigo, Octávio e Tallieh Nikobin Fanelli, dedicado aos jovens Bahá'ís do Brasil.

PREFÁCIO

O livro que está em suas mãos é obra da poderosa pena do Sr. Rouhulláh Mehrabkhani, que até a presente data tem colaborado com várias obras de grande valor à comunidade mundial da Causa de Deus...

Em uma de suas viagens, durante a peregrinação ao Sagrado Santuário do Báb, imerso em meditação sobre a vida de Anís e sob a influência de ternos sentimentos, deu início à tarefa de escrever sobre sua vida. O autor encontrou novas informações sobre Anís, que constituem um adorno para esta obra e uma excelente apresentação deste inestimável mártir.

É evidente que no processo de redação deste relato o autor esteve envolto em sublimes emoções; contudo não permitiu que a narração desta enorme epopéia se precipitasse em emoções e sentimentos pessoais, turvando a imaculada torrente de verdades históricas com seus sentimentos mais íntimos.

Sem dúvida, este relato despertará o zelo e o entusiasmo em todos os jovens atentos e dotados de fé. E se eles estudarem diligentemente a ternura de tais acontecimentos, compreenderão certamente que o único fruto de nossa vivência física é a servitude oferecida no sagrado jardim do divino Criador e que todos os demais desejos, ânsias e caprichos, enquanto terrenos, nada são. Abrigamos a esperança de poder contemplar dia a dia, e com ritmo crescente, as obras produzidas pelas almas excelentes e puras dos prolíficos jovens da Causa de Deus, para que assim se façam realidade as velhas esperanças guardadas pelos atribulados amigos daquela terra.

Abu'l-Qásim Faizí
(Mão da Causa de Deus)
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO ESPANHOLA

Poucos são os momentos da história que ficam eternamente gravados na consciência coletiva. As idades e os séculos transcorrem através da nebulosidade do tempo, vendo passar gerações de homens, escravos de seus próprios fantasmas. Mas em cada milênio emerge um fato que confirma ao homem sua capacidade de transcender-se a si mesmo e lhe mostra a sempre desejada visão do amor triunfante.

No dia 9 de julho de 1850 o amor voltou a triunfar sobre o ódio e o rancor. O céu da cidade de Tabríz, no Irã, refletia a dor dos filhos da terra. O sol em seu zênite abrasava a multidão congregada na praça. Ali, em uma das colunas do quartel, e frente a milhares de olhares petrificados, suspenderam os dois seres benditos. Logo... o estampido de centenas de disparos, o vôo miserável das balas portadoras de dor e a obscurecedora fumaça da ignorância, deu-se início. A vida expirou e o universo chorou amargamente pela cegueira do coração humano.

Ocorrera o mais dramático acontecimento de nossa época. Uma assombrosa tragédia que prenunciava o início de uma revelação de envergadura jamais contemplada. O Báb, o precursor da Fé Bahá'í, fora martirizado cruelmente. Junto a Ele, um jovem devoto, Seu discípulo, havia oferecido sua vida no altar do sacrifício, para demonstrar a um mundo incrédulo que o amor ainda não fora convertido nas cinzas das chamas do esquecimento. No momento em que o regimento disparou sobre o Báb, este jovem - de nome Mirza Muhammad 'Alí - mantinha-se abraçado, por sua própria vontade, a seu Bem-Amado, convertendo-se em seu escudo protetor contra centenas de balas mortíferas.

A vida deste jovem enamorado é bastante desconhecida no Ocidente, uma vez que são poucas as referências sobre ele encontradas nos anais do princípio da Fé. Daí a expectativa que o presente livro despertará no leitor, pois constitui um relato apaixonado da meteórica existência de Mirza Muhammad 'Alí-i-Zunúzí e uma terna descrição do êxtase sentido pelo Ser Amado, o Báb.

Além de um mero relato dos acontecimentos, o autor tratou de analisar as atitudes e os sentimentos de um dos milhares de mártires, que com seu sangue, regou a árvore divina desta exaltada Causa.

Esta obra literária é merecidamente conhecida e apreciada entre os Bahá'ís de língua farsí e além de haver sido editada integralmente em seu idioma original, diversas revistas Bahá'ís publicaram partes de seu conteúdo. Nos primeiros anos da revolução islâmica do Irã, a Assembléia Espiritual Nacional dos Bahá'ís deste país distribuiu exemplares deste livro entre os numerosos Bahá'ís que se encontravam injustamente encarcerados por manter suas convicções religiosas, como uma ajuda aos terríveis momentos de provação pelo qual estavam passando.

A vida do apaixonado Zunúzí se convertia assim numa refulgente luz no caminho dos novos enamorados.

Escrita no estilo clássico farsí, no qual as frases transbordam em metáforas, poesias, versículos do Alcorão e tradições islâmicas, houve um cuidado para que a obra não perdesse seu lirismo original, estremecedor, belo e cheio de imagens místicas ao ser traduzido para um idioma ocidental. Tarefa árdua que, cumpriu seu objetivo, foi devido ao estímulo constante e a valiosa revisão do próprio autor, o Sr. Mehrabkhani, e a inestimável ajuda do Sr. José Luis Marqués na adaptação das referências poéticas. A ambos meu mais sincero agradecimento.

Navid Mohabbat
Tarragona, Espanha
Agosto, 1989
EM NOME DO CRIADOR DOS ENAMORADOS

Escrevo esta história na cidade de Haifa, na encosta do Monte Carmelo, Israel. Uma cidade que é mencionada pelos enamorados espirituais do mundo, qualquer que seja sua cor ou raça; apaixonados que desde as montanhas da América do Sul e as cálidas ilhas do Oriente até as terras nevadas setentrionais deste globo terrestre, se enchem de alegria e regozijo ante a menção e a lembrança de Haifa e do Carmelo.

Mencionou-se teu nome e ao ouvi-lo, aqueles que te amam começaram a dançar emocionados

os que falavam de ti e os que escutavam.

Todos os dias, pontualmente às cinco e meia da tarde, depois de haver percorrido, impaciente e desejoso, os duzentos e cinqüenta degraus que separam a casa do amado 'Abdu'l-Bahá do Santuário de Sua Santidade, o Báb, me encontro próximo à casa dos peregrinos, vizinha ao mausoléu, respirando o ar que não é mais que a perfumada fragrância da brisa do amor. Contemplo a dourada cúpula do Santuário circundado por belos ciprestes, e sob aquela brilhante cúpula que se assemelha a uma coroa de ouro, vejo sentada em seu trono a majestosa figura da formosa rainha do Carmelo, cingindo seu cinturão cor de esmeralda.

Centenas de pessoas o visitam diariamente todas as manhãs, desde as nove até ao meio-dia, tempo concedido para os visitantes, cada qual, de distinta forma, relata sua grandeza e majestade.

Nas palavras do poeta:

Cada um em seu próprio idioma procurava te louvar cantando.

O mausoléu do Báb é realmente formoso. Não importa a profissão, o gosto de quem o viu ou o vê atualmente. Jovens e velhos, mulheres e homens, engenheiros e músicos, poetas e médicos, todos o adoram igualmente. Sim, os viajantes o adoram, porém unicamente os amantes do Báb sabem que este belo monumento, esta preciosa jóia que brilha no seio do Carmelo, é em verdade tão somente uma concha que entesoura em seu coração uma refulgente pérola. A luminosa pérola cuja lembrança desperta a seus olhos assombrosas reminiscências. A lembrança de seis anos de aflição e sofrimento. A memória de vinte mil mártires. A recordação dos heróis dos episódios de Tabarsí, Nayríz e Zanján. A memória dos sete mártires de Teerã e, por último, a lembrança da praça de Tabríz. A lembrança do jovem apaixonado, que até mesmo no último instante, não soltou suas mãos da borda do manto do Amado, convertendo seu peito no alvo de milhares de balas de ódio e num escudo protetor das aflições do Salvador das Nações. Finalmente seu corpo se fundiu de tal forma com o corpo de seu adorado Senhor, que a pena de Bahá'u'lláh o descreve da seguinte maneira: "Nós mencionamos nesta posição Muhammad precedendo a 'Alí, (Muhammad 'Alí) quem mesclou sua carne com a carne, seu sangue com o sangue, seus ossos com os ossos, seu corpo com o corpo de seu Amado Senhor."*

*tradução não oficial

Se o poeta, no mundo da imaginação, rasga suas vestes para não deixar barreira entre a amada e ele próprio, aquele jovem lacerou seu corpo e despedaçou seus ossos para não deixar rastro algum de obstáculo no caminho da união.

Inúmeros relatos foram escritos sobre os amantes desventurados em todo o mundo. Suas histórias, registradas em diferentes línguas, foram convertidas em novelas, peças de teatro e composições poéticas, cuja leitura e contemplação jamais cansa o público. Na Pérsia temos os relatos de amor de Shírín e Farhád, de Laylí e Majnún1 e outros, que permanecem vivos depois de centenas de anos. As representações de Otelo ou de Romeu e Julieta de Shakespeare, entre outras parecidas escritas em línguas européias, estão sempre nos cartazes teatrais e cinematográficos do mundo, e a cada ano milhares de turistas viajam aos lugares imaginários onde tais histórias de amor aconteceram. Na cidade espanhola de Teruel, se encontra a sepultura de um desafortunado casal de amantes; a ela se dirigem, a cada ano, centenas de pessoas procedentes de inúmeros rincões do país. Isto sucede apesar da maioria de tais relatos serem imaginários, invenções criadas pelas mentes lúcidas das penas expressivas dos escritores.

Contudo, relatos de amor semelhantes ao de Mirza Muhammad 'Alí-i-Zunúzí constituem fatos reais e histórias verdadeiras, que para serem estimadas requerem o renascer de outros Shakespeares, capazes de desvendá-las linha por linha, revelando suas verdades essenciais a todas as nações, através de uma expressão veraz e não a expensas da imaginação.

Talvez haja ocorrido raras manifestações de tais histórias no mundo real, no universo das religiões e na pureza do amor espiritual, excetuando a posição de fidelidade e o grau de fortaleza dos enviados de Deus e os centros de inspiração divina, tais como o bondoso Jesus na dispensação cristã e o imame Husayn, príncipe dos mártires no Islã, que ultrapassaram as alturas de heroísmo mostradas pelos amantes da Causa Bahá'í.

As Divinas Auroras são, em verdade, a mesma luz procedente de horizontes distintos, cujas respectivas histórias possuem um grau parecido. Assim, por exemplo, as histórias do judaísmo e do islamismo não estão isentas de semelhança em alguns aspectos; enquanto tal semelhança é completa entre o cristianismo e a Fé Bahá'í, seja no que se refere aos padecimentos sofridos por seus fundadores, ou seja, com relação a outros fatos. Mas a comparação histórica entre o início de ambas revelações e a condição de seus primeiros crentes é um exemplo vivo e uma lição fecunda para aqueles que contemplam a poderosa refulgência do Sol da Verdade nesta nova revelação e anelam vislumbrar o futuro desta grandiosa Causa, esta poderosa dispensação.

Uma comparação entre a última noite de Cristo e a do Báb, e sua relação com seus respectivos discípulos, coloca luz sobre certas verdades que constituem uma clara lição para qualquer observador perspicaz.

