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Ciência, Religião e Desenvolvimento
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Iradj Roberto Eghrari : Ciência, Religião e Desenvolvimento
Ciência, Religião e Desenvolvimento
Perspectivas para o Brasil
Organizador: Iradj Roberto Eghrari

Texto da Parte I: Tradução do capítulo 4 do livro The Lab, the Temple and the Market, 2000, publicado sob permissão de Kumarian Press, Bloomfield, CT, EUA.

radução dos textos em inglês: Osmar Mendes
Revisão: Maria Trude Alves e Susan E. Moraes
Prefácio

No ano 2001, o Instituto para Estudos sobre a Prosperidade Global - ISGP, sediado em Nova York, Estados Unidos da América, nos convidou a iniciar um processo de discussão no Brasil sobre a temática da ciência, religião e desenvolvimento. Qual o papel que a ciência e a religião, dois inequívocos pilares do conhecimento humano, podem ter sobre os processos de desenvolvimento da sociedade brasileira?

Esta mesma pergunta foi colocada a outros tantos países para que respostas fossem dadas, a partir da visão de mundo de cada sociedade e considerando o ambiente sócio-cultural de cada nação. Com isto o ISGP lançou um desafio a todo o planeta para buscar respostas a indagações que nos afligem em diferentes graus: estaríamos considerando os múltiplos ângulos do conhecimento humano nesta empreitada global visando trazer bem-estar e realização individual e comunitária a todos?

Foi assim que convidamos 10 lideranças na área da sociedade civil, da academia, da ação política, do pensamento holístico, dentre outros, para discutirem os diferentes aspectos da experiência pessoal de cada um, incluindo aqueles de gênero e raça que tanto alimentam as profundas desigualdades e iniqüidades sociais que caracterizam nosso país. O ISGP elaborou um texto seminal como contribuição a estas discussões, que foi apresentado a cada colaborador resultando em 10 capítulos que formam esta obra.

A discussão sobre a interação entre ciência, religião e desenvolvimento no Brasil foi adicionalmente enriquecida com a visita do dr. Farzam Arbab, do ISGP, ao nosso país em outubro de 2003. Ele não somente teve a oportunidade de se encontrar com os dez autores convidados, mas também levou esta discussão a outros círculos da sociedade brasileira. Por ocasião daquela visita, também foi objeto de discussões um texto, preparado a pedido do ISGP pela Fundação para a Aplicação e Ensino das Ciências - Fundaec, organização sediada na Colômbia, que estuda o processo de desenvolvimento na América Latina. Este texto adicionou reflexões acerca do processo de desenvolvimento social no Brasil. Por oportuno, publicamos neste livro o documento da Fundaec, dada a sua riqueza na discussão de nosso tema central.

Não poderíamos deixar de incluir neste volume as contribuições do dr. Arbab à discussão do tema ciência, religião e desenvolvimento. Sua vasta experiência no campo do desenvolvimento encontra-se num capítulo da obra The Lab, the Temple and the Market, ainda não publicada no Brasil, mas que agora trazemos ao conhecimento do público brasileiro. Uma contribuição adicional foi dada por ele às discussões do tema numa carta que ele nos escreveu após sua visita, com reflexões sobre os desafios brasileiros no seu processo de harmonizar valores humanos e ciência enquanto pilares do conhecimento no desenvolvimento da sociedade.

Agradeço a todos os 10 autores que tornaram possível esta publicação, bem como sua amorosa paciência em nossas entrevistas que resultaram nos textos aqui publicados. Agradeço a Feizi Milani, Luis Henrique Beust e Sylvio Fausto Gil por seu empenho em convidar vários dos autores a se envolverem neste projeto e também a dar forma e conteúdo a este projeto. Agradeço a Washington Araújo por seu apoio em editar as entrevistas realizadas, transformando-as em nova matéria bruta que depois foi burilada por cada autor para que resultasse em seu texto final. Agradeço a Keli Barreto por seu incansável trabalho de transcrição das entrevistas e a Susan Moraes e Maria Trude Alves por seu trabalho de revisão final dos textos. A Osmar Mendes, meus agradecimentos pela tradução ao português dos textos do ISGP e da Fundaec, bem como daqueles de autoria do dr. Farzam Arbab.

Por fim meus agradecimentos ao ISGP por suas orientações e apoio para que esta obra viesse à existência.

Esperamos, assim, que esta seja uma contribuição para um Brasil mais justo e eqüitativo.

Iradj Roberto Eghrari
Maio de 2005
Introdução

As profundas mudanças que estão agora redimensionando os assuntos humanos dão a entender que novos modelos de vida - de longo alcance em sua capacidade de despertar o potencial humano - estão ao alcance de uma comunidade global em rápida transformação. Os avanços no conhecimento numa gama cada vez mais ampla de disciplinas, o surgimento de mecanismos internacionais que promovem a tomada coletiva de decisões e ações, e a crescente capacidade das massas da humanidade de articular suas aspirações e necessidades, pressagiam um grande impulso na evolução social do planeta. Dar-se conta da promessa contida nessas transformações, porém, exigirá um re-exame analítico dos modelos atuais do desenvolvimento social e econômico.

As condições de justiça e eqüidade, que promovem tanto o bem-estar individual como o coletivo, no entanto, permanecem como uma meta ilusória. Em um extremo, vemos a privação e o desespero que afligem um vasto número de povos no mundo; de outro, um segmento limitado da raça humana usufrui uma afluência manifesta e desenfreado. Padrões enraizados de dependência e pobreza são testemunhados com grande desilusão no atual sistema social. A sociedade em geral, porém, está rejeitando como irrelevante para o despertar das esperanças e energias dos indivíduos, em todas as partes do planeta, a interminável busca da riqueza em um mercado impessoal e a frenética vivência das várias formas de auto-indulgência. Não mais é possível manter a crença de que o enfoque dado ao progresso social e econômico, nascido do conceito materialista de vida, seja capaz de levar a humanidade à tranqüilidade e à propriedade que tanto busca.

As dificuldades encontradas durante quase cinco décadas de trabalho de desenvolvimento, particularmente a incapacidade de conseguir o envolvimento das próprias pessoas ao qual tais esforços visam servir, demonstram claramente a necessidade de novos conceitos e modelos de desenvolvimento. Embora os que trabalham no campo de desenvolvimento tenham aos poucos se conscientizado de muitos fatores interativos subjacentes ao progresso social e econômico, o discurso contemporâneo de desenvolvimento continua a ser baseado em limitadas premissas e enfoques.

É evidente que um conjunto complexo, embora vital, de questões relacionadas à natureza e ao propósito da vida humana precisam ser incorporadas no pensamento do desenvolvimento. Atenção deve ser dada a uma área de assuntos que atinjam o âmago da identidade e da motivação humanas. Mais freqüentemente do que nunca, as iniciativas sociais e econômicas têm negligenciado os valores, tradições e percepções dos principais interessados no processo de desenvolvimento - as próprias pessoas. A agenda de desenvolvimento internacional tem em grande parte ignorado o fato de que a grande maioria dos povos do mundo não vêem a si mesmos simplesmente como seres materiais, que só dão atenção às exigências e circunstâncias materiais, mas, pelo contrário, como seres morais preocupados com a consciência e com os propósitos espirituais. E, desta forma, ficou evidente que, prioritariamente, o critério prioritário econômico e material que agora guia as atividades de desenvolvimento deve ser ampliado para incluir aquelas aspirações espirituais que dão vida à natureza humana.

As estratégias e os programas de desenvolvimento existentes estão longe de levar em consideração àquelas dimensões essenciais sociais e espirituais da vida, tão primordiais para o bem estar fundamental do ser humano. A própria civilização não surge meramente do progresso material, mas, sim, é definida por, e fundamentada em ideais e crenças compartilhadas que unem os fatores componentes da sociedade. O que singularmente define a experiência humana é o componente transcendente da vida. É esta a dimensão da existência que enriquece, enobrece e provê um direcionamento aos seres humanos. É esta dimensão de vida que libera as capacidades criativas na consciência e salvaguarda a dignidade do ser humano.

Embora os enfoques pragmáticos para a solução de problemas exerçam obviamente um papel central nas iniciativas de desenvolvimento, dar vazão às manifestações surgidas das raízes da motivação humana provê o impulso essencial que assegura um genuíno progresso social. Quando os princípios espirituais são completamente integrados nas atividades de desenvolvimento da comunidade, as idéias, as percepções e as medidas práticas que surgem serão certamente aquelas que promovem a autoconfiança e preservam a honra humana, desta forma evitando hábitos de dependência, e progressivamente eliminando as condições de flagrante disparidade econômica. Um enfoque de desenvolvimento que incorpore os imperativos morais e espirituais, levarão com maior possibilidade à mudanças duradouras, tanto na conduta individual como coletiva.

Em essência, o processo de desenvolvimento está em última instância relacionado tanto com a transformação das pessoas como das estruturas sociais que os membros da sociedade criam. O surgimento de formas de vida pacíficas e progressistas exigem tanto uma reordenação interna como externa, e tal reordenação somente ocorrerá quando o coração humano for transformado. Então, para ser efetivo, o desenvolvimento precisa voltar-se diretamente para a vida interna e para o caráter dos seres humanos, como também para a organização da sociedade. Seu propósito terá de ser a promoção de um processo de transformação social que engendre a cooperação, a compaixão, a retidão de conduta, e a justiça - transformações que permearão todos os aspectos do relacionamento que dirigem a atividade humana.

Deste ponto de vista, o progresso material é devidamente entendido não como um fim em si mesmo, mas, sim, como um veículo para o progresso social, intelectual e moral. De forma semelhante, qualquer avanço significativo do bem-estar material somente decorre quando há a aplicação concreta dos preceitos espirituais como eqüidade, fidelidade e altruísmo. O reconhecimento da conexão inseparável entre os aspectos materiais e espirituais da vida, portanto, dá nascimento a uma noção fundamentalmente diferente de desenvolvimento.

A experiência histórica1

1. Muito do argumento desta seção e das seguintes, foram desenvolvidas em maior profundidade em "Promovendo um Discurso sobre Ciência, Religião e Desenvolvimento" por Farzam Arbab (em "The Lab, the Temple and the Market").

As origens da atividade moderna de desenvolvimento remontam a uma série de circunstâncias associadas com o colapso dos sistemas coloniais e com o surgimento de novas nações após a Segunda Guerra Mundial. Os primeiros programas e estratégias de desenvolvimento foram diretamente influenciados pelo modelo bem sucedido da reconstrução européia realizado com o Plano Marshall. Esse modelo propunha um caminho de modernização voltado quase que exclusivamente para a industrialização. O impulso básico desse enfoque era alcançar um crescimento máximo na economia de países em desenvolvimento, o qual, acreditava-se, geraria riquezas e empregos suficientes para gradualmente envolver a maioria de suas populações em atividades produtivas. O acúmulo de capital, a transferência de tecnologia e know-how correspondente, a introdução de modernos métodos de administração, e a significativa injeção de ajuda externa foram os principais elementos de um enfoque que previa trazer os benefícios da modernidade para as massas do mundo.

Embora bem intencionado, este paradigma de modernização provou-se desastroso em muitos aspectos. Em sua tentativa de despertar o potencial dos povos dos países em desenvolvimento, o processo de industrialização resultou em grandes migrações das áreas rurais para as áreas urbanas e a concomitante ruptura da coesão social. Tal migração não ocorreu sem intenção, pois uma forma necessária e até desejável para acelerar o crescimento econômico. Implícito nesse enfoque de desenvolvimento estava a visão de que a maioria dos habitantes das regiões rurais tinha uma forma de vida improdutiva que precisava ser redirecionada. Sua concepção geral revelou as percepções errôneas e paternalistas dos planejadores do desenvolvimento naquela época.

À medida em que a ineficácia das estratégias empregadas para alcançar ambiciosos objetivos de crescimento tornava-se cada vez mais evidente, o foco das atenções voltou-se, durante a década dos anos sessenta, para as questões culturais, demográficas e tecnológicas. Tendo sido o crescimento econômico o objetivo máximo, recursos consideráveis foram alocados para a exploração de meios de superar os obstáculos em seu caminho. Programas voltados à saúde e educação, e esforços concentrados para modernizar a agricultura através da Revolução Verde, são freqüentemente citados como os sucessos mais notáveis daquele período. Uma concepção subjacente desses programas foi que as populações rurais eram na verdade muito capazes e que precisam apenas das ferramentas apropriadas. Em suma, se a base tecnológica dessas pessoas pudesse ser aperfeiçoada, a prosperidade econômica seria uma decorrência certa.