Jesus Cristo pregou durante três anos consecutivos ao povo judeu. Durante este tempo esteve rodeado constantemente por Seus discípulos e apesar da inimizade dos opositores, não se detinham no ensino da Causa de Deus, conseguindo que, aproximadamente, cento e vinte almas abraçassem Sua Fé, dentre as quais doze foram escolhidas para acompanhá-Lo em todos os lugares. E, apesar de comungar dia e noite com tais discípulos sobre o amor e a fidelidade, encaminhando-os ao reino celestial e exortando-os ao desprendimento do mundo terreno, nenhum deles conseguiu compreender o significado de Suas palavras. Não antes que Ele mesmo sacrificasse Sua própria existência, encontrou-se quem pudesse dar a vida em Seu caminho.2

Awhadí em seu Jám-i-jám expressou fielmente esta verdade:

Estava um dia Jesus com Seus discípulos,
abertos a Seu saber, ouvintes de confiança,
comentando Seus mistérios de amor,
às vezes claramente, às vezes em parábolas.
Seguindo Seu discurso, O viram fatigado.
E os olhos brilhantes pelas lágrimas.
"Dá-nos um sinal de Teu amor",
Pediram-lhe com audácia.
"Se queres um sinal do muito que Eu vos amo,
tereis que esperar até amanhã.
Vereis repetir-se o fogo com que Deus e Abraão
selaram sua aliança."
Era o dia seguinte quando dirigiu-Se
à morte na cruz que Lhe esperava.
Volveu-se então e lhes disse:
"Existe amor maior do que morrer
por aqueles a quem se ama?" 3

A última noite de Cristo foi a mais triste noite que Profeta algum jamais vivera. Em tal noite, ao saber que um de Seus escolhidos apóstolos O havia traído por trinta moedas de prata, reuniu a todos e lhes falou de Sua própria partida. Depois, os abandonou por uns momentos para desaparecer no êxtase da oração e da meditação. Ao regressar, encontrou Seus discípulos adormecidos. Em linguagem de admoestação, lhes recriminou dizendo: "Como podeis descansar tranqüilos em semelhante transe e não participar comigo da oração?" Apesar disso, ao retornar pela segunda vez, estavam novamente adormecidos.4

Ao ser aprisionado aquele Abençoado Ser, todos os discípulos fugiram; salvo Pedro e outro apóstolo, que O seguiram de longe. Reconheceram Pedro, mas ele O negou. Ao insistir-lhe "começou a maldizer e jurar"5. Segundo o evangelho, Jesus o olhou e Seu olhar penetrou até o fundo de sua carne e seus ossos.

Tal foi o início de uma religião e a conclusão da vida terrena de uma Manifestação de Deus, a Quem dois mil anos depois, declaram seu amor, oitocentos milhões de pessoas em todo o mundo. No entanto quando o Báb se libertou deste mundo efêmero para alcançar os reinos de mística santidade, milhares de pessoas haviam oferecido não só suas vidas por Seu amor e mas também, seus corações em Seu caminho.

A história da última noite deste Ser tão exaltado, que constitui uma lição imortal para amigos e estudiosos, é o tema de nosso relato.

Visita ao Povoado de Zunúz

Zunúz é um belo povoado, que se encontra a vários quilômetros de distância da cidade de Marand no Azerbaijão, Irã. A associação a duas figuras da história Bahá'í fez com que este povoado para sempre fosse lembrado.

A primeira destas figuras é o célebre Shaykh Hasán-i-Zunúzí que foi o elo de ligação entre Shaykh Ahmad-i-Ahsá'í e Bahá'u'lláh. Foi a Shaykh Hasán a quem Siyyid Kázim de Rasht se dirigiu nos seguintes termos: "Ó Shaykh Hasán, regozijai-vos por ser vosso nome Hasán (louvável); Hasán vosso princípio e Hasán vosso fim. Tivestes o privilégio de alcançar a presença de Shaykh Ahmad, tendes estado intimamente associado a mim e, em dias vindouros, a vós caberá o inestimável prazer de testemunhar 'o que jamais olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem coração algum concebeu'."6

Depois de conversar com Siyyid Kázim, conseguiu chegar à presença do Báb e somar-se ao grupo de crentes sinceros, onde gozou o privilégio de poder saborear a doçura da comunhão durante grande parte de sua vida. No entardecer de sua existência, teve por missão ir a Karbilá para ver com seus próprios olhos o prometido Husayn. Apesar da idade avançada e da fadiga, viveu cheio de esperanças para ver cumprida esta profecia, até o dia em que Bahá'u'lláh segurando-o pela mão, na entrada do santuário do imame Husayn disse-lhe: "Neste mesmo dia é Meu propósito tornar-te conhecido como um Bábí em toda Karbilá... Louvado seja Deus por haveres permanecido em Karbilá e visto com teus próprios olhos a face do prometido Husayn".7

Entre as felizes recordações que o autor guarda do período de dezesseis anos de andanças e viagens pela doce terra do Irã, uma é a visita à aldeia de Zunúz. Sua lembrança, depois de mais de trinta anos, permanece viva em minha memória como se tratasse de um quadro pintado. A distância entre Marand e Zunúz foi percorrida no lombo de burros e foi em um dia de verão, com o sol recém surgido no horizonte e em companhia de um jovem amigo, que nos encaminhamos a essa aldeia.

Cada um de nós sente uma predileção especial por algum ou alguns dos milhares de mártires e figuras destacadas da Fé. Mirza Muhammad 'Alí compõe parte do punhado de celebridades pelo qual o autor, desde que entrara em contato com a história bahá'í, sente uma estranha fascinação devido a sua entusiasta e agitada existência. Apesar de não restar sequer um retrato ou imagem alguma daquele encantador amante celestial, em minha mente se formou um quadro imaginário, uma subjetiva fisionomia de seu precioso ser. De modo que, nesta viagem, no entusiasmo de contemplar a aldeia, os passos de minha alma destoavam dos lentos movimentos do quadrúpede.

Depois de percorrer uma planície, chegamos a uma montanha. Havendo escalado definitivamente o monte, de repente, contemplei sob meus pés uma formosa paisagem que mais parecia a pintura de um quadro. Presenciei um extenso, mas não profundo vale, rodeado de uma série de pequenos montes com matizes múltiplas - azul celeste, vermelho e verde - em meio ao qual sobressaía o povoado de Zunúz. Percorremos com vivacidade os pequenos montes que nos separavam do povoado e vimos aquela aldeia composta de um agrupamento de jardins e hortas viçosas e verdes, repletos de macieiras e parreiras. Dúzias de fontes naturais que corriam sob nossos pés através das ruas e vielas, mais a predisposição natural, havia transformado aquela aldeia em um jardim do paraíso.

Acredita-se que o próprio Mirza Muhammad 'Alí não nasceu neste povoado, mas sim toda sua ascendência e linhagem cresceram ali. Sua família tinha posses neste povoado e seguramente ele mesmo deve ter passado longos períodos de sua infância e juventude nela, com o propósito de descansar e ver seus familiares. Daí que em cada rua eu percebia alguma marca sua e em cada rincão escutara o grito de seu amoroso fervor. A voz de um entusiasmo que não só se escutava no povoado de Zunúz, mas também que expande seu eco por todo o mundo dizendo: "Ele é minha religião, Ele é minha Fé, Ele é meu paraíso, Ele é meu Kawthar8 e minha morada."

Uma noite, no espaço ajardinado e sob a luz de uma lâmpada de gás, escutei durante horas, incríveis relatos em companhia de amigos de Zunúz, e no clímax do prelúdio do anoitecer, nos deitamos num leito preparado no chão de um pátio. À noite, contemplei fixamente do meu leito ao ar livre, as brilhantes estrelas no céu claro da aldeia e, de madrugada, ao despertar sob o efeito da oração entoada pelo dono da casa, via a face de Mirza Muhammad 'Alí por cima do céu, detrás das estrelas, no começo do amanhecer chamando com sua firme voz aos jovens do Oriente e do Ocidente, convidando-os a caminhar atrás dele e mostrar ao mundo a inestimável pérola que o sacrifício e a fidelidade de pessoas como ele haviam entesourado.

O pai de Mirza Muhammad 'Alí, chamado Mullá 'Abdu'l-Vahhab, figurava entre os eruditos de Zunúz, e se mudou nos últimos anos de sua vida para residir em Tabríz. Teve três filhos. O primogênito era Mirza 'Abdu'lláh, depois uma filha e o caçula era Mirza Muhammad 'Alí, que não teve a felicidade de conhecer a tutela de seu pai, já que tinha somente dois anos quando ele veio a falecer. Sua mãe, depois de algum tempo, se casou com outra pessoa eminente de Zunúz, residente em Tabríz.

Este "mujtahid", de nome Aqá Siyyid Alí, gozava de uma elevada e mui respeitosa posição entre o clero erudito de Tabríz e eram muitos os que aproveitavam suas classes de estudo. Era, ademais, um homem fidedigno e religioso em que todas as pessoas da cidade depositavam uma grande confiança. Esta confiança chegava a tal ponto que muitos na hora da morte lhe conferiam a responsabilidade de dividir e repartir suas heranças. Outros deixavam sua esposa e filhos a seu cuidado, quando chegava o momento de empreender alguma viagem.

A mãe de Mirza Muhammad 'Alí levou seus três filhos, dois dos quais estavam em plena infância, para a casa de seu segundo esposo. Siyyid Alí cuidou deles com esmero, esforçando-se ao máximo para lhes dar uma boa educação, em especial a Mirza Muhammad 'Alí que desde o começo de sua infância reunia em si uma inteligência aguda e desprendimento e pureza absolutos.

Entre os estudiosos de história se estabelece esta pergunta: "São os grandes homens os que criam a história de uma nação ou é a história ou uma especial situação do país que conferem existência a tais homens segundo os requerimentos da época...?" Qualquer que seja a resposta dada a esta questão dentro da perspectiva da história das nações, resulta claro e evidente sob o prisma da visão das religiões divinas que, cada vez que o sol da Fé de Deus amanhece no céu da revelação, aparecem ao seu redor numerosas estrelas: indivíduos que se convertem em criações novas e vestem seus corpos com tenras vestimentas. Estes seres são o levedo principal mediante o qual se transforma a essência da vida humana. Eles são anjos celestiais cujo sacrifício e devoção, igual às trombetas dos anjos serafins, desperta a humanidade de sua letargia.

Não resta dúvida que Mirza Muhammad 'Alí foi um destes anjos vivificadores que se manifestou no mundo da existência entre a legião da salvação, cavalgando junto do verdadeiro Soberano. Se reconhecermos esta verdade, temos que aceitar também que estes seres desprendidos foram amparados pelo favor divino e se mantiveram sob à sombra protetora e à educação do Senhor do Absoluto.

Mirza Muhammad 'Alí com estas características espirituais inatas, percorreu os diferentes graus do saber junto a seu padrasto, convertendo-se num jovem vigoroso que, ao mesmo tempo em que ostentava a posição sacerdotal, possuía as melhores virtudes de uma conduta e educação humana. O certo é que nem ele mesmo conhecia o papel que iria desempenhar no Plano Divino quando se casou e teve dois filhos. Duas criaturas que cruzaram seu caminho no último instante de sua vida, quando andava pelo caminho do sacrifício, e estas crianças com seus olhares inocentes, o puseram à prova.