A Revolução Verde foi apenas parcialmente bem sucedida. A produção de alimentos cresceu de forma notável, e milhões foram praticamente salvos da fome, que era iminente. Mas a lacuna existente entre os ricos e os pobres crescia também, tanto nas vilas como nas cidades que recebiam um fluxo constante de migrantes em busca de uma vida melhor. Como resultado, o pensamento desenvolvimentista começou a enfatizar as necessidades dos pobres e sua parcela e participação no crescimento econômico. A compreensão de que mesmo depois de duas décadas de atividade desenvolvimentista o número daqueles que viviam em pobreza absoluta chegava perto de um bilhão, teve um efeito surpreendente nos que criavam as políticas de desenvolvimento como naqueles que nela trabalhavam. Deu nascimento a um novo exame da questão da eqüidade. Agências internacionais começaram a buscar novas iniciativas voltadas especificamente para cuidar dos "mais pobres dos pobres".Crescimento com eqüidade, e atenção às necessidades humanas básicas, tornaram-se as preocupações centrais dos envolvidos em processos de desenvolvimento.

Ao final da terceira década de desenvolvimento, milhares de projetos realizados não somente pelos governos e agências internacionais, mas também por uma enorme quantidade de organizações não-governamentais, tornaram possível fazer-se uma análise bem mais sofisticada do progresso social e econômico. Intensos diálogos e estudos trouxeram luz às minúcias intrincadas de um grande número de temas, incluindo: tecnologia apropriada, o papel das mulheres no planejamento, planejamento e implementação de projetos como um meio de estimular o crescimento comunitário e a capacidade institucional, preservação ambiental, desenvolvimento centrado na pessoa humana, organização comunitária e avaliação projetos. Um processo de aprendizado que reconhecia a grande complexidade do desenvolvimento estava finalmente a caminho.

No entanto, não se percebia, de um modo geral, nenhuma mudança fundamental na forma como os pobres eram vistos. A imagem predominante, que persistia desde o início dos anos setenta, reduz essencialmente a realidade vigente na época a uma interminável soma de problemas e necessidades - pessoas sofriam, em razão das condições inadequadas de alimentação, moradia, saúde e infra-estrutura sanitária; o acesso à educação era limitado; faltava capital e os recursos da tecnologia moderna; eram incapazes de alcançar níveis razoáveis de consumo. Embora o reconhecimento das inúmeras causas subjacentes à condição de pobreza represente um passo a frente, não é de todo claro como poderá surgir um enfoque orgânico e integrado de desenvolvimento que envolva as pessoas mais afetadas. Medidas, fragmentadas ou parceladas, voltadas a problemas bem específicos mostraram-se falhas, e sem dúvida, continuarão a falhar, em melhorar a condição generalizada de miséria e desordem social que agora envolve significativas áreas do planeta.

Hoje, mesmo com uma ênfase crescente na participação e potencialização da comunidade local, os programas de desenvolvimento são quase sempre administrados ou iniciados de fora, em vez de nascer das raízes da sociedade. Os verdadeiros enfoques participativos ao progresso social e econômico que são de natureza holística ainda por ser implementados a um nível que seja significativo. Mas, mais importante, o desenvolvimento centrado na pessoa humana, por mais criativas que sejam suas atuais manifestações, é pouco provável que leve a uma melhoria sistemática da vida das pessoas se não houver uma visão unificada da vida e da sociedade. Tal visão precisa necessariamente basear-se em ampliar o profundo entendimento espiritual da condição humana, já aceita por uma parte preponderante da população do planeta. É, portanto, difícil ver como a teoria e a prática do desenvolvimento possam passar por uma mudança fundamental a não ser que o discurso correspondente admita o reexame da natureza do ser humano. Tal empreitada não pode ser feita simplesmente através de uma tentativa especulativa e expressões arbitrárias de opiniões desinformadas. Para uma consideração séria deste assunto vital, é imprescindível que haja um novo nível de diálogo entre a ciência e a religião.

Ciência e Religião

O reconhecimento do elo vital entre os aspectos práticos e espirituais da vida humana, leva inevitavelmente à reformulação do que constitui bem-estar e dos possíveis mecanismos para se atingir tal condição de vida. Esta compreensão revela a necessidade de uma exploração sistemática dos papéis que a ciência e a religião exercem no processo de desenvolvimento.

Um primeiro passo de uma pesquisa desta natureza é entender as funções essenciais da ciência e da religião na sociedade humana. Através da História, as civilizações dependeram da ciência e da religião como os dois sistemas principais do conhecimento que guiaram seu desenvolvimento e canalizaram seus poderes morais e intelectuais.2 Os métodos da ciência permitiram à humanidade chegar a um entendimento coerente das leis e dos processos que governam a realidade física, e, em um certo grau, a operação da própria sociedade. As percepções decorrentes da religião levaram a um entendimento relacionado às questões mais profundas dos propósitos e das iniciativas humanas. Durante os momentos da História quando esses dois aspectos do conhecimento humano atuaram em harmonia, os povos e as culturas se libertaram das práticas e dos hábitos destrutivos, e alcançaram novos níveis de realizações técnicas, artísticas e éticas. Na verdade, a ação é uma decorrência do conhecimento, e, nesse sentido, ciência e religião são instrumentos ou expressões da vontade humana.

2. A Prosperidade da Humanidade, uma declaração da Comunidade Internacional Bahá'í, 1995.

A ciência e a religião, porém, têm sido normalmente consideradas como inerentemente conflitantes, mesmo como esferas mutuamente excludentes do esforço humano. Que o aspecto vitalizante da religião tem quase sempre sucumbido a diferentes formas de dogmatismo, superstição e facções teológicas, é um fato bem evidente na História. O Iluminismo, na verdade, marcou uma guinada crucial no despertar da consciência humana das garras da ortodoxia e do fanatismo religiosos. Mas, em sua rejeição da religião, o Iluminismo também rejeitou o centro moral que a religião provê, criando uma dicotomia ainda mais profunda e ainda existente entre o racional e o sagrado. Os resultados desta ruptura artificial entre a razão e a fé podem ser vistos no ceticismo, na alienação e no materialismo corrosivo que permeiam a vida contemporânea.

Para a vasta maioria da humanidade, a proposição de que a natureza humana tem uma dimensão espiritual é uma verdade evidente que encontra expressão em todas as esferas da vida. Dentro do ser humano existe um anseio fundamental que o leva a uma transcendência, para a contemplação das causas subjacentes à existência e aos mistérios da própria realidade humana. Esses anseios existenciais básicos foram atendidos através dos séculos pelas religiões do mundo. Os impulsos espirituais despertados por esses sistemas religiosos têm sido a principal influência no processo civilizatório do caráter humano. Através dos ensinamentos e das orientações morais da religião, grandes segmentos da humanidade aprenderam a disciplinar seus instintos e a desenvolver qualidades que conduzem à ordem social e ao progresso cultural. Tais qualidades, como - compaixão, tolerância, confiabilidade, generosidade, humildade, coragem e disposição de sacrificar-se pelo bem comum - formou as bases essenciais, embora ainda invisíveis, de uma vida comunitária em evolução. O reconhecimento e o aprimoramento da natureza espiritual da humanidade produziram a coesão e a unidade de propósito de uma sociedade e servem como fonte de energia para as expressões vitais do processo civilizatório.

Em sua forma mais autêntica, sem adições dogmáticas, a religião transmite verdades morais e espirituais que de forma alguma contradizem as verdades descobertas pela ciência. Não existe base substancial para afirmar que haja uma incompatibilidade intrínseca entre a ciência e a religião. O próprio processo da descoberta científica envolve faculdades humanas como a imaginação e a intuição, além da razão, e não pode ser considerada simplesmente como um conjunto de procedimentos bem definidos. A dicotomia histórica entre a razão e a fé é falsa. Trata-se de faculdades da natureza humana que se complementam no processo da descoberta e no entendimento da realidade; ambas são ferramentas que permitem à sociedade alcançar a compreensão da verdade.

Esta perspectiva é reforçada pelos recentes progressos no campo científico, que dão margem a uma forte convergência epistemológica de vários pontos de vista universais das religiões. A física e a psicologia modernas, por exemplo, colocam considerável dúvida sobre a noção de que a matéria é o elemento primário da realidade, ou que a consciência humana é um simples derivado de processos neuro-químicos. O reducionismo e o determinismo associados com a mecânica newtoniana estão agora dando lugar ao entendimento dos fenômenos físicos pelos quais o universo é considerado como um todo unificado, sempre em evolução e interconectado. O fato de que as leis físicas possibilitam o surgimento de configurações biológicas complexas que surgem e evoluem ao ponto da consciência, demonstra evidência de leis, e até mesma constituição, organizacionais de um nível mais elevado. Em suma, nada existe de anticientífico na concepção de que uma força Criativa ou Divina está em operação no mundo.

Esses pontos somente têm importância, até agora, por estimularem um intercâmbio mais rigoroso e unificado entre as correntes religiosas e científicas de pesquisa. Juntas, ciência e religião provêm os princípios organizacionais fundamentais pelos quais indivíduos, comunidades e instituições funcionam e evoluem. A utilização dos métodos da ciência permite às pessoas tornarem-se mais objetivas e sistemáticas em seus enfoques para a solução de problemas e em seu entendimento dos processos sociais, enquanto que a confiança nas inclinações espirituais dos indivíduos prove o ímpeto motivacional que alimenta e dá continuidade à ação positiva. Uma transformação significativa das condições da sociedade não envolve simplesmente a aquisição de habilidades técnicas, mas, mais importante ainda, o desenvolvimento das qualidades e atitudes que estimulam os padrões criativos e cooperativos de interação humana. A compreensão das forças que podem produzir transformações nas atitudes e na conduta é uma área de estudo que se encontra na interface entre ciência e religião.

Um discurso que considere o domínio material e o espiritual da existência como interligados em um processo de desenvolvimento, implica uma ruptura com a atual metodologia de desenvolvimento. Que a ciência e a religião têm papeis a exercer no campo do desenvolvimento, papéis que se reforçam mutuamente, não é mais um assunto de debate.3 As questões sociológicas e organizacionais relacionadas ao progresso social e econômico devem, necessariamente, referir-se às perspectivas e aos valores espirituais. Porém, a maneira pela qual as perspectivas espirituais são integradas nas atividades de desenvolvimento precisam envolver os mesmos métodos lógicos e rigorosos empregados pela ciência. Isso irá assegurar que os esforços desenvolvimentistas estejam ancorados a resultados tangíveis e objetivos. Na verdade, se a religião deve ser parceira da ciência na arena do desenvolvimento, suas contribuições específicas precisam ser cuidadosa e minuciosamente analisadas. É infelizmente o caso da religião institucional, que se vê freqüentemente sobrecarregada com doutrinas e práticas que militam contra seus esforços na busca da melhoria das condições materiais da vida humana. As distorções sectárias que estimulam a passividade, a aceitação da pobreza, a exclusão social ou a desigualdade entre os sexos, precisam ser avaliadas por conceitos espirituais universais que enfatizam a centralidade da justiça e do serviço ao bem estar comum. Assim, um novo enfoque de desenvolvimento deve também buscar identificar as tradições de paternalismo e outros modelos de conduta que estejam impedindo as iniciativas de desenvolvimento.

3. Pode-se questionar que os assuntos morais e espirituais têm estado historicamente ligados a doutrinas teológicas conflitantes, e que, portanto, não podem ser objeto de comprovação científica. Assim esses assuntos não se encaixam na estrutura das preocupações de desenvolvimento da comunidade internacional. Reconhecer nelas um papel significativo seria abrir a porta justamente para aquelas influências dogmáticas que têm alimentado o conflito social e bloqueado o progresso humano. Existe, indubitavelmente, algo de verdade em tal argumento. É algo inteiramente inaceitável concluir, no entanto, que a resposta se encontra em desencorajar a investigação da realidade espiritual e ignorar as raízes mais profundas da motivação humana.

Ciência, Religião e Capacitação.

Como, então, infundir em nosso entendimento, consideração e prática do desenvolvimento? O desafio não é novo. Através de décadas, os pensadores da área de desenvolvimento repetidamente se viram diante de assuntos relacionados com valores e crenças. Muito freqüentemente, porém, eles recuaram, não se dedicando a um exame profundo do assunto. Se os indivíduos e as comunidades desejam tornar-se os promotores principais de seu bem estar físico e social, eles precisam recorrer aos postulados espirituais e aos sistemas de crença que dêem visão e enfoque aos seus esforços. Mas isso deve ser feito de maneira a desenvolver uma forma visível de suas capacidades para definir, analisar e satisfazer suas próprias necessidades.

O esforço para aprimorar a capacidade humana, capacitar mão de obra construtiva, criar mudanças comunitárias e institucionais, é algo cada vez mais reconhecido como o propósito fundamental do desenvolvimento. Visto como agente de capacitação, o desenvolvimento se volta principalmente para a geração, aplicação e difusão do conhecimento. Se for reconhecido o fato de que o conhecimento é em natureza tanto espiritual como material, as metodologias da ciência e as percepções da religião podem, trabalhando juntas de uma forma sinergética, prover as ferramentas essenciais para a criação de sistemas sociais harmoniosos e justos.4 Colocando-se a geração e a aplicação do conhecimento no centro do planejamento e da atividade desenvolvimentista, tornamos possível estudar as implicações práticas dos valores religiosos, particularmente o papel que tais valores exercem na geração de um enfoque unificado voltado à transformação social nas raízes da sociedade.

4. A colaboração entre religião e ciência no campo do desenvolvimento pode assumir muitas formas. Um exemplo óbvio encontra-se na área da educação moral. Considerando que a conduta moral é uma expressão concreta da natureza espiritual da humanidade, a formulação de teorias e métodos educacionais e métodos que sistematicamente promovam o desenvolvimento moral, é algo de particular importância. Aprender a aplicar os conceitos morais e espirituais à realização do progresso material, poderia, de fato, ser considerado como um pré-requisito essencial de todas as iniciativas sociais e econômicas.

É fato geralmente aceito que os materialmente pobres precisam participar diretamente nos esforços para a melhoria de seu próprio bem-estar. Mas a natureza dessa participação não foi ainda devidamente explorada. Fica mais fácil entender essa afirmativa se a examinarmos no contexto do papel do conhecimento conforme apresentado aqui. A participação deve ser substancial e criativa; deve permitir que as próprias pessoas tenham acesso ao conhecimento e que sejam estimuladas a aplicá-lo. Especificamente, não é suficiente aos habitantes do globo engajar-se em projetos como meros beneficiários dos frutos do conhecimento, mesmo que eles tenham tido alguma ingerência em determinadas decisões. Eles precisam participar na aplicação do conhecimento para criar o bem-estar, desta forma gerando novos conhecimentos e contribuindo de uma forma substancial e significativa para o progresso humano. Se, na verdade, uma comunidade controla os meios de utilização do conhecimento, e for guiada por princípios espirituais, será então capaz de desenvolver os recursos materiais e as tecnologias que servirão de forma adequada às suas reais necessidades.

A capacidade de qualquer grupo de participar de forma completa em seu próprio processo de desenvolvimento depende de uma vasta gama de capacidades inter-relacionadas, aos níveis do indivíduo e do grupo. Dentre as mais importantes estão as capacidades de tomar iniciativas de uma forma criativa e disciplinada; pensar sistematicamente para a compreensão dos problemas e para encontrar soluções para os mesmos; usar métodos de tomada de decisão que gerem antagonismo e que sejam inclusivos; tratar de forma eficaz e acurada com as informações, mais do que responder inconscientemente à propaganda comercial ou política; fazer escolhas de tecnologias de maneira bem informada e apropriada, e desenvolver as habilidades e os comprometimentos necessários para gerar e aplicar o conhecimento técnico; organizar e engajar-se em processos de produção ecologicamente consistentes; contribuir à criação e administração eficazes de projetos comunitários; colocar em ação e participar de processos educativos que levem ao crescimento pessoal e a um aprendizado de longo prazo; promover solidariedade e unidade de propósito, pensamento e ação entre os membros de uma comunidade; substituir os relacionamentos baseados na dominação e na competição por relacionamentos baseados na reciprocidade, colaboração e serviço ao próximo; interagir com outras culturas de uma forma que leve ao progresso de sua própria cultura e não à sua degradação; estimular o reconhecimento da nobreza essencial dos seres humanos; manter altos padrões de saúde física, emocional e mental; imbuir na interação social um elevado senso de justiça e manifestar retidão na administração pessoal e pública.

Certamente incompleta, esta lista sugere apenas a constelação de capacidades necessárias à construção da tecitura moral, econômica e social da vida coletiva. A lista enfatiza o papel vital tanto dos recursos científicos como religiosos na promoção do desenvolvimento. Alerta-nos sobre a gama de valores e atitudes que estimulam as capacidades básicas, como também os conceitos, informações, habilidades e métodos a serem empregados em seu desenvolvimento sistemático. Também destaca a importância do aprendizado estruturado na geração e manutenção de um conjunto integrado de atividades sociais e econômicas.

Portanto, a capacitação conforme aqui proposta implica possibilitar ao indivíduo manifestar poderes inatos de uma forma criativa e metódica, organizar as instituições para o exercício da autoridade de forma a que esses poderes sejam canalizados no sentido da elevação dos membros da sociedade, e o desenvolvimento da comunidade para atuar como um ambiente que leve à liberação do potencial individual e ao enriquecimento da cultura. O desafio de todos os três é aprender a utilizar os recursos materiais e os dons intelectuais e espirituais para o progresso da civilização.

Onde começar?

Como começar um discurso sobre os papéis complementares da ciência e da religião na promoção da transformação social? Quais são as áreas concretas da atividade humana que podem ser afetadas de forma mais significativa? Como ponto de partida, sugere-se que o discurso se concentre no processo de capacitação nas seguintes áreas:

Educação

Tendo em vista que o progresso social decorre da criação e disseminação do conhecimento, um aspecto saliente da estratégia de desenvolvimento nas últimas décadas tem sido a educação. Inicialmente, o foco dado à infra-estrutura física evoluiu para incluir assuntos relacionados ao currículo, administração, capacitação pedagógica, tecnologia educacional, e o relacionamento entre a escola e a comunidade à sua volta. No entanto, a despeito de notáveis realizações, especialmente em prover educação primária em uma base universal, as metodologias educacionais estão, em sua maioria, falhando em liberar e cultivar o potencial humano. Um enfoque fragmentado voltado à busca do conhecimento está resultando numa experiência educacional cumulativa, a qual não permite aos estudantes ver as relações essenciais entre as diferentes áreas da investigação humana e a realidade social. Esta fragmentação é exacerbada pela ênfase colocada apenas na absorção de fatos, mais do que no entendimento de importantes conceitos e processos. Ainda mais, muitos assuntos relacionados aos anseios e moralidade da pessoa humana são raramente considerados.

A situação atual exige uma nova forma de ver o inteiro conjunto do conhecimento humano, e como ele pode ser estudado e expandido de uma forma holística. A educação deve esforçar-se para desenvolver um conjunto integrado de capacidades - técnicas, artísticas, sociais, morais e espirituais - de forma a que as pessoas possam conduzir vidas com um propósito bem definido e tornar-se agentes de uma transformação social positiva. É a criação de currículos e metodologias adequados que estimulam tais capacidades inter-relacionadas, que exigirá uma parceria efetiva entre a ciência e a religião.

Atividade e Organização Econômica

Como fator central à tarefa de reconceituar a organização dos assuntos humanos, está o entendimento apropriado do papel da atividade econômica. O desequilíbrio econômico e a desigualdade que se vêem tão disseminados no mundo, resultam diretamente do fracasso em colocar questões econômicas em um contexto mais amplo da existência social e espiritual da humanidade. As iniciativas econômicas devem estar voltadas para servir às necessidades das pessoas; não é de se esperar que as sociedades devam modelar-se e adequar-se a modelos econômicos específicos - particularmente aqueles que adotam hábitos desenfreados de aquisição e consumo.

Criar modelos ecologicamente sustentáveis de atividade econômica, que se estendam do nível local à abrangência global, exige uma reorientação fundamental das estruturas tanto dos princípios como das instituições que governam a produção e o consumo. Enfoques que estimulem a geração e a distribuição da riqueza em micro-regiões rurais, e políticas que impeçam que os processos de globalização marginalizem as iniciativas econômicas procedentes das raízes da sociedade, merecem uma atenção particular dos estudiosos. Por fim, a sociedade precisa desenvolver novos modelos econômicos baseados em percepções que surgem de um entendimento compassivo da experiência compartilhada, da visão dos seres humanos em suas relações mútuas, e do reconhecimento do papel central que a família e a comunidade desempenham no bem estar social e espiritual. Os recursos devem ser desviados das atividades e dos programas que são nocivos ao indivíduo, às comunidades e ao ambiente e direcionados para aqueles que mais adequadamente visem à criação de uma ordem social que cultive as ilimitadas potencialidades existentes nos seres humanos. Tanto a ciência como a religião tem, portanto, um papel chave em desenvolver sistemas econômicos que sejam fortemente altruístas e cooperadores em natureza.

Desenvolvimento Tecnológico

As trajetórias da tecnologia são formadas por uma variedade de fatores políticos, sociais e econômicos. O atual direcionamento do desenvolvimento tecnológico, porém, está sendo orientado primariamente pelas forças de mercado que não refletem as necessidades básicas dos povos do mundo. Ainda mais, as políticas tecnológicas dos governos raramente dão atenção explícita às exigências sociais e ambientais, enquanto que as políticas voltadas a estas duas áreas raramente levam em conta as oportunidades tecnológicas. Faz-se necessária maior coerência.

Definir e entender a necessidade tecnológica devem ser um aspecto chave de qualquer processo participativo das bases da comunidade. A capacidade de avaliação, inovação e adaptação tecnológica precisa ser promovida entre as próprias pessoas. Um primeiro passo importante nessa direção é estimular a compreensão e o respeito à base de conhecimento existente em uma comunidade ou cultura. Isso irá ajudar a comunidade a desenvolver confiança em sua habilidade de conceber e implementar soluções inovadoras a problemas difíceis. Quando existe tal confiança, a ciência e a tecnologia podem melhor e mais rapidamente ser utilizadas como ferramentas para preservar e ampliar a identidade cultural. Neste respeito, o estabelecimento de centros locais e regionais de aprendizado exercerá um papel crucial não somente na educação e capacitação técnicas, mas também na sistematização e expansão do conhecimento nativo.

Se o comprometimento espiritual e o princípio moral constituírem o caráter subjacente dos princípios da vida comunitária, as descobertas científicas e as inovações técnicas serão utilizadas de forma a servir para enriquecer a experiência individual e coletiva. A tomada de decisão tecnológica, que é diretamente guiada por sistemas locais de valores, assegurará que os usos supérfluos da tecnologia sejam evitados. Tal orientação moral também chamará a atenção para os problemas mais importantes enfrentados pelas comunidades. Um exemplo de particular importância é desenvolver formas de tecnologia sustentável em áreas rurais. O uso integrado de recursos naturais, como o alimento, a energia e os materiais tornar-se-ão cada vez mais uma preocupação básica do desenvolvimento das vilas e pequenas cidades. Especialmente relevante neste aspecto são os sistemas e técnicas que complementam o estilo de vida rural das vilas.

Governança

A boa governança é essencial ao progresso social. Governança é muitas vezes entendida como governo, mas na realidade envolve muito mais. A governança ocorre em todos os níveis e engloba as formas que o governo formal, os grupos não-governamentais, as organizações comunitárias e o setor privado administram recursos e os assuntos em geral. Uma forma eficaz de governar é necessária se as comunidades devem manter seu equilíbrio, direcionar-se corretamente nas dificuldades, e responder criativamente aos desafios e às oportunidades que se encontram diante delas. Três fatores que determinam fortemente a condição de governança são a qualidade de liderança, a qualidade dos governados e a qualidade das estruturas e dos processos existentes.5 Todos os três exigem o desenvolvimento de capacidades.