Não temos mais informações sobre a vida desta luminosa estrela do firmamento da Causa, antes dele ter reconhecido esta tão sublime Revelação. E ainda se adicionássemos maiores dados, não seria de tanta importância, porque mesmo as vidas destes refulgentes astros que iluminam séculos e eras carecem de significado, salvo aqueles momentos consumidos em serviço à Fé de Deus.

"Que dias tão felizes aqueles
que passei com o Amado.
O resto de minha vida foi vazio.
Sem sentido.
Um nada."
O Vale do Amor
"O amor é um estranho para terra e para o céu;

Setenta e duas loucuras ocultam-se sob o seu véu!" 9

As histórias de amor e sacrifício dos amantes do Báb são relatos para cuja descrição ainda não foi criada uma pena sagaz. Os testemunhos imparciais que lemos na história deste breve período em que milhares de homens e mulheres, jovens e velhos, ricos e pobres, sábios e profanos, ficaram encantados pelas magnéticas palavras de um Jovem de vinte e cinco anos, chegando a cantar histórias de amor junto à forca, pronunciando melodias e cânticos na boca do canhão e dançando com o aguilhoado corpo portando incrustadas velas acesas. Se não chegamos a crer em milagres, jamais poderemos encontrar para isto razões justificadas. Estes seres que ofereceram suas vidas em tais condições, não foram loucamente enamorados por magia, nem por enganos, nem se lhes havia dado a promessa de possuir o mundo. Eram espíritos imaculados cujo mundo, cujo fim inclusive - tal como o amante de Zunúz exclamava - seu paraíso e kawthar eram a Beleza do Amado.

Se o dia do Juízo me escolher, permitissem,
direi: "Para mim, o Amado de minha alma.
O céu e tudo mais que o tome quem o queira."

Os acontecimentos sucedidos nestes seis anos são únicos na história das religiões.

Dentre os escritores de nosso país (Irã), e em especial os que durante os últimos anos investigam a história seguindo os cânones científicos, refletindo os acontecimentos segundo a análise da ciência, nenhum tem obtido nem o propósito nem a vontade de decifrar e assimilar este estranho fenômeno histórico. Sim, o fanatismo patriótico e religioso; que levam pessoas comuns a mostrarem firmeza e inclusive serem capazes de dar sua vida com o fim de defender sua raça, sua pátria ou as crenças nas quais têm crescido, são realidades muito conhecidas pelos pensadores e cientistas. Mas o surgimento da revelação do Báb é - em sua própria natureza - completamente diferente. Os seguidores daquela refulgente Beleza não foram indivíduos propensos a mostrar fanatismo especial pela defesa de uma religião ancestral impregnada em seu sangue e seu coração; uma religião que no transcurso das gerações houvesse modelado seu pensamento sob uma rígida estrutura, senão que foram seres a quem o chamado de Deus rompeu todos os moldes ancestrais e derrubou todas as concepções de gerações, vivificando-os com uma nova existência, adornando seus corpos com uma nova criação e outorgando-lhes uma vestimenta maravilhosa.

Durante séculos, poetas e excelentes narradores persas compuseram e cantaram belíssimos poemas líricos sobre o amor e a condição dos amantes, levando-os a tal extremo que a maior parte de sua poesia ultrapassou a posição dos relatos mundanos e cotidianos de amor. Em verdade, seu lirismo está acima do plano material. Apesar disso, quando comparamos estes poemas com o estado dos amantes desta Suprema Revelação, compreendemos claramente que aquelas antigas poesias, criadas pelos artistas da expressão escrita, são incapazes de retratar a sublime condição destes amantes.

Em que coleção de poemas se pode encontrar uma descrição de amor comparável ao que foi sentido por Sullaymán Khán10? E na linguagem de que poeta se pode recitar a corajosa história e firmeza de Badí11, de Rúhulláh12 e a mãe de Ashraf13?

Mirza Muhammad 'Alí-i-Zunúzí figura entre as pessoas que gozavam de um notável conforto na vida. Era jovem e afortunado, havia chegado a ocupar uma posição sacerdotal; contava com o respeito de seus concidadãos e possuía segurança, riqueza e independência. Era casado e duas ternas crianças traziam alegria a seu lar. Era reto na religião de seus pais e antepassados, e decidido na prática das leis e obrigações.

Foi neste período de sua vida que o Bem-Amado de Shíráz desfraldou Seu chamado na cidade de Tabríz, dando em Seu portal as boas-vindas a todos os que ansiavam por esta nova Revelação Divina.

Aquela Divina Beleza honrou com Seus passos, por três vezes consecutivas, a capital do Azerbaijão. A primeira viagem que o Báb fez a Tabríz, foi quando de sua ida a Máh-kú; a segunda vez que lá esteve foi vindo de Chihríq, voltando novamente à mesma penosa prisão; a terceira e última vez, foi quando empreendeu o Seu vôo ao mundo celestial.

Na primeira viagem, apesar da oposição que se mostrava às pessoas que queriam alcançar a presença do Báb, algumas alcançaram tal incomparável objetivo. Entre elas estavam Mirza Muhammad 'Alí. O amante chegou a seu Amado e com o coração palpitante entregou-se nas mãos do Amigo. Neste encontro, um fogo voraz acendeu-se de tal maneira na existência de Muhammad Alí, que devorou por completo os inumeráveis vestígios deixados pelos seus antepassados. Ninguém conhece os significados encerrados naqueles olhares do Bem-Amado e as palavras pronunciadas por Ele naquela ocasião. Mas todos os historiadores ao descrever seu estado relatam unanimemente seu regozijo e alegria, seu amor e êxtase; enquanto, os torpes de sua época, o qualificaram como sendo um louco.

Mirza Muhammad 'Alí ficou em tal grau cativo de seu Bem-Amado, que era-lhe mais grato sacrificar sua vida do que se separar dEle, ainda que fosse por um instante sequer. Entretanto lhe foi outorgado o título de Anís (o companheiro) pela língua do Exaltado.

Este atributo, além de seu significado aparente, tem com toda certeza, um significado mais íntimo. E esta foi a associação eterna que faria possível que o desprendido jovem encontrasse o "Senhor dos Mundos" e ficasse abraçado por toda a eternidade ao "Bem-Amado das Nações".

Mirza Muhammad 'Alí, depois de percorrer o vale do amor, entrou no vale do conhecimento. O estudo dos escritos e as epístolas da Dispensação do Báb, as numerosas perguntas formuladas em Sua sagrada presença relativas a obscuras questões místicas, a oração e a contemplação e os modos daquela sublime Santidade converteram, durante o breve instante de sua vida física, aquele viajante no caminho da verdade em um dos eloqüentes defensores da Causa de Deus.

O vale do amor é um vale muito ardente. A entrada neste vale só é possível para os que possuem corações de leão, não para os chacais covardes; pois resistir as três condições básicas deste vale - a saber, primeiro, o esquecimento de tudo menos do Amado; segundo, a rendição do eu frente à vontade do Bem-Amado; e, terceiro, suportar todas as aflições no caminho do Adorado - não estão dentro da capacidade de qualquer um.

Um leão feroz proclama em voz alta:

"Quem se atreve a arriscar, que passe por minha selva."

O amor é o leão que o aguarda.

Apesar de tudo isto, neste vale há subidas e descidas, transformações e mudanças. O juízo dos amantes é sempre variável e miríades de provas se encontram em cada um de seus passos, até o momento em que o enamorado caminhante põe seus pés na etapa do entendimento e saboreia a delícia do conhecimento com o paladar do espírito.

No vale do amor, quanto maior é a proximidade com o Amado, maiores são as provas. Por esta razão, dentre os favorecidos pelo verdadeiro Amado, muitos têm caído nas garras das provas, e o calor de sua proximidade - o qual ilude inclusive o anjo Gabriel14 - têm consumido suas asas, fazendo-as descender do céu da honra à terra do envelhecimento.

Jámí15 em seu livro "Sabhatu'l-Abrár" (Rosário dos Piedosos), têm simbolizado muito acertadamente esta delicada questão, sob a roupagem da poesia, dizendo:

Zunnún, prefeito da cidade da Guardiania,
homem conhecedor dos mistérios de Deus,
relatou assim esta história:
"Estava certa vez, em retiro em Meca,
vigilante naquele santo lugar.
De repente meus olhos viram um jovem,
desesperado, ardendo em corpo e alma,
magro e pálido como uma lua nova.
Com todo carinho quis perguntar-lhe:
'Bom homem, por acaso estás enamorado?
por que estás tão magro e consumido?'
'Sim', me respondeu, 'estou enamorado de Alguém

a quem muitos, como eu, deram seu coração inteiro.'

'Mas desfrutas da união com o Amado,
ou teus dias de separação
são noites escuras e cheias de amarguras?'
'Eu estou sempre em sua casa', me respondeu
jogado como pó em seu umbral.

'Então, se o objeto de teu amor está sempre contigo

e tu estás constantemente em sua casa,
por que estás, pois, consumido e macilento?
Por que te afogas em teus pesares e tristezas?'
Ele se admirou e me disse surpreendido:
'Que ignorante e néscio me pareces.
Melhor seria se cessasses já em teus disparates.
Minha vida periga mais unido a Ele que separado.
Assusta-me de verdade a tua companhia.
A separação permite-me viver na
esperança de tornar a encontrá-lo novamente.
Mas estando a teu lado, tão próximo
angustia-me o temor de que posso perdê-lo.'"

Mirza Muhammad 'Alí, tal como se contempla no relato de sua vida, chegou cedo a exaltada posição do "conhecimento" e a agitada fonte de seu amor se uniu ao infinito oceano do "entendimento". E estes constituíram os passos preliminares para a chegada à etapa da morte do eu e a vida em Deus. Etapa que alcançou por fim, tal como veremos mais adiante.

Depois da viagem do Báb, primeiro a Máh-kú, e depois a Chihríq, a saudade do Amado aumentou ainda mais seu fogo. Seu desespero o fez conhecido na cidade e notório no mundo. Então Mirza Muhammad Zunúzí decidiu percorrer montanhas e vales para chegar na presença de seu Bem-Amado em Máh-kú e Chihríq, e com o coração ainda mais ardente retornou a cidade de Tabríz. Ali lançou os alicerces do ensino, dedicando-se ardentemente à conversação e ao diálogo com os sacerdotes. Este atrevimento e temeridade levantaram o clamor e os protestos de um grupo de pessoas importantes, mas que, em respeito a Aqá Siyyid Alí, lhe haviam mostrado consideração. Tal queixa foi levada ao conhecimento de seu pai adotivo, aquele ser mundano, incapaz de compreender o estado de entrega de seu jovem filho, dedicou-se a aconselhá-lo que, já que não podia renunciar ao arrebatamento de seu Bem-Amado, pelo menos se comportasse com sabedoria e tato em seu tratamento com as pessoas e não provocasse seus temíveis preconceitos. Mas tais conselhos e advertências não mudaram a atitude de Mirza Muhammad 'Alí.

"Sinto-me como água sobre o fogo.
E como queres tu que eu não ferva?"
E nas palavras de Liqáí-i-Káshaní:
"Não me aconselhes mais, pai;
teu filho está perdido e enamorado.
Nem a honra, nem a desonra me importam mais."

O limite do perigo, entre este mundo e seus seres, é o interromper da vida, enquanto que ele, desde aquele primeiro passo, "conservava a cabeça para sacrificá-la pelo Amado".