5. Valorizando a Espiritualidade no Desenvolvimento: Considerações Iniciais para Estabelecer Indicadores de Desenvolvimento Baseados em Conceitos Espirituais, uma declaração da Comunidade Internacional Bahá'í , 1998.

Existe um emergente consenso internacional sobre as características básicas da boa governança, especialmente em relação a um governo formal. Essas características incluem democracia, domínio da lei, responsabilidade, transparência e participação da sociedade civil. Mas as instituições verdadeiramente eficazes de governança - instituições que estejam livres da corrupção e que engendrem confiança pública - surgirão somente quando processos de tomada de decisão coletiva e ações coletivas forem guiados por princípios espirituais. O desenvolvimento de mecanismos de governança que atendam a este padrão exigirá tanto a capacitação prática como a moral. Se as instituições governantes de fato proverem uma participação significativa dos cidadãos na formação de conceitos, implementação e avaliação dos programas e políticas públicas, então a capacidade da comunidade de realizar e administrar mudanças irá, com certeza, ser grandemente enriquecida. Isso é verdade tanto para as instituições operando numa vila como nível internacional.

Justiça

A justiça é um dos mais importantes e imprescindíveis requisitos de toda atividade desenvolvimentista. É o único instrumento que assegura que o acesso e as oportunidades sejam eqüitativamente distribuídos. Se a justiça for realmente o principal fator determinante do planejamento do desenvolvimento e de sua implementação, os recursos, embora limitados, não serão desviados para fins de execução de projetos extemporâneos às prioridades sociais ou econômicas essenciais de uma comunidade. Somente a certeza de que a justiça será o princípio guia da interação humana fará com que os povos da terra se dediquem com entusiasmo e confiança às iniciativas voltadas à promoção do progresso social e econômico. As qualidades humanas relevantes, como honestidade, boa vontade de trabalhar e um espírito de cooperação, somam-se com sucesso para a realização das metas coletivas, e isso possibilitará a todos os membros da sociedade - na verdade cada grupo e cada elo componente da sociedade - ter certeza de estarem sob a proteção de padrões e seguros de benefícios que serão aplicados a todos de forma eqüitativa.6

6. A Prosperidade da Humanidade.

A justiça não pode ser vista como um ideal inatingível. mas como uma capacidade crescente que os indivíduos, as comunidades e as instituições devem continuamente desenvolver. A realização da justiça depende da participação universal e da ação que envolvam todos os membros e agências da sociedade. Criar uma cultura de justiça, ou mais especificamente, de direitos humanos, está intimamente ligado a um processo de desenvolvimento moral e espiritual. Quando tal cultura começa a surgir, os assuntos práticos tais como a capacitação na administração e na aplicação efetiva da justiça, a distribuição eqüitativa dos recursos da comunidade, e a elevação social das pessoas e grupos historicamente excluídos dos benefícios e oportunidades oferecidos pela sociedade poderão ser eficazmente tratados. Então, com a justiça reconhecida como um fator indispensável da vida diária, torna-se essencial a colaboração entre as percepções científica e religiosa da raça humana.

Olhando para o futuro

Neste momento da história, quando até agora pessoas e culturas isoladas estão interagindo pela primeira vez, e quando a própria terra foi contraída a uma aldeia, a atividade desenvolvimentista precisa necessariamente ser um empreendimento global, cujo propósito é criar tanto o bem-estar material como o espiritual dos habitantes do planeta. Reconhecer que a humanidade é um mesmo povo com um destino comum, é entender que o desenvolvimento deve deixar de ser algo que alguém realiza em favor dos outros. A tarefa de construir uma sociedade global justa e pacífica deve envolver todos os membros da família humana.

Se as capacidades dos povos do mundo hão de alcançar os níveis necessários para enfrentar as complexas exigências da hora presente, os recursos, tanto da razão como da fé, devem ser utilizados. As iniciativas de desenvolvimento não levarão a progressos tangíveis e duráveis do bem-estar físico sem os recursos daqueles postulados espirituais universais que dão direcionamento e significado à vida. Enquanto a ciência oferece os métodos e os instrumentos para a promoção social e econômica, ela sozinha não pode determinar a direção a seguir; a meta do desenvolvimento não pode surgir de dentro do próprio processo. Uma visão é necessária, e a visão apropriada jamais será alcançada enquanto a herança espiritual da raça humana continue a ser considerada como algo marginal às políticas e programas de desenvolvimento.

Instituto para Estudos sobre a Prosperidade Global

Ciência, Religião e Desenvolvimento - Perspectivas para o Brasil

Parte I
Alguns Pensamentos Sobre a Sociedade Brasileira

Uma Contribuição da Fundação para a Aplicação e Ensino das Ciências na Colômbia

Outubro de 2003

Este trabalho foi feito com a intenção de contribuir para as deliberações dos líderes de pensamento no Brasil, na definição dos rumos para esta nação. Seu objetivo é modesto. Apresentamos aqui apenas um conjunto de idéias que, se aceitas, poderão ser exploradas em detalhes e expandidas. Ao escrever este documento, fazemos referências a vários documentos internos da FUNDAEC, que refletem nossas próprias deliberações, como também ao documento "Promovendo um Discurso sobre Ciência, Religião e Desenvolvimento", publicado no livro The Lab, the Temple and the Market, do qual são feitas muitas citações e referências.

Nossa decisão ao oferecer estas idéias nasceu da convicção de que as oportunidades e os desafios extraordinários que o povo brasileiro agora enfrenta exigem que o futuro da nação seja considerado em termos de dois imperativos: trazer prosperidade para a inteira população do país e contribuir de forma destacada para o desenvolvimento de uma emergente civilização global. Estes dois objetivos inter-relacionados demandam uma nova concepção, ainda a ser formulada, do desenvolvimento social e econômico do Brasil.

Décadas de experiência demonstraram que ampliar as vantagens de pequenos grupos - quase sempre às custas de outros - a fim de acelerar o crescimento econômico, não constitui uma estratégia sólida de desenvolvimento. Os ganhos assim alcançados raramente se mantêm com o passar do tempo. Em verdade, com freqüência conduzem à discórdia e a novos problemas. É igualmente aparente que uma estreita visão financeira e uma ingênua fé na tecnologia pouco fazem para aliviar a pobreza. O que é extremamente necessário é o desenvolvimento de capacidades nas pessoas de um país, a fim de se tornarem os verdadeiros protagonistas no processo de mudanças. O maior recurso para o desenvolvimento do Brasil é o seu povo. Este deve ser potencializado para levar avante suas responsabilidades individuais e coletivas, rumo à promoção dos objetivos fundamentais da sociedade brasileira.

Este trabalho propõe uma mudança nas prevalecentes concepções materialistas de desenvolvimento, as quais, achamos, já demonstraram sua incapacidade para diminuir a pobreza no mundo. Não queremos dizer que grande importância não deva ser dada à multiplicação dos meios materiais. Tal mudança sugere, ao contrário, que as estratégias de desenvolvimento devem se focar em seus protagonistas - a inteira população do Brasil - para assegurar que os sistemas e os processos venham servir a sua potencialização final. Geração, aplicação e disseminação do conhecimento, argumenta-se, devem estar no âmago dos processos de mudança. O seguinte trecho de The Lab, the Temple and the Market explica nosso pensamento:

O materialismo, seja convenientemente definido ou oculto em conclusões implícitas, tem pouca chance de sobreviver a não ser colocando a atividade econômica no centro da existência humana. De uma forma ou de outra, todos os outros processos de vida social terminam subordinados a esta atividade, derivando dela a maior parte da importância das contribuições que fazem à criação do conforto material e da riqueza. Especificamente, o conhecimento, muitas vezes confundido com informação, utiliza muito de seu valor do enorme potencial que tem para direcionar o progresso econômico.

Uma afirmação alternativa é que um consenso geral que confirma as dimensões espirituais de consciência deveria considerar a geração e aplicação do conhecimento como o verdadeiro processo essencial à existência social. Evidentemente, a criação da riqueza e sua distribuição eqüitativa continuariam a ser indispensáveis. Porém, a atividade econômica não seria vista como um fim em si mesma. Além da atenção às necessidades de sobrevivência, estaria preocupada com a multiplicação dos meios através dos quais a humanidade poderia trabalhar visando metas com propósitos mais elevados.

Que a geração e a aplicação do conhecimento integram o processo principal através do qual as comunidades são potencializadas para se transformarem e contribuírem para o progresso material e espiritual da civilização não é mera expressão de ideais elevados. O conceito dá margem a um conjunto de idéias que podem ser traduzidas em diretrizes, programas e projetos específicos. O que se faz necessário é um contínuo, vigoroso e sistemático processo de consultas, baseado em discernimentos de um, cada vez mais amplo, círculo de participantes, com o objetivo de chegar a um consenso, visando levar rapidamente a vários passos adicionais. Esses passos incluem a exploração de conceitos básicos, a definição das áreas principais de ação e a identificação das mudanças necessárias nas estruturas e nos sistemas vigentes. A mobilização de recursos e o lançamento de programas de ação complementares deverão ocorrer em seguida. Idealmente, tais programas criam a dinâmica de um processo de aprendizagem que traz à tona a participação da inteira população brasileira.

1. Explorando os Conceitos Centrais

A tese apresentada neste documento é que as diretrizes que efetivamente respondem a estes imperativos gêmeos da nação brasileira - trazer prosperidade para sua inteira população e possibilitar distinta contribuição para uma emergente civilização global - poderiam se basear em grande parte nos sistemas complementares de conhecimento: o primeiro, a ciência, o segundo, um vasto sistema de conhecimento a cerca da dimensão espiritual da existência humana, a qual se manifesta num rico e variado conjunto de valores e crenças que juntos formam a herança de toda a espécie humana.

Além das considerações sobre os conceitos subjacentes a esses dois sistemas, como um primeiro passo em busca de um consenso sobre a direção para a qual a sociedade brasileira deve ser orientada, a natureza do próprio processo de desenvolvimento precisa ser examinada. Neste sentido, organizamos esta breve visão geral dos princípios básicos em três tópicos.

Desenvolvimento

Existem muitas definições de desenvolvimento e, inquestionavelmente, cada uma delas oferece discernimentos da natureza deste complexo processo. A perspectiva que propomos - que reconhece a natureza espiritual do ser humano e, ao mesmo tempo, enfatiza a completa utilização do conhecimento e dos métodos científicos - tem como seu foco principal a construção da capacidade do indivíduo, da comunidade e das instituições da sociedade em todo o país. A seguinte passagem, retirada de The Lab, the Temple and the Market, baseada na convicção de que a humanidade se encontra no limiar de sua maturidade coletiva, provê um modelo dos itens que uma exploração completa do assunto exige que sejam tratados:

Se aceitarmos que o desenvolvimento deve ser configurado pelas exigências da transição da vida humana, de sua infância coletiva para a maturidade coletiva, precisamos reconhecer que, no processo, a criação conceitual de blocos de culturas e ideologias deve passar por mudanças profundas de significado. A lista de termos a serem redefinidos é longa - homem, mulher, jovem, trabalho, ócio, riqueza, honra, lealdade, liberdade, nação, estado, governo etc. Particularmente urgente é a tarefa de repensar conceitos do indivíduo e da comunidade e a relação de cada instituição que tornam possível a vida organizada no planeta.

Aqueles que, em meados do século vinte, encontraram no desenvolvimento um campo distinto de esforço, estão convencidos de que o mundo era essencialmente povoado por dois tipos de indivíduos. De um lado, foi colocada a vasta maioria da humanidade, cujas pessoas, dependendo da oportunidade, seriam consideradas como atrasadas, letárgicas, presas em tradições, limitadas pelas demandas da extensão familiar e da comunidade, dirigidas por tabus, contentando-se com muito pouco e carecendo de iniciativas. De outro lado, situam-se "os homens modernos" - e eram homens - enérgicos, ativos, trabalhadores, disciplinados, automotivados e racionais. O desenvolvimento objetiva mudar, gradualmente, o primeiro neste segundo grupo. Cinqüenta anos mais tarde, o pensamento sobre os habitantes do planeta tornou-se algo muito mais sofisticado e a maior parte da forma de conduta do homem moderno ficou sujeita a um severo questionamento. O individualismo incontido passou a representar um problema assustador para a sociedade e para a natureza, um liberalismo excessivamente auto-confiante provou ser um terreno fértil para o crescimento do desespero e da confusão. A necessidade de um entendimento mais claro sobre os direitos e responsabilidades do indivíduo tornou-se uma preocupação geral.