Bendito seja Deus, como se pode ameaçar àquele cujo mais anelante desejo é sacrificar sua vida e suas posses? E com que promessa se pode convencer a quem vende o mundo e tudo o que nele há por um grão de aveia?

O aprisionamento e o exílio do Báb em Máh-kú e Chihríq não apagou a luz de Deus, pelo contrário aquela resplandecente Lâmpada, iluminadora do mundo e cujo óleo "reluz ainda que o fogo não o toque"16 inundou de luz todo Azerbaijão, fazendo com que alguns entrassem na sombra da Causa de Deus e outros, malévolamente, se levantassem em oposição quando o Amado exclamou: "Não sou vosso Deus?"17 Segundo o notável Na'ím:

Quando o Bem-Amado lançou seu chamado,
uns disseram que sim, outros não;
os amantes ansiaram pelo sacrifício
os violadores do Convênio
buscaram a desonra.18

Os inimigos da Causa, que nunca haviam se sentido unidos entre si, se levantaram em conjunto, unidos em oposição, para afligir e ferir aos amigos de Deus. Também em Tabríz a vida dos Bábís estava em grave perigo. Mas o mundo em que vivia Mirza Muhammad 'Alí se encontrava muito afastado deste mundo terreno.

Seus familiares, temerosos por sua vida, vendo que os conselhos e as advertências dados não tiveram efeito algum, decidiram por prendê-lo em um cômodo da casa, impedindo sua saída. Este inesperado encarceramento infligido por sua própria família foi a primeira aflição sofrida no caminho de seu Bem-Amado, mas ele o aceitou com paciência, encontrando naquele solitário recanto uma maneira para comungar e orar com seu único e incomparável Senhor.

Dia e noite estava dedicado à oração e, com o coração ardente, os olhos banhados em lágrimas e a língua pronunciando palavras de louvor, dirigia sua face para Chihríq. Tal era o grau de turbulência daquele inquieto enamorado que, à meia-noite, seus lamentos e soluços eram ouvidos, por toda a casa, inundando a todos num mar de consternação e intranqüilidade. Por fim adoeceu e a dor do amor fez de seu corpo abatido um hóspede de seu leito.

Durante este período, o Báb havia sido trazido a Tabríz com o objetivo de ser interrogado pelos sacerdotes. Depois da crueldade e da tirania exercida sobre Aquele Prometido das nações durante o interrogatório, levaram-No novamente à prisão de Chihríq.

Muhammad Alí, apesar de seu frágil corpo estar sendo devorado pelas chamas da enfermidade, sentia sua vida pulsar próximo de seu vivificador Bem-Amado. Até que, uma noite o Consolador se manifestou sem nenhum véu, abriu a porta e iluminou com a luz de Sua beleza o escuro quarto que ocupava; transformando sua labareda interior em tranqüilidade e felicidade, disse-lhe: "Fogo! Sê frio! Sê saúde para Abraão!"19

É melhor que escutemos este relato da língua de Shaykh Hasan-i-Zunúzí, seu concidadão e companheiro no caminho do amor:

"Mais ou menos na mesma época em que o Báb dispensou Azím de Sua presença, me deu instruções para que recolhesse todas as epístolas disponíveis, que havia revelado durante Seu encarceramento em Máh-ku e em Chihríq e que as entregasse nas mãos de Siyyid Ibrahim-i-Khalíl, que vivia em Tabríz e lhe encarregasse de que as ocultasse com o maior cuidado.

Durante minha permanência nessa cidade, visitei com freqüência Siyyid Alí-i-Zunúzí, que era meu parente e inúmeras vezes o ouvi lamentar o triste estado de seu filho. 'Parece haver perdido a razão' - queixou-se amargamente. 'Este seu comportamento me trouxe reprovação e vergonha. Trata de tranqüilizar seu coração e induzi-lo a ocultar suas convicções.' Cada dia que o visitei, vi as lágrimas que fluíam continuamente de seus olhos. Depois que o Báb partiu de Tabríz, eu fui lhe ver e surpreendeu-me ver a alegria que iluminava seu semblante. Seu formoso rosto estava sorridente quando se adiantou para receber-me. 'Os olhos de meu Bem-Amado' - disse ao abraçar-me - 'contemplaram este rosto e estes olhos contemplaram o Seu.' 'Permita-me' - acrescentou - 'contar-te o segredo de minha felicidade. Depois que o Báb foi levado de volta a Chihríq, certo dia, enquanto estava confinado em minha cela, volvi meu coração para Ele e Lhe roguei com as seguintes palavras: Tu vês, ó meu Bem-Amado! Meu cativeiro e minha impotência e sabes quanto anseio contemplar Teu rosto. Dissipa o pesar que oprime meu coração, com a luz de Teu semblante. Quantas lágrimas de agonia e dor derramei naquele instante! Senti-me tão tomado de emoção que ao que parece perdi todo o conhecimento. Repentinamente ouvi a voz do Báb e, eis que Ele estava chamando-me. Pediu-me que levantasse. Contemplei a majestade de Seu semblante ao apresentar-Se diante de mim. Sorriu enquanto olhava-me nos olhos. Adiantei-me com rapidez e lancei-me a Seus pés. Regozija-te, disse, se aproxima a hora em que, nesta mesma cidade, serás suspenso ante os olhos da multidão e cairás vítima do fogo do inimigo. Não elegerei nenhum outro, senão tu, para compartilhar Comigo a taça do martírio. Tem a certeza de que esta promessa que faço irá se cumprir. Senti-me extasiado pela beleza daquela visão. Quando me recuperei estava imerso em um oceano de júbilo, um júbilo que todas as penas do mundo não podiam obscurecer jamais. Essa voz segue ressoando em meus ouvidos. Essa visão segue-me tanto de dia como de noite. A lembrança de Seu sorriso inefável dissipou a solidão de meu confinamento. Estou completamente seguro de que a hora de Sua promessa cumprir-se, não tardará.' Exortei-lhe que tivesse paciência e que ocultasse suas emoções. Prometeu-me não divulgar esse segredo e se preocupou em mostrar maior tolerância para Siyyid Alí. Apressei-me em passar segurança ao seu pai sobre sua decisão e obtive a sua libertação. Esse jovem seguiu relacionando-se, até o dia de seu martírio, em estado de completa serenidade e alegria, com seus pais e familiares. Tal foi seu comportamento para com seus amigos e parentes que, quando chegou o dia em que deu sua vida por seu Bem-Amado, todas as pessoas de Tabríz choraram amargamente."

A Promessa da União

Nunca esperava que o céu me desse a promessa da união

O reduzido tempo entre essa visão e a hora do martírio do Mais Exaltado, figura entre os dias de maior felicidade e encanto na vida de Mirza Muhammad 'Alí. Em seu estado de contemplação havia ouvido dos lábios do Bem-Amado a explícita promessa de que, chegado o momento de saborear a taça do sacrifício, dentre os milhares de candidatos, ele e tão somente ele, de pé junto ao Amado, receberia uma porção dessa taça.

Nenhuma pena é capaz de descrever o estado daquele rouxinol do amor em tal etapa, nem há descrição suficiente para relatar tal experiência.

A razão pasmaria
se tivesse eu que falar.
Muitas penas romperiam
se o quisesse contar.

Naqueles dias, Mirza Muhammad 'Alí vagava em outro mundo. Não encontrava companheiro ou confidente com quem pudesse compartilhar o segredo que guardava em seu coração. E tão imensa era a boa nova que havia encontrado que nem sequer a sua mãe, nem o seu irmão, nem a sua mulher, nem seus filhos resistiriam escutá-la. Em seu lar, todos presenciavam sua alegria, sentindo-se felizes ao ver sua felicidade. Mas quão distantes se achavam os dois mundos. Eles estavam felizes pensando que ele havia se desligado das redes do amor, entretanto ele estava feliz por ter ouvido dos lábios do Amado a promessa da união.

No mundo em que vivemos coexistem multidões de mundos e quão freqüentemente num mesmo lar ou dormitório convivem dois seres, achando-se tão longe um do outro e vivendo mundos tão díspares, que depois de toda uma vida residindo juntos jamais se encontram nem acham seus universos respectivos.

Naturalmente, ele estava adornado com os mais nobres sentimentos humanos. Amava profundamente seus dois filhos, queria com ternura a sua jovem esposa e o afeto por seus pais inundava sua alma. Mas tais amores, comparados com o cativeiro que sentia pelo divino amor, eram semelhantes à luz de uma vela frente ao sol do meio dia. O mesmo sol de cujo calor e refulgente visão estavam privados os demais, escondidos através dos véus e das muralhas das superstições e fantasias. Mas o benéfico braço do Criador os havia derrubado por trás do olhar de Mullá Muhammad Alí, situando-o frente à luz direita do esplendor divino, para iluminar e dar calor às raízes de sua própria existência.

Acaso devia volver as costas a tal resplendor...? Ninguém em posse da razão se permite tal repúdio. Para que então, falar do sagaz enamorado? Assim, pois, enquanto todos o chamavam de louco, ele também considerava loucos os demais; de modo que, quando um sacerdote insinuou que ele estava possuído pela loucura, um grande lamento surgiu de seu coração, dizendo-lhe: "Eu não sou louco por haver reconhecido ao prometido Qa'im, louco és tu que O tens denegrido."

Se por um instante deixamos que a imaginação e a suposição se apoderem de nós, poderemos voar com as asas da ilusão, atravessar em um décimo o lapso temporal dos cento e vinte e seis anos e recorrer com um passo a distância espacial entre Haifa e Tabríz. Com os olhos do espírito veremos, na obscura noite de Tabríz, por ruelas somente iluminadas com a tênue luz da lua e das estrelas, o desafortunado jovem que passeia e que, banhado em lágrimas, pensa no conselho da irmã, no lamento da mãe, nas suplicantes lágrimas da esposa e nos olhares exigentes dos filhos. Seu sensível coração cambaleia enquanto o vento frio da prova tenta cortar a raiz da árvore de sua vontade.

Não é por acaso melhor para ele repousar como os milhares de cidadãos desta cidade que tranqüilamente descansam em seus leitos e, como todo jovem, gozar, regozijar-se e saborear a doçura da vida? Mas, no mesmo momento, contempla na escuridão da noite o valoroso Bem-Amado que diante dele o chama, dizendo: "Mirza Muhammad 'Alí, dentro em pouco não escolherei nenhum outro além de ti para compartilhar comigo a taça do martírio."

Num instante a chama de fogo emerge do ser e devora por completo sua existência, a escuridão da razão é dissipada pela irradiação da luz do afeto e o eu e suas ânsias são consumidos completamente na labareda do êxtase pelo Desejado.

Deves acender primeiro o fogo do amor
e tudo o que existe consome-o num instante.
Busca depois a entrada que conduz ao salão
onde só se encontram os sinceros amantes.

Seus olhos não contemplam outra coisa que a manifestação da beleza do Amigo e seus ouvidos não percebem mais que as melodias do Adorado. As lágrimas fluem torrentemente por suas faces e nas entranhas da noite grita desde as profundidades de seu ser enamorado, suplica e, agarrando com a mão a borda do manto do Bem-Amado, reza dizendo: "Meu Senhor, não me separes de Ti. Meu Bem-Amado, que Tua justiça não me deixe privado daquilo que por Tua Graça me concedeste."