Mantendo tais pontos de vista bem definidos sobre o indivíduo, os primeiros pensadores do desenvolvimento mostraram notável ambivalência sobre a noção de comunidade - mas, até então, o conceito havia estado em crise por décadas no Ocidente, e seu papel e sua natureza no mundo moderno não estavam bem definidos. Assim, a despeito dos esforços heróicos de uma variedade de programas, a vida comunitária se desintegrou e as estruturas tradicionais da sociedade desabaram, sem serem substituídas por instituições capazes de manter a comunidade unida. Por algum tempo, parecia que pequenas comunidades, especialmente aquelas em áreas rurais, estavam destinadas a desaparecer e que a única opção aberta aos seres humanos era viver em cidades superpopulosas e estagnadas. Então, subitamente, os avanços extraordinários na tecnologia da comunicação nos anos recentes começaram a introduzir elementos inesperados no quadro. A necessidade de centralizar, característica da industrialização do passado, rapidamente diminuiu a ponto de tornar possível afirmar que uma comunidade relativamente pequena, se levada a participar de um esforço coletivo e conectada globalmente a um enorme reservatório de informações, podia ser uma alternativa viável para um número cada vez maior de pessoas. É evidente que o conceito de comunidade também precisa de redefinição.

O papel do indivíduo e a natureza da comunidade que pode reunir os indivíduos em uma ação coletiva ao nível local, são importantes elementos dentre os conceitos básicos que precisam de definição. A organização de tais comunidades e o direcionamento de suas energias para acelerar a transformação social, no entanto, exigem um reexame profundo dos conceitos de autoridade e poder. Especificamente, as noções prevalecentes de poder, associadas à adolescência da humanidade, precisam dar vez a uma consideração madura daqueles atributos do indivíduo e da comunidade local que os potencializam a realizar, sob o impulso do espírito humano, as tarefas decorrentes do propósito comum de transformação da civilização. Novamente, The Lab, the Temple and the Market, enfatiza assuntos relevantes.

Para este conceito de poder tornar-se amplamente aceito, necessitamos de um novo entendimento do que significa exercer a iniciativa individual e sua participação nos empreendimentos coletivos. A iniciativa individual não é o mesmo que a busca de qualquer coisa que o coração deseje ou uma noção indefinida decorrente de alguma definição romântica de criatividade. Para ser frutífera e para evitar a alienação resultante de um individualismo irrestrito, a criatividade precisa ter disciplina e a iniciativa deve mover-se no sentido da unidade.

A disciplina precisa ser mantida pela força da convicção interior. Quando é imposta, somente conseguirá seus objetivos abafando o fogo da criatividade. No entanto, seria também incorreto ver a disciplina interna simplesmente como um produto da vontade individual. A alma humana manifesta seus poderes latentes ao aprender a submeter-se a uma autoridade superior, fundamentalmente a autoridade das leis materiais e espirituais que governam a existência. Essas leis são tratadas nos contextos da ciência e da religião. Entendê-las, não somente influencia a consciência individual, como também, dá significado à autoridade que a sociedade concede às instituições. Esta última é, em sua essência, a autoridade que canaliza os poderes do indivíduo e do grupo para alcançarem o bem comum, uma autoridade que muitas vezes excede seus direitos, degenerando-se no poder de controlar e manipular.

O conflito entre o indivíduo e as instituições da sociedade - um clamando sempre por maior liberdade e o outro demandando cada vez mais submissão completa - tem sido uma característica da vida política através dos tempos. O modelo de democracia vigorosamente propagado no mundo de hoje aceita naturalmente este estado de conflito, mas tenta fixar parâmetros afim de que os direitos individuais não sejam transgredidos no processo. Além de qualquer dúvida, a versão de democracia até agora alcançada é preferível aos sistemas despóticos de governo, aos quais a humanidade tem se submetido muitas e muitas vezes. Porém, o processo histórico de democratização não termina aqui, neste seu atual estágio de imaturidade; a interação entre a autoridade institucional para decidir e o poder individual de realizar apenas começou a se conscientizar de suas possibilidades. Melhores formas de organização e ação surgirão, mas somente quando as instituições cessarem de ser vistas como instrumentos de imposição à sociedade de pontos de vista de uma facção particular, seja democraticamente eleita ou não. Na extensão em que as instituições tornarem-se canais através dos quais os talentos e as energias dos membros da sociedade possam ser expressados a serviço da humanidade, um senso de reciprocidade crescerá gerando o apoio e ajuda dos indivíduos às instituições, e estas, por sua vez, prestarão atenção sincera à voz do povo a cujas necessidades servem.

A existência social, naturalmente, não pode ser reduzida a um intercâmbio de ações entre indivíduos e instituições. Estes somente podem existir e interagir em um ambiente do qual possam obter o sustento e a riqueza que precisam para poder melhor dedicar seus esforços pela vida. Assim, um novo entendimento de poder e autoridade terá implicações profundas para a natureza da vida comunitária daqui por diante. Sobre a comunidade apoia-se o desafio de prover condições às vontades individuais de se unirem onde os poderes sejam multiplicados, se manifestem em ações coletivas e onde possam surgir expressões mais elevadas do espírito humano.

É no contexto dos comentários acima que vemos a tarefa principal do desenvolvimento como agente de construção de capacidade. Construir capacidade implica fazer com que as pessoas manifestem seus poderes inatos de uma forma criativa e disciplinada, significa preparar as instituições para exercer a autoridade devida a fim de que esses poderes sejam canalizados para a elevação espiritual da humanidade e para desenvolver a comunidade a fim desta poder atuar como um ambiente que leve ao enriquecimento da cultura. O grande desafio diante desses três aspectos é aprender a utilizar os recursos materiais do planeta e os recursos espirituais e intelectuais da raça humana para o progresso da civilização.

Para se alcançar o grau de capacidade à altura de tão grandioso desafio, certamente, faz-se necessária uma enorme expansão do conhecimento. A preocupação fundamental em qualquer programa de desenvolvimento iniciado no Brasil, acreditamos, deve ser o direito de todos os seus cidadãos de não somente ter acesso à informação, como também de participar de forma integral na geração e aplicação do conhecimento.

Claramente, então, o processo de desenvolvimento que achamos adequado para o Brasil nada tem em comum com aqueles que tratam as massas como "subdesenvolvidas", como recipientes passivos de pacotes de auxílio para a melhoria da saúde, educação e agricultura produzidos pelos "desenvolvidos". A inteira população deve estar envolvida no processo de aprendizagem que forma a textura exigida por uma sociedade próspera.

Ciência

Os métodos da ciência possibilitaram à humanidade alcançar uma compreensão coerente das leis e dos processos que governam a realidade física e os afazeres da própria sociedade. Utilizando os métodos da ciência, as pessoas podem se tornar mais sistemáticas em seus enfoques para solucionar problemas e em seu entendimento dos processos sociais.

Propomos que uma questão fundamental e urgente, em qualquer tentativa de elaboração de uma visão de desenvolvimento de uma nação, é a determinação bem definida do papel da ciência na sociedade. Embora seja um assunto complexo e que demanda profunda elaboração, pelo menos três linhas de investigação são sugeridas para consideração imediata.

A primeira e mais urgente é o sistema vigente de pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Tal sistema deverá, necessariamente, focar-se em dois temas principais: um, é o quanto este sistema poderá levar o Brasil à linha de frente das pesquisas nos vários campos do trabalho científico; o outro, o grau em que poderá servir às necessidades do povo brasileiro, ajudando a tratar de problemas específicos de comunidades bem definidas. Em muitas nações em desenvolvimento, esses dois objetivos são considerados mutuamente exclusivos, se não totalmente inatingíveis. Centros altamente sofisticados dedicados à pesquisa e ao desenvolvimento nas fronteiras da ciência moderna pertencem, quase que universalmente, àqueles países que conseguiram eliminar a pobreza e que podem se dar ao luxo de canalizar vastos recursos para a geração do conhecimento científico. O restante do mundo, enquanto isso, desenvolve sua capacidade científica na extensão necessária para tornar possível a transferência das tecnologias produzidas por este pequeno grupo de nações. A seguinte passagem, do documento The Lab, the Temple and the Market, descreve aspectos adicionais do problema:

Em sua maior parte, o que se conhece como conhecimento científico moderno é gerado em universidades e em centros especializados de pesquisas nos países industrializados. Réplicas dessas instituições no hemisfério sul participam deste processo somente em graus limitados. A maioria das pessoas no mundo recebe uma educação formal inadequada deste sistema de desenvolvimento e de elaboradas pesquisas, bem como, instruções de órgãos governamentais e de ONG's sobre o uso devido de pacotes tecnológicos e uma variedade de cursos de curta duração sobre os muitos aspectos da vida moderna, na qual as massas da humanidade devem ser incorporadas. As pessoas são simultaneamente expostas à propaganda comercial, política e cultural de inumeráveis grupos e organizações que competem para obter sua atenção.

Achamos tal divisão do mundo totalmente inadequada. Toda nação, mais especificamente uma como o Brasil, que tem tão sólida infra-estrutura e tal riqueza de recursos humanos, deve considerar com urgência a criação de um sistema para ampliar suas pesquisas científicas e dinamizar seu desenvolvimento, criando uma rede de agências e instituições interconectadas. Tal sistema poderia abranger, de um lado, as agências devotadas às pesquisas do mais elevado nível, recebendo o necessário suporte financeiro do governo, para capacitar um corpo de cientistas que possam trabalhar lado a lado com seus colegas em outras nações e contribuir para o progresso do conhecimento, tanto no que tange às ciências naturais como as sociais e, de outro, aquelas instituições e agências engajadas na geração formal, aplicação e propagação do conhecimento junto às raízes da sociedade. Sendo que a função essencial da sociedade seria a pesquisa, a ação e a capacitação relacionadas a todos os aspectos da vida social, econômica e cultural das populações às quais servem. Como tal, não estariam envolvidas apenas em atividades meramente acadêmicas, mas suas pesquisas seriam realizadas com a participação das populações nos próprios locais onde concentram tais esforços, como produção agrícola e industrial, mercado, educação, socialização de valores e enriquecimento cultural. Uma instituição deste porte, conforme sugere o texto abaixo, estaria presente...

... em quase todos os níveis de ação social, acompanhando a população, sistematizando o conhecimento existente, gerando novos conhecimentos, incorporando os resultados do aprendizado sistemático em programas de educação formal e não-formal, provendo discernimento e uma perspectiva bem clara dos órgãos de tomada de decisão. O estabelecimento de tal instituição e a definição de seu modo de operar são componentes cruciais da criação de capacidades em qualquer região - um desafio que exige criatividade e habilidade de inovar. Os modelos tradicionais de uma já estagnante educação superior têm pouco a oferecer. Novos parâmetros precisam ser estabelecidos tanto para a pesquisa quanto para a ação. A meta é criar um espaço social, no qual cada tipo de estrutura - a fazenda, a fábrica, a escola - sirva como um centro dinâmico de aprendizado.