Este período da enamorada vida de Mirza Muhammad 'Alí não foi muito longo, pois o Báb chegou em Tabríz por ordem de Amír Kabír e, após vinte e três dias de estadia, cumpriu fielmente a promessa feita, sentando Mirza Muhammad 'Alí junto a Si mesmo na festa do martírio, bebendo da taça do sacrifício e dando de beber a ele.

A Fidelidade do Bem-Amado

Amír Nizám20 ao tomar a decisão de executar o Soberano das Nações e havendo pronunciado sua surpreendente afirmação: "Da mesma forma que os interesses de Estado fizeram necessário o martírio do Imame Husayn, o rei dos mártires; agora que os interesses de Estado o requerem, Siyyid-i- Báb haverá de ser executado."21 Aquele santo Jovem foi levado, por sua ordem, de Chihríq a Tabríz e no dia 16 de junho de 1850 entrou naquela trágica cidade hospedando-se na residência previamente designada pelo governador.

O governador, pensando que o propósito do Grão-vizir era a libertação dAquele Santo, lhe dispensou o maior dos respeitos, tanto no caminho como na chegada. Apesar disso, passados três dias, foi recebida a ordem de Amír Nizám contendo o veredicto para a execução dAquele Enviado do Soberano Antigo. O Príncipe-Governador recusou obedecer ao ditame, considerando a baixeza de tal ato comparável à realizada por Shimr e Yazíd22. Sob tais circunstâncias o vizir encarregou a realização de tal serviço a seu próprio irmão.

As comunicações e cartas, apesar da estrita observância mantida para o rápido envio das mesmas, demoraram aproximadamente três semanas até a execução do ato. Durante este tempo, Mirza Muhammad 'Alí alcançou acesso junto ao Exaltado e se converteu no sacrificado guardião daquela corte. Sua Santidade, o Báb, concedeu-lhe Sua graça ao fazê-lo intermediário na promulgação de certas epístolas. Entre elas havia uma admoestação dirigida a um dos sacerdotes.

Os berros e o clamor deste mullá alcançaram o céu, levantando uma grosseira montanha de injúrias e insolências. Mirza Muhammad 'Alí e dois acompanhantes conseguiram silenciá-lo.

A notícia de tão intrépido feito chegou aos ouvidos do padrasto e mergulhou novamente os familiares e parentes no oceano do temor, vendo claramente nesta ocasião a perda iminente do jovem apaixonado.

O pai, que por um lado sentia a dor da desonra e por outro temia pela vida de seu filho, tomou a pena e lhe escreveu uma carta nos seguintes termos:

"Ó filho degenerado, apesar de que me tens feito vil e desprezível entre os doutos de Tabríz e já que agora o perigo te acercas mais, na qualidade de pai te aconselho e te dou minha benevolência, dizendo-te que não temas nem te aflijas pela fama de tua associação com o Siyyid-i- Báb, já que o homem é pecador. Tens errado. Mesmo assim as portas do arrependimento e da remissão estão abertas. Se te arrependeres e pedires clemência, tua posição não diminuirá e serás salvo por mim."

Quão diferentes eram o conteúdo desta carta e o pensamento de Mirza Muhammad 'Alí. Ele como qualquer enamorado abatido, temia que o Bem-Amado mudasse sua promessa no último instante e o pai lhe pedia para não temer a conseqüência de sua ação, prometendo-lhe a aceitação de seu arrependimento. "Onde nos encontramos neste juízo? E, ó meditação, onde estás tu?" De acordo com Mirza Abu'l-Fadl: "Louvado seja Aquele que tem repartido a inteligência entre os homens e com semelhante diferença tem presenteado o entendimento e a compreensão." 23 Por isto tomou a pena e devolveu a carta a seu entorpecido pai anotando na margem este verso de Hafíz24:

Sou um amante libertino
e me pedes que me arrependa.
Deus me livre de fazê-lo!
Deus não o consinta!

Aqá Siyyid 'Alí se abalou pelo poder dessa resposta, enquanto a tristeza e o pesar cobriram todo o seu ser. Ele era um famoso mullá, possuía propriedades e bens e vivia no ápice do êxito da vida material. Seu desejo era que Mirza Muhammad 'Alí se parecesse com ele, enquanto o anelo daquele jovem, vítima do amor, era ver que seu pai não sacrificasse uma soberania perdurável por um domínio que pereceria, que se esquecesse do eu, mas não do Amigo, e se libertasse desta terra efêmera e não do céu da imortalidade.

Deste modo, Aqá siyyid Alí, cuja casa havia sido obscurecida pelo coração entristecido da mãe de Mirza Muhammad 'Alí, chamou a sua presença o irmão deste, Hájí Mirza 'Abdu'lláh, e solicitou dele uma solução.

Hájí Mirza Abdu'lláh tomou a pena e escreveu a seu irmão uma mensagem ponderada, lhe deu certas advertências e conselhos, lhe mencionou o versículo "Não vos precipiteis com vossas mãos até o aniquilamento"25, lembrou-lhe da angústia e da dor da espada e da bala mortal, a inquietude em meio aos suspiros de sua mãe e os soluços da esposa e dos filhos. Jurando-lhe, suplicou e implorou que tivesse piedade do estado de seus familiares, que escondesse sua crença no fundo do coração e se empenhasse no caminho da segurança, dedicando-se à preservação das terras e bens e ao cuidado de suas ternas crianças.

Mirza Muhammad 'Alí respondeu-lhe com outra carta. Este escrito é o único documento que restou deste ser maravilhoso. Uma carta que descreve e atesta por si mesma a realidade de seu êxtase. O jovem que em alguns dias iria alcançar o grau de mártir se levanta para consolar os membros de sua família. Eis aqui a carta:

"Ele é o Bondoso.

Ó meu benfeitor! Encontro-me bem, graças a Deus. A cada dificuldade nos segue alegria e tranqüilidade. Havias escrito dizendo que este assunto não pode ter um bom fim, então, que outro assunto deste mundo pode ter melhor fim? De todo modo estou muito contente pelo que me tem sucedido. Mas nunca poderei agradecer suficientemente a Deus por esta bondade. O máximo que pode ocorrer é a morte no caminho de Deus e isto é felicidade suprema, pois assim se cumprirá a vontade de Deus para com seus servos. O que já foi predestinado não se muda com medidas humanas. O que Deus quiser será feito e toda faculdade e potência procedem de Deus.

Ó meu benfeitor! O fim da vida é a morte. Toda alma degustará a morte. Se a mim chega essa morte ordenada por Deus, então, Ele próprio será O protetor de minha família e tu serás o meu testamenteiro, e procederás de acordo com a vontade de Deus. Perdoa-me por tudo o que haja faltado em meu dever de cortesia para contigo. E também peço, através de ti, perdão para toda a família. Deixa-me nas mãos de Deus. Ele me é suficiente e o melhor advogado."

Esta carta é um testemunho de fé e confiança e encerra tal firmeza e perseverança que não pode encontrar semelhança no passado. É uma demonstração do enlevo e da fidelidade de vinte mil mártires, que com seu sangue escreveram a história desta maravilhosa Causa. Contudo, não influiu no insensível coração do irmão e, apesar do posterior esforço de amigos, Hájí Mirza Abdu'lláh não entrou na fileira dos crentes do Máximo Nome.

Amír Kabír, ao contemplar a negativa do governador-geral do Azerbaijão, Hishmatu'd-Dawlih, enviou uma nova ordem a seu irmão Mirza Hasan Khán (Vazír Nizám), encarregando-lhe a responsabilidade da execução do Báb. Este, recebendo a ordem, se dirigiu à corte do governador, mas Hishmatu'd-Dawlih não lhe concedeu a audiência, fingindo estar indisposto. Desta maneira, deixou desatadas as mãos que haveriam de cometer tal ato infame.

Glorificado sejas Deus! Como a história se repete! "Pisareis os caminhos percorridos pelos crentes de outras religiões, metro a metro e palmo a palmo." 26 Quando os idosos do povoado, os pontífices e os escribas conduziram Cristo ante Pilatos, o governador romano, este à princípio recusou conceder a ordem de execução. Ante a insistência do povo judeu, acabou inibindo-se covardemente e lavou a suas mãos dizendo: "Sou inocente deste sangue. Vós vereis!"27 Logo levantando-se abandonou aquela assembléia, deixando o sublime Ungido nas mãos do povo feroz.

Hishmatu'd-Dawlih, o príncipe Qajár fez o mesmo que Pilatos. Em vez de atuar valentemente em virtude de sua posição como governador, impedindo a aflição perpetrada pelos tiranos, encarregou seu guardião que não permitisse que ninguém tivesse acesso a sua corte.

Com antecedência Mirza Hasan Khán havia conduzido o Báb de Sua morada à residência real e sob uma ferrenha vigilância havia separado as mãos dos amantes extasiados - bem como as de Mirza Muhammad 'Alí do manto de seu Amado. Ao chegar este segundo decreto, não considerou esperar nem um momento. Especialmente porque a notícia da execução do Qa'ím prometido lhe chegara antes do começo do mês de Ramadán para poder dedicar-se com o pensamento livre a cumprir as obrigações daquele sagrado mês, tais como o jejum, as orações obrigatórias e a leitura do Alcorão.

Erguem a espada contra um rebento do Profeta
e aprendem de memória os versos do Alcorão.
Serve-lhes de amuleto o Livro que respeitam
e o Imame da Fé se atrevem a matar.

No dia 8 de julho, o Báb, rodeado de soldados e despojado da faixa da cintura e o turbante verde, sinais visíveis do grau de Siyyid, foi conduzido ao quartel. A cidade de Tabríz estava mergulhada em uma profunda comoção; a população enchia as ruas e ruelas, obstruindo a trajetória da comitiva. Alguns, influenciados pela propaganda clerical, levantavam indecentes injúrias. A maioria contemplava perplexa a cena e os poucos amantes da Amada Beleza derramavam lágrimas de pesar, impedidos de cometer qualquer ação naqueles delicados momentos em que o curso das provas alcançava seu zênite.

O Rei dos reis do amor, desprovido de Seu cinto e turbante, caminhava com sublime majestade até a prisão, adornado com uma coroa divina e um cinto celestial. Ao se aproximar do quartel, repentinamente um jovem descalço e com a cabeça descoberta abriu caminho através da multidão e, rompendo a fileira de soldados, conseguiu aproximar-se do Adorado. Diminuindo seus passos, acariciou a túnica de seu Bem-Amado e disse: "Meu Senhor! Não me separes de Ti." Sua Santidade sorriu e tomando-o pelo braço o levantou e exclamou: "Tu estás junto a Mim; amanhã se atestará o prescrito."

Este jovem, que não era outro senão Mirza Muhammad 'Alí, foi aprisionado e se juntou a outros dois. Confinaram aquele grupo, que junto a Aqá Siyyid Husayn (o amanuense do Báb) era composto por cinco pessoas, em uma das muitas celas do quartel militar. Quarenta soldados colocados em cima dos terraços e ao redor do calabouço se dedicavam a Sua vigilância e custódia.