Para ser estabelecido tal sistema de pesquisa e desenvolvimento, certas exigências precisam ser atendidas. Claramente, um volume de recursos financeiros há que ser investido no empreendimento. Mais importante ainda, exige um novo entendimento sobre a verdadeira natureza da pesquisa científica. A seguinte passagem, de Jerome R. Ravetz, em seu famoso livro Conhecimento Científico e Seu Problema Social, dá uma indicação dos assuntos envolvidos:

A atividade da ciência natural moderna transformou nosso conhecimento e o controle do mundo à nossa volta; mas nesse processo acabou se transformando também; e suscitou problemas que a ciência natural sozinha não pode resolver. A sociedade moderna depende cada vez mais de produção industrial baseada na aplicação de resultados científicos; mas a produção desses resultados gerou uma grande e dispendiosa indústria; os problemas com a administração dessa indústria e o controle dos efeitos de seus produtos, é uma tarefa urgente e difícil. Tudo isso aconteceu tão depressa dentro da geração passada que essa situação nova e suas implicações, são ainda imperfeitamente entendidas. Abre novas possibilidades para a ciência e para a vida humana, mas também apresenta novos e até perigosos problemas. Para a própria ciência, as analogias entre a produção industrial de bens materiais e aquela de resultados científicos têm ambas utilidades próprias, mas também seus riscos. Como produto de uma atividade socialmente organizada, o conhecimento científico é muito diferente de um produto como o sabonete, por exemplo; e aqueles que planejam no campo científico negligenciarão aquela diferença por seu próprio risco. Também, há que se considerar que a compreensão e controle dos efeitos de nossa ciência, baseada na tecnologia, apresentam problemas para os quais, nem a ciência acadêmica do passado, nem a ciência industrializada do presente, possuem técnicas ou enfoques que lhes dêem solução. A ilusão de que há uma ciência natural, que permanece pura e separada de qualquer envolvimento com a sociedade, está desaparecendo rapidamente; mas tende a ser substituída pela redução vulgar da ciência a um ramo de comércio ou de indústria militar. A não ser que a própria ciência, humilhada e corrompida, tivesse suas realizações empregadas, com uma rapidez impetuosa, para provocar uma catástrofe social ecológica - é preciso haver uma compreensão renovada quanto à forma muito especial do trabalho, tão delicado e tão poderoso, prestado pela investigação científica.

Um segundo conjunto de assuntos que exigem atenção, em qualquer esforço que vise elaborar uma visão factível para o futuro do Brasil, diz respeito à natureza científica do próprio empreendimento de desenvolvimento. Como já foi sugerido nos comentários acima, somos de opinião que o processo desenvolvimentista não ocorre com a mera aplicação da tecnologia, a qual, ainda que tenha o apoio da vontade política, precisa estar intimamente relacionada com a estrutura do aprendizado científico. Infelizmente, muitos esforços no sentido de tornar possível o progresso de uma nação passam, em vários níveis, por uma inadequada compreensão da ciência. Citamos a seguir uma passagem de The Lab, the Temple and the Market que oferece uma análise do campo do desenvolvimento:

Primeiro, na ausência de uma base conceitual consistente, aceitável para a maioria dos praticantes, ele é uma presa das imposições de disciplinas competitivas - economia, ciência agrícola, saúde pública, antropologia, administração e assim por diante - cada uma delas, embora reconhecendo o papel desempenhado pelas outras disciplinas, insiste em formatar o campo de acordo com suas próprias premissas ideológicas. Segundo, na falta de uma interpretação clara das ligações entre ciência e tecnologia, o pensamento desenvolvimentista supervaloriza a tecnologia e não presta a atenção necessária ao avanço da cultura científica dos povos. Terceiro, ao se concentrar em certas ferramentas e procedimentos - para planejar, informar e avaliar - perde a visão dos requisitos necessários a uma aprendizagem sistemática e estruturada, uma característica essencial de qualquer enfoque que reivindique ser científico.

Esses desentendimentos, acreditamos, tendem a reduzir a transformação social a um problema de engenharia, que é administrado por tecnocratas e cuja direção é estabelecida pelas forças econômicas e políticas. Esta tendência poderia ser evitada se os legisladores considerassem o desenvolvimento como um processo de aprendizagem contínuo, no qual o conhecimento é gerado e gradualmente acumulado por comunidades e instituições.

O terceiro conjunto de assuntos está relacionado com o que pode ser qualificado como cultura científica e tecnológica do povo brasileiro. O sistema de pesquisa e desenvolvimento acima descrito e um processo desenvolvimentista que seja de natureza científica somente poderão emergir em um ambiente cultural apropriado. Isso implica a existência de certas atitudes, convicções, percepções, habilidades e hábitos que influenciam as interações diárias tanto de indivíduos como de organizações com relação à ciência e à tecnologia. Estratégias são, desta forma, necessárias para desenvolver uma cultura científica da inteira população do Brasil. De um lado, elas irão assegurar que os processos educacionais para o crescimento do país nutram, desde a infância, um pensamento científico adequado. Por outro lado, buscarão desmistificar a ciência, ajudando a população em geral a entender o progresso científico e tecnológico, buscarão libertá-la das garras da superstição e protegê-la contra a pseudo-ciência. Neste último esforço, a mídia pode exercer um papel significativo.

Princípios Espirituais

Na formulação de uma nova concepção de desenvolvimento social e econômico para o Brasil, um país cujo povo tem tão elevada sensibilidade, atenção devida deve ser dada aos princípios espirituais. Historicamente, a religião tem sido o sistema de conhecimento através do qual esses princípios foram expressados de uma forma coerente e acreditamos que ainda permanece assim em nossos dias. Pelo termo "religião" não nos referimos a "crença sectária", mas sim, ao conjunto de conhecimentos que é a herança compartilhada da raça humana e que pode prover discernimento quanto às mais profundas questões do propósito da vida e da motivação humana. Neste sentido, é o sistema de conhecimento que complementa a ciência, que busca responder às questões relacionadas com o funcionamento do universo material. Porém, considerando que as religiões organizadas muitas vezes sucumbiram às forças da divisão e do sectarismo no passado, preferimos evitar entrar em debate sobre os méritos da própria religião e iremos nos ater à consideração de alguns princípios espirituais que julgamos serem essenciais à formulação de planos e políticas para um desenvolvimento sensato e confiável. Os seguintes princípios-chave são apenas algumas idéias que, é nossa recomendação, precisam ser colocados no âmago de tais considerações.

A Unidade da Humanidade

O princípio sobre o qual deve se basear qualquer estratégia de desenvolvimento alcançável é o da unidade da humanidade. Este princípio não representa uma noção romântica sobre amor fraternal ou um vago ideal de tolerância. Não é também um chamado à uniformidade. Crer na unidade da humanidade implica a rejeição de teorias que explicam a vida coletiva dos seres humanos em famílias, grupos, tribos, cidades e nações, unicamente em termos dos imperativos de sobrevivência. A evolução da vida coletiva e de suas instituições é vista como um desenvolvimento gradual das potencialidades do espírito humano. Tal processo evolucionário atingirá um estágio de realizações quando a humanidade, finalmente, assumir a tarefa de estabelecer as fundações sobre as quais poderá ser erigida uma civilização unificada e evoluída.

As implicações deste princípio para a sociedade brasileira, ao buscar um caminho viável de desenvolvimento, são imediatas. A meta de trazer prosperidade para as massas da sociedade brasileira, por exemplo, seria alcançada se estratégias claras não forem definidas para levá-las progressivamente em níveis mais altos de unidade de pensamento e de propósito? Poderiam os extraordinários desafios que o Brasil enfrenta serem superados, a não ser pela ação unificada de todos os seus cidadãos? Ainda mais, não há dúvida de que a aplicação deste princípio implica um processo de globalização. Não seria razoável assumir que, ao avançar a sociedade brasileira rumo à sua própria unidade, iria também se empenhar para ocupar uma posição de liderança num processo de globalização, o qual, diferente do deficiente processo atual, poderá levá-la a uma civilização que beneficiará a inteira raça humana?

Justiça

É um fato inegável ser a justiça social uma condição necessária para diminuir a pobreza. Para estabelecer tal condição, porém, é preciso reconhecer que a justiça é, primariamente, um princípio espiritual, uma exigência do espírito humano. Este reconhecimento abre inúmeras possibilidades que geralmente não estão presentes quando a discussão se limita a assuntos considerados importantes, como a distribuição de renda e o predomínio da democracia. A justiça, como um princípio espiritual, sensibiliza o indivíduo em seu mais profundo nível de consciência. Sua influência motiva a participação, eleva a atenção a novos patamares, potencializa as pessoas, comunidades e instituições. As raízes espirituais do princípio em questão podem ser encontradas naquela faculdade da alma humana que nos possibilita ver com nossos próprios olhos e não com os alheios. Cultivar a justiça, portanto, exige processos educacionais conscientes desta faculdade, a qual estrutura e alimenta as energias espirituais dos indivíduos de forma livre de superstição e de ideologias materialistas importadas.

O estabelecimento de tal sistema educacional, associado a estratégias que buscam soluções para as gritantes iniqüidades que criaram raízes na sociedade, colocaria o Brasil em uma posição de destaque entre as nações, posição esta que lhe permitirá promover um processo de globalização orientado pelo princípio da justiça.

A Igualdade Entre Homens e Mulheres

O princípio da igualdade entre homens e mulheres é um elemento essencial do pensamento realista sobre o bem-estar do planeta e de seus povos. Um dos critérios para avaliar o progresso da implementação deste princípio é a extensão na qual mulheres e homens estão trabalhando lado a lado em todos os campos do esforço humano - científico, político, econômico, social e cultural. Um passo importante nesta direção é assegurar que as mulheres efetivamente recebam, em números significativos, uma educação com a mesma qualidade científica que é oferecida aos homens.

Uma área inicial de preocupação que merece atenção particular dos legisladores é a mudança de atitude dos homens. O avanço do conhecimento entre as mulheres precisa ser acompanhado do apoio dos homens em suas comunidades. Quando os homens entenderem que a promoção do princípio da igualdade é tanto sua responsabilidade quanto o é para as mulheres, certamente, poderá ser alcançado um progresso efetivo para o estabelecimento deste princípio.

A igualdade dos sexos deve direcionar a estratégia de desenvolvimento. A longo prazo, o estabelecimento da igualdade irá transformar radicalmente as instituições da sociedade, como também as relações entre todos os seus membros. É essencial que a sociedade brasileira não se contente apenas com a remoção das desigualdades mais aparentes, deixando de ver as transformações profundas que o princípio da igualdade entre homens e mulheres irá acarretar.

Cuidados Com a Natureza

O princípio que envolve os cuidados que se deve ter com a Natureza tem como certa a aspiração da humanidade em transcender as limitações do mundo material, em uma atitude de respeito e cooperação com a natureza, que esteja em harmonia com a unidade da existência. A atenção devida à natureza, como um participante consciente, compassivo e criativo na evolução da vida no planeta, é uma responsabilidade inescapável da humanidade.

A rica herança ecológica do Brasil inclui alguns dos mais importantes recursos naturais do mundo. Questões sobre o uso e a exploração desses recursos têm sido por muito tempo de crucial interesse para o país. Seu significado ressalta a necessidade de se evitar recorrer a um debate simplista entre os interesses nacionais e globais a uma tendência indesejável de culpar os pobres pela degradação ambiental. O uso racional e sustentável dos recursos naturais está intimamente relacionado com os princípios de justiça. O Brasil está em uma posição privilegiada para dar exemplo ao resto do mundo provando que a defesa do meio ambiente e a eliminação da pobreza, longe de serem metas contraditórias, podem se apoiar e reforçar mutuamente.

Riqueza e Trabalho

Igualmente como no caso da natureza, a idéia de riqueza tem recebido tratamento contraditório em todos os períodos da evolução social. O conceito precisa ser reexaminado no contexto de um processo de desenvolvimento que contribua para o progresso material e espiritual da raça humana. Os princípios espirituais que ajudam a definir as atitudes apropriadas quanto à riqueza são consistentes com a verdadeira natureza e propósito do trabalho. Através do trabalho, necessidades essenciais da vida humana são atendidas e muitas potencialidades são realizadas. Para alcançar este propósito, no entanto, o trabalho não pode ser reduzido a uma mera luta pela sobrevivência. Nem pode sua finalidade ser vista unicamente como a satisfação das demandas individuais. Vista desta forma, a riqueza pessoal é aceitável na medida que cumpra com determinadas condições. Deve ser alcançada através de um trabalho honesto, físico ou intelectual, e sua aquisição pelo indivíduo não pode ser causa, não importa quão indiretamente, do empobrecimento de outros. Ainda mais, a legitimidade das possessões materiais depende, igualmente, de como são conseguidas e como são usadas. Cada um deve aproveitar os frutos de seu trabalho e fazer uso de sua riqueza não somente para o bem-estar de sua família, mas também para o da sociedade. O grau mais elevado de trabalho é o serviço à humanidade.

Parece-nos que nenhuma das ideologias prevalecentes no mundo é capaz de dar respostas satisfatórias às questões básicas de como o trabalho deve ser visto, recompensado e valorizado. A elaboração de estratégias e políticas viáveis para o desenvolvimento econômico e social do Brasil requer tais respostas. Nesse sentido, certamente poder-se-ia tratar dos problemas do desemprego e dos níveis de renda e, ao mesmo tempo, evitar o mal crônico da sociedade moderna, na qual, os seres humanos acabam virando bens de mercado.

Liberdade e Potencialização

Para a sociedade livrar-se da opressão, deve adotar uma teoria sobre a natureza humana que corresponda à realidade da existência. Não têm apoio na evidência histórica os pontos de vista de que os seres humanos são criaturas inocentes, corrompidas pela civilização, animais movidos por desejos insaciáveis ou deuses virtuais que nunca devem sofrer restrições. Quando consideramos a totalidade das qualidades humanas, como amor, vontade de sobrepujar o ego, atração pela beleza, bem como seu potencial para a crueldade e rebaixamento, a cena que emerge é a de um ser que possui uma natureza dual -espiritual e material. No âmago da espiritualidade, encontra-se o anseio da alma humana para libertar-se dos grilhões e das disputas da existência material.

A sociedade que viola os direitos humanos é claramente opressiva, mas também o é a sociedade que utiliza, como seu princípio organizacional, a satisfação de todos os caprichos do ego no sistema de livre competição. O maior crime decorrente da opressão é que ela rouba das pessoas sua verdadeira identidade. Ironicamente, o perpetrador e a vítima da opressão vêem-se ambos privados das oportunidades de desenvolvimento das potencialidades, das quais, em última instância, depende a realização. A principal arma da opressão é o prolongamento da ignorância através da manipulação da informação e o impedimento do acesso ao conhecimento. Uma tarefa central do desenvolvimento, então, é a propagação sistemática do conhecimento espiritual e material, com a finalidade bem definida de potencializar as pessoas.

Esperamos que esta discussão, embora aqui muito sintética, ilustre nosso ponto principal, de que o reconhecimento da natureza espiritual do ser humano trará um contexto positivo ao progresso de uma nação em termos bem reais. Em verdade, se o Brasil não incluir, em sua visão do futuro, a dimensão espiritual da existência, será forçado a seguir as pegadas dos países materialmente prósperos, tornando-se cada vez mais enredado em uma forma de vida que não conduz à realização plena, perdendo a oportunidade que agora tem em mãos de ocupar uma posição ímpar na história humana.

2. Definição das Principais Áreas de Ação

Os conceitos básicos que servem como fundamentos para uma estratégia de desenvolvimento para o Brasil certamente não se limitam àqueles que foram apresentados na seção anterior. À medida que a lista é expandida e um consenso alcançado sobre as implicações de cada um dos conceitos, atenção deve ser dada às principais áreas de ação. Embora as efetivas linhas de ação precisem cobrir todos os setores, sentimos existir quatro campos particulares de atividade que merecem um tratamento especial: atividade econômica, tecnologia, educação e vida familiar. Essas áreas abrangem uma ampla gama de outros assuntos, como saúde, agricultura e proteção ambiental. Esta seção tratará apenas de alguns itens relevantes a cada um desses quatro campos de atividade.

Antes de entrarmos na discussão dessas quatro áreas, sentimo-nos motivados a mencionar algumas palavras sobre a questão da governabilidade, pois sobre a mesma repousa o sucesso de qualquer empreendimento realizado para o progresso de uma nação. Tendo em vista que a descentralização deve merecer atenção contínua em qualquer conjunto consciente das diretrizes de desenvolvimento para um país da vastidão do Brasil, apresentaremos nossos comentários e a discussão que se segue, no contexto de uma região que abrange várias vilas, muitos povoados e, possivelmente, uma ou mais cidades. Tais regiões, normalmente com identidades política, cultural e ecológica bem definidas, são quase sempre o foco de programas de desenvolvimento nos quais agências internacionais, o governo e algumas organizações da sociedade civil têm todos um papel definido a cumprir.

Se aceitarmos a premissa de que o desenvolvimento envolve a construção de capacidade das pessoas, das comunidades e de suas instituições para criarem seu próprio caminho de progresso, então, devemos nos perguntar que tipo de sistema político será conducente à participação das pessoas na administração de seus próprios assuntos. A seguinte passagem de The Lab, the Temple and the Market sugere que, quaisquer que sejam seus aspectos principais, tal sistema exigirá uma mudança fundamental nos atuais processos de tomada de decisão:

Hoje, a competição irrestrita, a obsessão pelo poder e o abuso da autoridade viciam a forma como são tomadas as decisões. O processo sofre de dois excessos: apatia ou superentusiasmo, apego à técnica ou a improvisação, devoção à minúcia ou a propensão para tratar apenas de abstrações. O que se faz vitalmente necessário é a forma de operação na qual o sistema de aprendizado seja envolvido.

Efetuar uma mudança fundamental nestas condições, envolve claramente a criação e fortalecimento de autênticas estruturas de governo, especialmente em nível local. Mas onde - a pergunta deve ser feita - devem os pensadores desenvolvimentistas buscar aqueles conceitos que poderiam ajudar as instituições inexperientes a se engajarem em um bom processo de tomada de decisão e levá-lo à respectiva implementação? Seria ingênuo esperar que a política, conforme praticada na região, seria uma fonte de inspiração proveitosa. Enfim, o propósito que se vê é o de aprender a manipular, acumular riqueza material e consolidar grupos de poder em detrimento de outros e ser habilidosos jogadores em um interminável jogo que tem levado ao empobrecimento das massas.

O que, então, dizer dos processos característicos dos países materialmente avançados? São eles modelos que devem ser emulados por outros países do mundo? Incorporam eles os valores necessários para possibilitar aos habitantes de nossa região, até agora marginalizados das decisões que governam sua vida coletiva, construir um caminho de progresso por si mesmos? Seriam as contribuições passadas para a riqueza de algumas nações, por parte dos políticos, provas suficientes de sua capacidade para produzir as transformações que irão engendrar a prosperidade material e espiritual da raça humana como um todo?

Se formos seguir o modo de ser de nosso tempo, ficaríamos entusiasmados com a última alternativa na proporção que medidas foram instituídas para evitar corrupção. Atribuir as inadequações óbvias dos atuais modos de conduta dos políticos unicamente à corrupção, porém, é ignorar profundamente os defeitos enraizados em determinadas concepções fundamentais. Por exemplo, é verdade que o uso da força física, um bem aceito instrumento de autoridade através da história, tem perdido credibilidade e interesse nos anos recentes. Mas a democracia, definida como um processo que separa as pessoas de acordo com os interesses, talentos e ideologias, as quais, então, "negociam" decisões, continua a apoiar a violência. O propósito de cada grupo é vencer. Os meios para alcançar os fins propostos são as vantagens econômicas e a mobilização de apoio para superar o oponente. Tão forte é este legado de "o que vence é que está certo", que essencialmente determina a forma como a justiça é administrada. Devemos aceitar isso como a realização do coroamento da evolução da tomada de decisão coletiva no planeta?

Em vez de definir a tomada de decisão coletiva como a maestria da arte de manipulação política, a estratégia de desenvolvimento faria bem em vê-la como a investigação coletiva da realidade e a análise racional de opções. Tal processo está aberto ao uso de métodos que, embora não necessariamente sofisticados ou complexos, são fundamentalmente científicos. Em verdade, durante anos os programas voltados à ação comunitária têm criado métodos altamente imaginativos para detectar necessidades, analisar tendências casuais, avaliar cursos de ação, planejar e monitorar. É verdade que alguns desses esforços envolvem uma aplicação de técnicas um tanto negligentes. Mas também existem programas que têm claramente ajudado as pessoas a adquirirem as ferramentas intelectuais para tratar com a tomada de decisão coletiva, entendida como a investigação científica da realidade. Os aspectos particulares desses métodos não são tratados aqui. O importante é que o valioso conhecimento já existente nas ciências sociais poderá ser incorporado à corrente principal de atividades, mas a estrutura decisória deverá ser favorável a esta dimensão do desenvolvimento.

Que o poder da ciência pode ser utilizado para tratar do objetivo dos mecanismos efetivos para a tomada de decisão é apenas metade da história. O sucesso de um processo consultivo que assume as características da investigação da realidade e não se degenera facilmente em conflito e jogo de poder, depende também das qualidades espirituais dos participantes. Honestidade, franqueza, tolerância, paciência e cortesia são algumas dessas qualidades. Fazer uma lista de tais atributos não é difícil. A questão é como desenvolvê-los. Que força pode dotar as pessoas com a capacidade de se oporem às suas próprias paixões, a aderirem à verdade, mesmo quando for contra seus interesses pessoais e aceitar a disciplina que exige tanto coragem para expressar uma opinião franca como sabedoria para se tornar um ativo participante de um consenso? Claramente, esta força interna é religiosa em natureza.

Não somos tão ingênuos para imaginar que para a aquisição das qualidades exigidas por uma investigação desapaixonada da realidade, necessariamente devemos remover todas as formas de auto-interesse. Nem podemos negar as dificuldades inerentes para se chegar a um consenso sobre assuntos que afetam o bem-estar dos participantes em um processo consultivo. Mas, seguramente, deve ser possível em um país como o Brasil, cujo povo e líderes são bem conscientes de suas responsabilidades sociais, desenvolver nos órgãos de tomada de decisão, com base nos recursos da ciência e da religião, determinadas habilidades que deles se exige para as funções que têm a exercer na sociedade.

Não deveria toda região do Brasil poder contar com órgãos governantes capazes de manter uma percepção clara da realidade social e das forças que nela atuam? Não poderiam tais órgãos ter a habilidade de detectar algumas oportunidades oferecidas em cada momento histórico para, de forma apropriada, utilizar-se dos recursos de suas comunidades e consultar livre e harmoniosamente como uma entidade com seus membros constituintes? Não deveriam ser capazes de reconhecer que toda decisão tem tanto uma dimensão espiritual como material e, conscientes disso, tomar suas decisões? Tais corpos de tomada de decisão veriam, como sua responsabilidade, ganhar a confiança, o respeito e o apoio genuíno daqueles que são afetados por suas decisões. Seriam capazes de efetivamente utilizar as energias e a variedade de talentos dos recursos humanos disponíveis, bem como, fazer a integração da diversidade de aspirações e atividades de indivíduos e grupos em um movimento que se projeta, criando e mantendo a unidade. Poderiam promover critérios de justiça e implementar decisões de forma aberta e flexível, para evitar qualquer traço de conduta ditatorial.

As questões acima colocadas sugerem que os corpos de tomada de decisão em todas as regiões do Brasil necessitarão ser recriados como organizações caracterizadas por um senso de aprendizagem. O que está em jogo é a transformação da forma atual de governabilidade, baseada em conceitos tradicionais de poder e autoridade, em uma que adote uma postura genuína de aprendizagem. Não somente acreditamos ser tal transformação possível, como consideramos ser um imperativo do presente estágio da evolução humana e uma conquista essencial para o sucesso de qualquer um dos quatro campos de atividades abaixo descritos.

Atividade Econômica

Central à tarefa de rever o conceito de organização dos assuntos humanos encontra-se um adequado entendimento do papel da atividade econômica. É nosso ponto de vista que a desigualdade e desequilíbrio econômico, atualmente tão espalhados no mundo, resultam diretamente do fracasso em colocar as questões econômicas em seu contexto mais amplo no que concerne à existência social e espiritual da humanidade. Os arranjos econômicos deveriam atender às necessidades das pessoas; as sociedades não devem se amoldar para servirem a um modelo econômico específico - particularmente aqueles que mantêm hábitos arraigados de consumo. Com o fracasso das atuais teorias baseadas na idéia de que uma boa sociedade é aquela na qual dos indivíduos espera-se que apenas maximizem sua utilidade pessoal, qual conceito de economia deveria substituí-las? Algumas tentativas de respostas a esta questão são encontradas no texto seguinte.

O aumento da capacidade de uma região típica para alcançar a prosperidade material e espiritual de sua população envolve o fortalecimento de sua economia, um processo inclusivo, porém, não idêntico ao crescimento econômico. Tal esforço deve, certamente, acontecer no contexto de alguma forma de pensamento econômico. A busca de uma base teórica apropriada, porém, está longe de ser facilmente alcançada, em um tempo em que os conceitos fundamentais do "pensamento econômico" atual considerado, já por muitas décadas, como a incorporação da racionalidade - estão sendo vigorosamente questionados. A resultante perda de fé é exacerbada continuamente pela crescente crise ambiental e pela ascensão e queda de sistemas econômicos cujas performances recebem exagerados elogios, até que começam a se desintegrar e expor as reais condições sob as quais vivem suas vítimas.