O Báb passou toda a noite na cela junto daquele punhado de almas. Ali sussurrou melodias de amor nos ouvidos daquela companhia de fiéis, leais até o último momento. A noite se dissipou ao amanhecer, em meio de íntimas confidências. O Bem-Amado lhes falou com alegria e regozijo, mas Mirza Muhammad estava absorto na contemplação daquele refulgente Astro.

Finalmente o Amigo divino, mantendo-se fiel à sua promessa, chamou para si o anelante enamorado. O náufrago oceano do afeto vinha alcançar as praias do sacrifício e o amante espiritual se sentia próximo do Amado. Mas era impossível que a mística noiva de jovial espírito, que ao longo de séculos e eras "sacrificou a seus amantes e depois celebrou seus funerais", não provasse, até o último instante, a certeza do amor sentido por seus amantes. Assim pois, aquele Santo, volvendo a face para os discípulos e com a intenção de prová-los e dar uma lição à humanidade, dirigiu-lhes as seguintes palavras:

"Amanhã será o dia de Meu martírio. Oxalá um de vós se levante agora e, com suas próprias mãos, possa por fim a Minha vida. Prefiro morrer nas mãos de um amigo que nas do inimigo."

Quão grandiosas foram tais palavras e quão sublime a prova. O grau maior de provação para os crentes ao longo de todas as anteriores dispensações consistiu em desprender-se das possessões, ofertar suas vidas, outorgar o ser e apressar-se em chegar ao lugar do sacrifício. Como era possível, pois, imaginar que um Enviado de Deus pedisse Sua própria morte às mãos de um fiel amante? Ao ouvir tal pedido os presentes se submergiram em perplexidade e consternação. Todos choraram amargamente, menos o amante de Zunúz que, pondo-se de pé e desatando a faixa de sua cintura, exclamou:

"Qualquer que seja Teu desejo, assim o cumprirei."

Este estado é incapaz de ser descrito e este relato se encontra muito além do poder da fala. Parece como se neste mesmo instante contemplamos a Mirza Muhammad 'Alí que, com sua esbelta figura, se acha de pé no meio da cela, preparado para obedecer ao decreto do Bem-Amado. A força do amor e da obediência que o havia levado a cometer tão ousada ação não pode estimar-se com nenhuma medida humana. Com este seu gesto, Mirza Muhammad 'Alí não só deixou antiquada a história de milhares de amantes do passado registradas nas páginas da história, como também estabeleceu a perfeita balança de medição na obediência da Causa de Deus para os jovens destinados em tempo futuro a levantar-se dos quatro cantos do planeta em proclamação da divina Fé, qualquer que seja sua nacionalidade e idioma.

O Báb, vendo diante de Si, Mirza Muhammad 'Alí em pé e havendo escutado suas palavras, O olhou com olhos de entusiasmo e felicidade e lhe mostrou um doce sorriso. Este olhar pode ser comparado àquele olhar outorgado por Jesus Cristo. Apesar de Pedro ser o mais querido de Seus apóstolos, a quem havia entregue a chave dos céus, de pé e ante Sua presença ele O negou em três ocasiões na frente dos inimigos. Aquele olhar a Pedro foi um olhar cheio de pesar, tristeza e desonra, enquanto este olhar a Mirza Muhammad 'Alí era de alegria e orgulho. Este olhar não estava dirigido somente a Mirza Muhammad 'Alí, senão a todos os povos do mundo e, em primeiro lugar, aos inimigos visíveis e ocultos, para que contemplando soubessem que a lâmpada acesa pela Luz divina no coração de audazes, tais como Mirza Muhammad 'Alí, não seria extinta nem mesmo apagando a flamejante vida dAquele Santo. Este olhar se dirigia aos reis e poderosos do mundo, chamando-os a um duelo diante do próprio poder de transformação dos seres. Este olhar chamava os filósofos e sábios da terra, que atrás de cada feito buscam uma causa, para aproximarem-se daquela reunião celestial e contemplarem a formosa figura e o encantador perfil de Anís. Um templo convertido em uma criação nova, cujo existencial "aço" se transformara em "fogo eterno" e "luz interna" pelo contato com a chama do amor divino.

Então se ouviu a melodiosa voz do Senhor do afeto pronunciando: "Este mesmo jovem será Meu 'anís' (companheiro) e oferecerá valentemente sua vida em Meu caminho." Aquela histórica noite, glorificada como a noite do destino, predita no Alcorão, se dissipou por fim, e as palavras: "apague a vela, que o sol já nasceu"28 foram ouvidas dos lábios do anjo mensageiro.

Na manhã do dia 9 de julho apresentou-se o farrash'báshí (chefe da guarda) para primeiro levar os quatro ante os sacerdotes e receber deles a sentença. Siyyid Hasan-i-Kátib (o amanuense) pediu ao jovem Arauto um esclarecimento sobre como deveria proceder em tais circunstâncias. O Báb assim lhe aconselhou: "Não confesses tua Fé; assim poderás, ao chegar a hora, transmitir àqueles destinados a ouvir, as coisas das quais somente tu estás ciente."29 E dirigindo-se aos outros dois acompanhantes, que também haviam requerido uma orientação sobre seus respectivos deveres, lhes disse: "Com vossas mortes não haverá liberdade para Mim." Mirza Muhammad 'Alí que escutava em pé, irritou-se com a formulação de tais perguntas e dirigindo-se a eles pronunciou as seguintes palavras: "Ele é o Senhor da Causa, não um mujtahid (doutor na lei) para que pergunteis questões jurídicas." Uma vez mais o Exaltado Semblante sorriu carinhosamente e uma terna alegria cobriu Seu rosto bendito.

Levaram Mirza Muhammad 'Alí diante dos sumos sacerdotes. Estes, por consideração a seu padrasto, Aqá Siyyid Alí, tentaram por todos os meios salvá-lo da perigosa situação e se esforçaram por arrancar de seus lábios alguma palavra de negação ou apostasia. Contudo, as tentações daqueles mundanos seres não abalaram o coração do extasiado jovem. Mullá Muhammad-i-Mamaqaní quis salvá-lo daqueles aprisionadores laços apresentando-o como um louco enamorado; porque, ao ouvir sua explícita declaração, disse: "Palavras como estas delatam tua loucura e para o insano não se imputa culpa nenhuma." Mirza Muhammad 'Alí respondeu em alta voz: "Ó sacerdote! Louco és tu que ordenas a morte do Prometido, descendente de Muhammad. Eu, contudo, tenho juízo ao oferecer minha vida em Seu caminho e não vender minha fé ao mundo."

Em todas as épocas, as pessoas ligadas ao plano físico têm imputado aos verdadeiros crentes em Deus o qualitativo de loucura. O motivo desta verdade é que a medida do juízo, igualmente a qualquer fator existente no mundo, depende da forma de pensar e o juízo de cada ser humano. Em verdade todos estão loucos, tal como diz o provérbio inglês: "Se a loucura doesse, as vozes do lamento se fariam ouvir de todos os lares."30 Um está louco por sua amada de faces rosadas, o outro atraído pela Causa do divino Criador; o coração de um bate pela aquisição de honra e poder, a vida de outro tende ao sacrifício e a morte do eu. As mercadorias da incredulidade e da religiosidade não estão isentas de clientela; alguns preferem esta, outros aquela.

Com tudo isto, os leitores da história e os conhecedores da vida dos antepassados atestam certamente porque os buscadores de fama e poder pereceram e têm sido esquecidos deste mundo de tal modo que "não se tem escutado voz nem sinal deles". Enquanto aqueles que sacrificaram suas vidas pelo Desejado, ainda prescindindo de sua posição no mundo invisível, descansam seus pés neste efêmero plano, sobre a coroa dos reis.

Depois de voltar da reunião com os sacerdotes, a esperança dos guardiões ainda não havia acabado, confiando que no último momento retirasse sua mão do Bem-Amado das Nações. Por isto o mantiveram separado do Báb e o confinaram em uma cela junto de Siyyid Husayn Kátib, para que talvez assim não fosse influenciado pelo impulso dAquele divino magnetismo. Em tal estado, ele expressou seu pesar e tristeza, implorando que o conduzissem ante seu Amado. Assim foi como o farrash-'báshí o entregou nas mãos de Sam Khán, dizendo: "No caso de que não se arrependa, mata-o também."

Aqá siyyid Alí e os demais membros da família, que perguntavam incessantemente sobre a condição daquele querido ser, estavam cada vez mais desiludidos pela ineficácia das medidas de liberação por eles tomadas. Por fim, compreenderam que Mirza Muhammad 'Alí jamais iria voltar. Foi assim que se agarraram a um último intento, desta vez mediante a provocação de seus ternos sentimentos para com sua esposa e seus filhos. Sua irmã e sua mulher levaram seu filho de dois anos ao quartel e se reuniram a seu lado. A irmã ajoelhou-se a seus pés várias vezes, beijando-o e com os olhos cheios de lágrimas e o coração partido lamentou-se dizendo: "Irmão, conjuro-te pelo Alcorão e o Profeta dos fins dos tempos, que escondas tuas crenças no fundo de teu ser, como é permitido no Islã. Que te salves do precipício da perdição e favoreças com tua vida a tua esposa e filhos, a tua mãe e irmãos."

E tal foi sua resposta:
"Ó irmã!
Se chovessem espadas no caminho do Amado,
levaria o pescoço erguido
avançando até encontrá-las.

Durante anos tenho desejado este momento. Graças a Deus que por fim alcançarei meu propósito. Sê paciente e agradecida, e não te lamentes nem te aflijas. Dentro em breve, pelo decreto do Onipotente e Poderoso Criador, surgirá uma nova raça de homens que nos glorificará com as melhores lembranças e as mais excelsas obras. Se levantarão com alegria e regozijo no lugar deste bando que nos considera merecedores de morte. Eles contemplarão em nossas tumbas e epitáfios, o lugar de descanso das graças e das confirmações celestiais. E através de nós elevarão ante a corte do Altíssimo suas orações e súplicas. Portanto não te entristeças, sê paciente e, realmente vos provaremos com algo de temor, fome, diminuição de vossos bens, pessoas e frutos."31

Logo depois, havendo se despedido deles, se dirigiu ao altar do sacrifício.

Este grande dia, no qual o Prometido de todos os povos se entregou nos braços do inimigo para ensinar a seus amantes, ao longo das idades e séculos, a lição do sacrifício e desprendimento, foi um dia glorioso e sem par na história da cidade de Tabríz. Mais de dez mil pessoas situadas nos terraços do quartel e nos edifícios vizinhos foram testemunhas daquele acontecimento. Setecentos e cinqüenta soldados postos em três fileiras, sob o comando de seu oficial-chefe, aguardavam com as escopetas preparadas com pólvora, a ordem de fogo. Tiraram o Báb e Mirza Muhammad 'Alí do lugar de confinamento. Logo, perto da cela de Siyyid Husayn Kátib, com uma escada incrustaram um prego na parede e suspenderam nele duas cordas.

Mirza Muhammad 'Alí tirou sua túnica, deixando-a de lado e vestiu uma outra nova de cor branca. Como a desejada hora havia chegado, pediu, beijando em várias ocasiões a túnica do farrash-'báshí, para ser suspenso de tal maneira que todo seu corpo se colocasse na frente de sua Santidade, o Báb, para assim poder fixar seus olhos até o último instante nAquele formoso rosto e converter-se em um escudo protetor daquela divina Manifestação. Amarraram-no de tal forma que sua cabeça ficou diante do peito de seu Amado.

Três fileiras, cada uma composta de duzentos e cinqüenta soldados dispararam consecutivamente. A fumaça da pólvora converteu o luminoso dia em noite escura. Ao dispersar-se a fumaceira, as milhares de pessoas presentes contemplaram Mirza Muhammad em pé, sem que houvesse sofrido nenhum dano. Nem sequer uma partícula de fumaça havia depositado-se em sua nova túnica branca. O Báb havia desaparecido. Toda a multidão alçou sua voz em uníssono declarando que o Siyyid-i- Báb havia desaparecido ante seus olhos. Os responsáveis correram até Mirza Muhammad 'Alí e o inquiriram sobre o paradeiro do Báb. Anís lhes disse: "Depois que as balas cortaram unicamente as cordas, caímos e Sua Santidade se dirigiu ao interior da cela."

Este indiscutível milagre de cuja veracidade dão fé tanto os opositores da Causa como as instituições oficiais, não constituiu uma advertência para o rancoroso inimigo32. Arrependido de sua intervenção, Sam Khán retirou seu destacamento da praça e um novo entrou rapidamente em seu lugar. Trouxeram o Báb da cela, em que ditava Suas últimas instruções a Seu amanuense Siyyid Husayn, até o cadafalso e O prepararam para o sacrifício. Aquele bendito Templo, dirigindo-se à multidão congregada, exclamou:

"Ó negligente geração! Tivésseis vós acreditado em Mim, cada um de vós teríeis seguido o exemplo deste jovem que, em grau, é superior a maioria de vós e de bom grado teríeis sacrificado-se em Meu caminho. Dia virá em que vós Me tereis reconhecido; neste dia, Eu terei deixado de estar convosco." 33

Logo amarraram aqueles dois corpos luminosos, da mesma forma que anteriormente. Mirza Muhammad 'Alí, tal qual como se pode ver através do desenho a bico de pena que retratou para a posteridade a condição dos corpos inertes, estava abraçado àquele imaculado Ser com sua cabeça repousando sobre o coração do Jovem Profeta mártir, preparado para o sacrifício.

Escreveram que as últimas palavras sussurradas repetidamente por seus lábios, antes que seu corpo se convertesse no alvo das balas mortais, foram:

"Ó meu Mestre! Estás contente comigo?"

Ele havia entregado tudo aquilo que possuía. Contudo, ainda temia não ter rendido adequadamente os direitos de servitude ao seu sublime Bem-Amado e não haver oferecido um digno obséquio ante Seu umbral.

Esta curta frase pronunciada por aquele fiel enamorado é uma trombeta de advertência para os milhares de desprendidos Bahá'ís, amantes servidores espalhados por todo o mundo na disseminação dos renovadores princípios da nova dispensação. Esta frase ensina-nos a sermos humildes quanto aos serviços e esforços rendidos, que são semelhantes ao presente de uma formiga ante a salomônica majestade desta Causa34, e também a não nos vangloriar, mas, que venhamos a nos converter em símbolos de humildade e, após cada serviço, por maior que ele tenha sido, prostremo-nos ante a corte da Santidade pronunciando reiteradamente:

"Ó meu Mestre! Estás contente comigo...? Ó meu Senhor! Estás contente comigo...?"

O comandante do novo pelotão ordenou o disparo. Desta vez o impacto das balas havia fundido de tal modo aqueles dois sagrados corpos, convertidos em um único templo do ser, que separá-los seria uma tarefa impossível.

Morte em Tudo, Salvo em Deus
O Amado sou eu e eu sou o Amado.
Almas gêmeas somos
e em um corpo estamos.

Chegando ao fim deste relato sobre a vida do apaixonado Zunúzí, o Companheiro (Anís) e de Sua Santidade, o Báb, o relógio marca uma hora da madrugada. Através da janela da casa, no coração do Carmelo, olho abaixo e contemplo ante meus pés a totalidade da cidade repousando na silenciosa escuridão do sono. Levanto a cabeça ao céu e encontro despertas todas as estrelas cintilantes, guardiãs do palácio cósmico. Uma voz interior entoa-me estes versículos:

Passou a meia-noite
e já todos dormiram.
Só brilham as plêiades
e meus olhos, ainda despertos.

Não desejo terminar aqui a história. Quisera prosseguir com o rastro deixado pelo corpo de Anís e rememorar as suas etapas percorridas junto ao Exaltado. Mas a silhueta espiritual daquele devoto jovem - que desde o início deste relato tenho observado diante de mim, no mundo da contemplação, tal como um modelo de pintura que se erguia imóvel para que eu pudesse retratar sua amorosa fisionomia e extasiada condição com minha negra pena - desaparece ante a minha vista.

É como se Anís me dissesse na linguagem presente: "No momento em que meu corpo se fundiu com o corpo do Mais Exaltado Bem-Amado, meu ser se desvaneceu em Seu Ser. Era uma gota e submergi no mar. Era uma infinitésima partícula e me aniquilei ante aquele sol."

Para mim, que tenho feito de Mirza Muhammad 'Alí um ser real no mundo da imaginação, com quem dialogo às vezes, a quem confesso o segredo de minha alma e de quem aprendo a lição do amor e fidelidade, é difícil vê-lo como nada, submerso no Ser Amado:

Quando te vejo rezar
os céus estão me matando,
ainda sabendo que é para meu Deus
a quem teus lábios invocam.

Isto não é tão surpreendente. Pois para aqueles que como eu atravessam a primeira curva do caminho, é incompreensível o verdadeiro estado de quem percorreu, em um passo, as sete cidades do amor. Ao consultar a epístola de 'Abdu'l-Bahá em honra da Assembléia Espiritual Local de Teerã, referente ao estabelecimento do sepulcro do Báb, contemplo nela o sinal de um único Templo Sagrado.

Recordo-me que os mestres sufís escreveram inumeráveis livros acerca da morte do eu e a vida em Deus. Na maioria destes escritos se manifestava o eu e a própria vaidade. Eram numerosos os que guiavam aos demais ao vale da verdadeira pobreza, enquanto que eles mesmos se mantinham privados do vale da busca:

O charlatão ignorante
presume ser amado
enquanto seu amor consumado
guarda em silêncio o amante.
Que aprenda o rouxinol
da humilde mariposa
que se queimou silenciosa
no fogo do amor.

Contudo, eis que vejo quem na primavera de sua vida e na idade do regozijo fugiu do mundo, abandonando atrás de si o que em sua época se conhecia por Tariqat e Sharí'at*, até alcançar a suprema verdade.

*No Islã, Tariqat é o misticismo e Sharí'at, a ortodoxia islâmica (N.T.)

Sim, Mirza Muhammad 'Alí se sacrificou primeiro, para converter-se em nada depois. Seu ser se desvaneceu no Ser de seu Bem-Amado, alçando-se como um vivo testemunho das seguintes palavras de Bahá'u'lláh, refletidas nos Sete Vales: "Pois, quando um verdadeiro amante e afável amigo encontra o Ser amado, a irradiação da beleza do Amado e o fogo do coração do amante criarão uma conflagração que consumirá todos os véus e envolturas: ainda tudo o que possua. Mais ainda; seu próprio ser será consumido e nada restará senão o Amigo."

Quando os atributos do Ancião dos Dias
foram ante Ele revelados,
Moisés queimou todos os atributos
das coisas terrenas."

Deixo cair a pena. Levanto-me e saio ao coração da noite. Caminho pensativo pela encosta da avenida próxima ao mausoléu do Báb, até o lugar onde a dourada cúpula do Santuário aparece diante de meus olhos com um brilho sagrado, reflexo da esbranquiçada luz da Lua. As portas do jardim do Santuário estão fechadas, ainda que para beijar o umbral da tão Exaltada Corte não se requer excessiva proximidade. Se o lugar da sepultura de Mullá Husayn Bushrú'í, obra da palavra criativa do Báb, é um bálsamo para toda enfermidade e cura de toda dor em uma área de cinco milhas ao redor, se faz evidente então a sublime posição do lugar de repouso dos restos mortais do jovem Profeta mártir. Lugar que, segundo a referência explícita do Guardião, assinala o centro de nove circunferências concêntricas abrangendo o mundo da existência.35

Com o coração ardente retiro-me junto ao Bem-Amado na solidão aprazível, ali onde nenhum olho pode nos contemplar, e tento visualizar juntos o Báb e Mirza Muhammad 'Alí. Quiçá possa eu ver este último em companhia do Amado dos corações. Mas no instante a gloriosa luz do Eterno Sol cobre sua bela figura e a faz desvanecer.

Compreendo, então, que a existência de Mirza Muhammad 'Alí desvaneceu-se no Ser do Amigo e sou eu quem tenta fazer daquele sacrificado espírito uma realidade separada, pois não se encontra mais um ser em tal sublime lar.

Regresso pelo mesmo caminho, enquanto minha língua sussurra versos do imortal Rúmí:

O amante bateu á porta do amado.
"Quem é?", se ouviu de dentro.
"Sou eu", respondeu com muita ânsia.
"Vai-te", contestou o Amado
que não aceita nesta mesa
nada que ainda seja verde.
O fogo da separação
continuará te consumindo
até que o grosseiro egoísmo
desapareça de ti.
Aquele pobre ser, oprimido,
se afastou de sua Morada
e passou um ano vagando
com seu coração que ardia.
Queimado, mas maduro
tornou a bater na porta.
"Quem está aí?", ouviu-se lá de dentro.
"Aqui estás tu, anelo de minha alma!"
Então com doce voz
abriu a porta o Amado:
"Agora que és eu somente,
podes já entrar comigo,
pois nesta minha morada,
não havia lugar para dois."36
Agosto, 1976.
REFERÊNCIAS

1. A história de Shírín e Farhád é de origem persa e a de Laily e Majnún é árabe. Estas duas histórias de amor foram imortalizadas pela obra poética do famoso poeta persa Nizámí em seu livro Khamsih. Nizámí viveu no século XII.

2. O primeiro mártir cristão foi Estevão. Os acontecimentos relacionados com o sacrifício desta intrépida figura bíblica aparecem em: "Atos dos Apóstolos", cap. 6 e 7.

3. Awhadí, poeta místico do Azerbaijão (região noroeste do Irã), viveu no século XIV. Seu mais destacado livro Jám-i-jám é uma obra prima que trouxe a fama definitiva a seu autor.

4. São Mateus 26,40.
5. Idem 26,74.

6. Os Rompedores da Alvorada, Editora Bahá'í do Brasil, vol. I, cap. II, p. 78/79.

7. Idem, p. 82.

8. Kawthar: Rio do Paraíso do qual procedem todos os demais rios. Segundo a teologia islâmica, uma parte de suas águas vai desaguar em um grande lago em cujas margens descansam as almas dos fiéis depois de cruzar a terrível ponte de Sirát, mais estreita que uma espada e mais fina que um fio de cabelo e situada em cima do centro do inferno.

9. Bahá'u'lláh, Os Sete Vales e outros Escritos, Editora Axis Mundi, p. 29, - Rúmí (Jalálu'd-Dín-i-Rúmí), em "O Mathnaví". Geralmente chamado de "Mawláná (Nosso Mestre), Rúmí (1207-1273) é o maior de todos os poetas sufís persas, e o fundador da ordem dos dervixes dançantes, Mawlaví. M.G. "Mathnaví" é uma forma de poesia mística, épica ou didática, composta em rimas consoantes e emparelhadas (aa, bb, cc, etc.). "O Mathnaví", por excelência, refere-se sempre à obra de Rúmí composta durante cerca de quarenta anos, conforme essa estrutura poética. L.B.

10. Hájí Sulaymán Khán, um dos legendários mártires do holocausto de 1852. Segundo seu expresso desejo lhe fizeram nove furos em sua carne e em cada um incrustaram um círio aceso. Sob tais condições caminhou e dançou pelas ruas de Teerã, e respondeu com a seguinte poesia às injúrias do verdugo: "Com o copo de vinho numa mão e com os caracóis dos cabelos do Amigo na outra. Bailar desta forma, na praça do mercado, é meu desejo!" Ele ainda vivia quando com um machado lhe partiram o corpo ao meio. (Os Rompedores da Alvorada, vol. II, cap. XXVI , p. 359 a 369). Foi ele quem resgatou os restos mortais do Báb e Anís (9 de julho de 1950).

11. Aqá Buzurg de Khurásán (julho de 1852-1869), chamado "Badí" (O Maravilhoso), portador da epístola de Bahá'u'lláh dirigida a Násiri'd-Dín Sháh. Foi ele quem, com dezessete anos e depois de quatro meses de viagem, só e a pé, chegou a Teerã e entregou ao soberano persa tão inestimável documento, dizendo em voz alta: "Ó Rei! Vim a ti de Sheba com uma transcendental mensagem." Foi encarcerado e durante três dias sofreu as agonias da tortura com ferros candentes. Por fim, a golpes com a culatra de um rifle destroçaram-lhe a cabeça e seu cadáver foi jogado num poço. (H. M. Balyuzi. Bahá'u'lláh, The King of Glory, George Ronald Ed., cap. XXXIII).

12. Rúhu'lláh (1884-1896), filho de Alí Muhammad Varqá (título dado por Bahá'u'lláh que significa "pomba cândida"). Poeta e filho de poeta. Mártir e filho de mártir, este jovem extasiado de doze anos foi martirizado de forma desumana na prisão de Teerã, pelo sanguinário Hájibud-Dawlih, que, depois de apunhalar e cortar em pedaços o pai, na frente do filho, ordenou-o a renegar sua fé e ao recusar-se foi estrangulado com uma corda. (H. M. Balyuzi. Eminents Bahá'ís in the time of Bahá'u'lláh, George Ronald Ed., cap. VII).

13. Umm-i-Ashraf (mãe de Ashraf) era uma das crentes de Zanján nos tempos de Bahá'u'lláh. Seu filho, cujo nome completo era Siyyid 'Alí Ashraf e é conhecido também por Ashrafu'sh-Shuhadá (o mais nobre dos mártires), chegou à presença de Bahá'u'lláh na remota prisão (Adrianópolis). De volta a Zanján foi denunciado e aprisionado. Condenaram-no à morte a menos que renegasse a sua fé. Mas ele se manteve firme e fiel a seu Bem-Amado. No dia de seu sacrifício o Imame Jum'ih de Zanján esteve junto dele para fazer um último esforço a fim de salvá-lo da morte. Ali também estava sua mãe. Eles a deixaram entrar na prisão pensando que persuadiria seu filho para obter a liberdade. Mas ela estava ali anelante de ver seu filho beber a taça do sacrifício. Esta brava mulher lhe disse: "Lembra, meu filho, se tu renegares tua Fé, a Fé de teu pai, eu renunciarei a ti para sempre, para sempre." Foi decapitado diante dela, estando abraçado ao corpo decapitado de seu amigo Naqd 'Alí (jovem Bahá'í que apesar de cego recebeu da Bendita Beleza a designação de Abú Basír - pai da visão). Tal sobre-humano acontecimento ocorreu no ano de 1870. (Seleção dos Escritos de Bahá'u'lláh, Editora Bahá'í do Brasil, LXIX, p. 91. Tarikh-i-Samandar, p. 243).

14. Segundo as tradições muçulmanas, quando o Profeta ascendeu do céu em companhia do anjo Gabriel, ao chegar na corte do Todo Poderoso, o anjo Gabriel disse ao Profeta que seguisse só, pois ele teria suas asas queimadas.

15. Ahmad-i-Jámí é um destacado místico persa que viveu durante o século XV em Khurásán. Jámí figurava entre os mais excelsos místicos orientais e sua obra Sabhatu'l-Abrár é considerada uma das jóias poéticas mais sublimes da literatura persa.

16. Alcorão 24:35.
17. Alcorão 7:171.

18. Mirza Muhammad (1856-1918), conhecido com o sobrenome de Na'ím (bem-aventurado), nasceu no povoado de Sidih, em Isfahán. Abraçou a Causa entre os anos de 1880-1881. Ele é o poeta mais destacado entre os poetas Bahá'ís da Pérsia. Apesar de sua lealdade e fé em Bahá'u'lláh - fator suficiente para o menosprezo e marginalização entre os intelectuais do Irã - conseguiu derrubar esta barreira e se converteu em uma figura conhecida e admirada pelos historiadores e letrados. Algumas de suas composições poéticas foram consideradas pelos peritos como inigualável em toda a história literária do país. (Eminent Bahá'ís in the time of Bahá'u'lláh, cap. XI).

19. Alcorão 21:69.

20. Mirza Taqí Khán-i-Farahání, conhecido como Amír Nizám ou Amír Kabír, foi primeiro ministro de Násiri'd-Dín Sháh entre outubro de 1848 e outubro de 1851. Durante seu ministério e em parte devido a suas ordens, se sucederam as trágicas perseguições aos Bábís (1848-1850). Entre elas figuram os episódios de Shaykh Tabarsí e Zanján, o primeiro holocausto de Nayríz e o episódio dos sete mártires de Teerã. A culminação de sua hostilidade foi a ordem de execução do Báb. Seu fim foi deplorável, pois por ordem real lhe cortaram as veias no banho do Palácio de Fín, próximo a Káshán.

21. Husayn Ibn-i-'Alí (Medina, abril de 626; Karbilá, 10 de outubro de 680), o Imame Husayn, terceiro Imame da religião muçulmana, foi martirizado por ordem do califa Yazíd. Considerado tal ato um grande ultraje, Yazíd se desculpou dizendo que, ainda que Husayn fosse o neto preferido do Profeta Muhammad, como havia causado grandes problemas para o Estado, aquilo constituía razão suficiente para não pensar em sua ascendência. (Moojan Momen, An Introduction to Shi'I Islam, George Ronald Ed., p. 28-34)

22. Yazíd, o califa que enviou o exército para lutar contra o Imame Husayn e seus setenta e dois valorosos companheiros, e Shimr, que decapitou o Imame e neto do Profeta, tem sido, ambos, odiosamente desprezados pelos xiitas durante séculos. Por ser o Báb descendente do Profeta, o governador não queria correr a mesma sorte daqueles de séculos atrás. (A. Q. Faizí, The Prince of Martyrs, a brief account of the Imám Husayn)

23. Mirza Abul-Fadl, o famoso erudito Bahá'í (1844-1914). A citação foi retirada de seu destacado livro Al-Fará'íd.

24. Háfiz, o grande místico e poeta persa do século XIV, de máxima popularidade no país. Praticamente todos os persas conhecem de memória algo de sua poesia.

25. Alcorão 2:191.

26. Esta tradição muçulmana é relatada pelo próprio Profeta Muhammad, que prevê o fim de Sua própria religião, indicando que os seguidores sofrerão a mesma derrota que os crentes das dispensações anteriores.

27. São Mateus 27,24.

28. É parte do diálogo mantido entre o primeiro Imame, o Imame Alí, e um de seus seguidores chamado Kumail. Nele, o Imame Alí, depois de responder várias vezes a uma mesma pergunta, por fim diz: "Apague a vela que o sol já nasceu."

29. Os Rompedores da Alvorada, vol. II, cap. XXIII, p. 252.

30. O provérbio é: "If madness were pain, you'd hear out cries in every house."

31. Alcorão 2:150.

32. Justin Sheil, enviado especial e ministro plenipotenciário do governo britânico em Tabríz, em uma carta datada de 22 de julho de 1850, dirigida a seu governo, escreveu: "Quando, depois dos disparos, desapareceu o pó e a fumaça, o Báb havia desaparecido e as pessoas proclamaram que Ele havia ascendido ao céu. As balas haviam cortado as cordas às quais Ele estava atado..." (Moojan Momen, The Bábí & Bahá'í Religions 1844-1944).

33. Os Rompedores da Alvorada, vol. II, cap. XXIII, p. 257.

34. Nas tradições islâmicas relatam que quando o rei Salomão tinha sua corte, e de todas as partes lhe eram entregues presentes e tributos, uma formiga também pensou em levar a sua corte um valioso presente que, no seu caso, foi a perna de um gafanhoto. (N. A.).

35. O Guardião, referindo-se ao mausoléu do Báb, diz:

"O círculo mais externo deste vasto sistema, o correlativo visível da posição primordial conferida ao Arauto de nossa Fé, é o próprio planeta inteiro. Dentro do coração deste planeta se encontra a 'Terra Mais Sagrada', aclamada por 'Abdu'l-Bahá como 'o Ninho dos Profetas', e que deve ser considerado o centro do mundo e o Qiblih das nações. Dentro desta Terra Mais Sagrada se ergue a Montanha de Deus, de santidade imemorial, a Vinha do Senhor, o Retiro de Elias - cujo retorno O próprio Báb simboliza. Repousando no seio desta montanha sagrada se encontra as amplas propriedades permanentemente dedicadas ao sagrado recinto do santo Sepulcro do Báb. No meio destas propriedades, reconhecidas como as dotações internacionais da Fé, situa-se o Pátio Mais Sagrado, um invólucro constando de jardins e patamares que ao mesmo tempo embelezam e emprestam um charme todo especial a este recinto sagrado. Abrigado nesta paisagem linda e verdejante ergue-se, em toda sua delicada beleza, o mausoléu do Báb - a concha destinada a preservar e adornar a estrutura original levantada por 'Abdu'l-Bahá como o sepulcro do Arauto-Mártir de nossa Fé. Dentro desta concha está entesourada aquela Pérola de Grande Valor, o sacrário - aqueles cômodos que constituem o próprio túmulo e que foram construídas por 'Abdu'l-Bahá. No coração deste sacrário fica o tabernáculo, a câmara mortuária onde repousa o Caixão Mais Sagrado. Dentro desta câmara mortuária descansa o sarcófago alabastrino em que está depositada aquela jóia de valor inestimável, o sagrado pó do Báb." (Shoghi Effendi, Citadel of Faith, Wilmette: Bahá'í Publishing Trust, 1995, pp. 95-96). Citado em: Século de Luz, Editora Bahá'í do Brasil, 2002, pág. 186-187.

36. Mawlaví Rumí (30 de setembro de 1207-17 de dezembro de 1273), destacado sufí do século XIII cujas poesias aparecem refletidas numerosas vezes nos escritos de Bahá'u'lláh e 'Abdu'l-Bahá. É conhecido no Oriente e no Ocidente por sua monumental obra poética o Mathnaví, considerado um dos mais destacados livros do misticismo mundial e cujo conteúdo foi traduzido para diversos idiomas.


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