As críticas às economias vigentes provêm tanto de dentro como de fora; exigem tanto uma revisão da metodologia como da estrutura conceitual de análise. De acordo com os críticos, os economistas, diferente dos cientistas em muitos outros campos, demonstram pouca vontade para examinar, de forma desapegada, a natureza de sua metodologia ou para entender suas origens. A apreciação da física clássica os inspirou a criar metáforas e métodos sem levar em conta a disparidade entre os objetos de estudo. A estrutura mecanicista de suas mentes impede que dediquem a atenção devida aos fatores cruciais como o conhecimento, propósitos e mudanças qualitativas. O conceito mais central de suas análises tem sido um "homem" imaginário, juiz exclusivo de seus próprios caprichos e desejos, tomando decisões para otimizar sua utilidade. O mecanismo pelo qual estas escolhas "racionais" devem ser entendidas tem sido uma abstração do mercado, uma abstração bem além do que é permitido em uma prática científica razoável. De uma forma curiosa, tanto o mundo físico, origem de todos os recursos materiais, como a cultura, ambiente dentro do qual são amoldados os recursos humanos, são relegados a uma consideração secundária.

Sem a necessidade de analisar profundamente os argumentos dos críticos e defensores da teoria econômica atual, parece claro que os portões de uma fortaleza poderosa, até pouco tempo presumidamente inexpugnáveis, estão sendo assediados com sucesso. O que esta atividade intelectual em rápida expansão irá trazer e como afetará a estratégia do desenvolvimento, não são perguntas fáceis de responder. Mas as poucas indicações sobre a natureza do "novo pensamento econômico" são muito encorajadoras. Por exemplo, pode-se assumir seguramente que as novas economias não irão ignorar a questão dos valores ou permitir que sejam ocultas atrás do véu das conveniências externas. Apoiará o princípio da igualdade entre homens e mulheres, reconhecerá o papel e as necessidades da comunidade e deixará de promover o individualismo desenfreado. Pode-se afirmar com certeza, prestará atenção considerável às questões relacionadas aos recursos naturais e ao meio ambiente.

Embora as novas direções que estão sendo consideradas sejam promissoras, um avanço marcante na teoria econômica não pode ser esperado a curto prazo. Em primeiro lugar - e isto é esperado de uma ciência que entrou em um período de crise - o leque de opções é muito vasto, havendo uma tendência de buscar uma teoria que trate também de muitos aspectos da vida individual e da existência social. Sem dúvida alguma, a humanidade precisa de uma renovação da filosofia moral. Mas também é verdade, pelo menos do ponto de vista da estratégia de desenvolvimento e planejamento, que precisamos de uma ciência econômica que esteja diretamente preocupada com a geração, distribuição e utilização dos meios materiais. Tal ciência deve ser rigorosa sem ser reducionista. Precisará escolher métodos apropriados ao objeto de estudo e não seguir cegamente algumas impressões inadequadas da física. Deverá estar interessada em propósitos e deixar claro suas suposições e seus valores subjacentes. Acima de tudo, deve ser uma ciência capaz de modificar suas premissas progressivamente -especialmente as relacionadas com a conduta humana - à medida que desenvolve o processo de construção da civilização. Reconhecendo que as políticas que engendra têm a capacidade de mudar sistemas de valores, terá de levar em conta suas próprias interações com um objeto mutável de estudo e permitir um reexame constante dos fatos sobre os seres humanos e sobre as estruturas sociais, a partir das quais constrói seus modelos de conduta e de desenvolvimento econômico.

Não é o propósito deste documento comentar em profundidade a teoria econômica. O que gostaríamos de enfatizar é que uma estratégia de desenvolvimento para o Brasil, baseada na construção de capacidade, necessita que se dê enorme atenção àquelas dimensões da capacidade regional que têm a ver com a criação e utilização dos recursos materiais - desde dimensões específicas de atividade econômica como a produção agrícola de forma comercial e em pequenas unidades familiares rurais, até a formulação e implementação de diretrizes econômicas que permitam às regiões participarem de uma economia global, não como uma vítima desamparada, mas como um contribuinte forte e auto-confiante. O trabalho exigido para alcançar tal fortalecimento da economia regional é complexo sob qualquer circunstância, ainda mais atualmente quando a teoria econômica precisa passar por tão vasta e fundamental revisão.

Uma palavra de advertência, porém, cabe aqui. Sentimos que seria um erro para as diretrizes e estratégias brasileiras focalizarem-se apenas nos pobres. É indispensável à criação da prosperidade de qualquer nação - em verdade, para a humanidade como um todo - a eliminação dos extremos de riqueza e pobreza. Não é verdade que onde quer que se encontrem grandes focos de pobreza, encontram-se também extremos de riqueza? Poderá qualquer sociedade que apóia os princípios de justiça permitir a continuidade de tal disparidade? Como deveria o conceito de riqueza pessoal ser estruturado em um povo que rejeita ideologias e que vê o sucesso econômico como justificativa final para qualquer ação, como o próprio padrão pelo qual é medida a moralidade? Os pensadores brasileiros, parece-nos, estão bem credenciados para buscar respostas a essas indagações e considerar como poderão ser utilizadas as melhores ferramentas científicas para desenvolver uma economia cujas premissas éticas sejam explícitas e cujas estruturas e processos sejam guiados por uma força moral toda abrangente.

Tecnologia

Conforme já sugerido neste documento, o progresso tecnológico é inerente ao processo de desenvolvimento. De fato, a passagem abaixo mostra que é tanto a meta do desenvolvimento como um meio de alcançá-lo. O acesso à tecnologia apropriada e a construção de capacidade das comunidades para fazerem suas próprias escolhas tecnológicas são, então, é nossa opinião, fundamentais ao progresso de uma nação e para alcançar prosperidade.

O tema tecnologia tem sido inseparável do discurso de desenvolvimento desde seu início e, agora, está sendo examinado de todos os ângulos possíveis. Um conjunto de adjetivos - grande ou pequeno, com ênfase no capital ou trabalho, moderno, avançado, intermediário, nativo, energeticamente eficiente, ambientalmente sustentável - tem sido usado para descrever quão apropriada é a tecnologia em uma ou outra de suas várias formas. Seus processos associados de transferência, inovação, pesquisa e desenvolvimento, adaptação e difusão aplicáveis em muitos campos do esforço humano têm sido escrupulosamente analisados e seus resultados debatidos de forma completa. O intercurso entre tecnologia e os fatores determinantes da vida econômica, cultural, política e social de uma nação tem sido também estudado em detalhes. É intrigante, então, o fato das discussões sobre tecnologia no campo do desenvolvimento terem continuado tão inconclusas. Na maioria dos países desenvolvidos, a formulação de políticas científicas e tecnológicas continua a ser um enorme desafio. Toda vez que o tópico da tecnologia é destacado, um conjunto de outros fatores, principalmente econômicos e políticos, são apresentados e o resultado é que tal enfoque acaba sendo desconsiderado.

À parte da complexidade dos assuntos envolvidos, o avanço tecnológico é em si mesmo um tema ambíguo, pois é tanto uma meta de desenvolvimento como um meio de realizá-lo. Muito da modernidade é definido em termos do uso da moderna tecnologia. Isso não reflete uma incompreensão, já que a mudança tecnológica é inerente ao progresso material. Assim, quando a água corrente é levada a uma vila, os habitantes podem com razão afirmar que o acesso a esta nova tecnologia constitui um passo avante no desenvolvimento. Pelo mesmo critério, a introdução de computadores em uma sociedade pode ser considerada uma contribuição ao seu progresso. O problema surge quando o elo essencial entre o progresso material e espiritual é ignorado e a civilização material acaba conseguindo ir avante com pouca ou nenhuma atenção dada à realidade espiritual. O papel da tecnologia como um meio de prover soluções às mais altas aspirações escapa à visão. Em vez disso, a tecnologia torna-se uma força autônoma e misteriosa que define como será o futuro. As pessoas se perdem neste pano de fundo, como se não tivessem outra escolha a não ser seguir qualquer tendência estabelecida pela invenção de novas tecnologias.

Obviamente, a solução para o dilema é não negar o valor intrínseco do progresso tecnológico, muito menos perpetuar noções defeituosas de espiritualidade e harmonia com a natureza. O que é preciso, em verdade, é proporcionar aos habitantes de cada região a capacidade de fazer escolhas cada vez mais válidas, tanto individual como coletivamente, relativas ao desenvolvimento, transferência e adoção da tecnologia.

Em um mundo acostumado a distorcer as palavras para justificar interesses econômicos, a capacidade de fazer escolhas tecnológicas apropriadas poderia facilmente tornar-se sinônimo de possuir os atributos de um bom consumidor. Claramente, não é isso o que pretendemos. O tipo de capacidade em discussão representa um conjunto complexo de atitudes, convicções, compreensões, habilidades e hábitos - que caracterizam a conduta dos indivíduos e organizações em sua interação diária com a tecnologia.

Para que tal construção de capacidade seja significativa, deve ser acompanhada pela compreensão de que a tecnologia não é neutra. A noção de que a tecnologia pode ser boa ou ruim, dependendo de como é usada, é valida, mas somente dentro de um contexto muito limitado: obviamente, uma faca pode ser usada para matar ou cortar pão. Porém, a um nível mais fundamental, a tecnologia traz consigo uma ideologia e tem voz ativa no modo como a vida individual e social deve ser organizada. A escolha tecnológica influencia todas as outras escolhas feitas sobre a qualidade e direção de vida em uma região. Ela mesma é uma expressão de valores - políticos, sociais, culturais e, no final das contas, também morais e espirituais.

Em uma região, pelo menos dois tipos de esforços deveriam ser incrementados para que a tecnologia possa ser um processo deliberadamente aberto ao escrutínio de uma população consciente. Primeiro, deve-se caminhar na direção de tornar explícitos os valores que estão subjacentes à operação de cada conjunto de produtos, instrumentos, processos e procedimentos inter-relacionados introduzidos na região. Infelizmente, em anos recentes, a palavra "valor", como vários outros importantes termos incluídos no discurso social em moda, tem sido tão negligentemente considerada que se tornou quase inútil. O tipo de investigação do assunto aqui proposto implica uma oposição corajosa a uma cultura agressiva que não tem condições de lidar corretamente com questões de valores, podendo, conseqüentemente, reduzi-la a um assunto de caráter pessoal. Como poderia ser de outra forma, em um vazio moral e espiritual no qual propósito e identidade representam nada mais que um derivativo da própria atividade? Em contrapartida, em uma cultura ainda presa às suas raízes religiosas surgem valores decorrentes dos ensinamentos espirituais que iluminam a vida individual e coletiva e definem o propósito do esforço construtivo.

Segundo, deveriam ser adotadas medidas para desenvolver na região a habilidade para compreender a ciência que há por trás da tecnologia propagada. Mais especificamente, pelo menos parte do texto científico responsável por cada passo dado no avanço do progresso tecnológico, deveria ser introduzido no sistema de conhecimento da região. O grau de sofisticação com que isso é feito depende da natureza da tecnologia, da complexidade do texto científico em particular e das realizações antecedentes da população.

Além da preocupação com a cultura, a dimensão tecnológica de criar capacidades em uma região tem implicações claras para os órgãos independentes encarregados do desenvolvimento, adoção e propagação da tecnologia. Essas agências precisam ser fortalecidas para estar em condições de assumir suas inúmeras responsabilidades, as quais incluem avaliar as exigências tecnológicas do processo de desenvolvimento; avaliar os recursos naturais da região, como também, os subprodutos de atividades em andamento e determinar como eles devem ser utilizados; planejar e monitorar a transferência de tecnologias específicas e avaliar seus efeitos; realizar pesquisas de alta qualidade e soluções tecnológicas para problemas concretos; além de suprir as necessidades de educação técnica.

Da imensidade das tarefas acima descritas, deve ficar claro que não acreditamos que qualquer programa possa dotar a população de uma região com a capacidade de fazer uma escolha tecnológica segura. A tecnologia, reconhecidamente, é um assunto global e seu papel no progresso da civilização deve ser explorado e esclarecido nesse contexto. Assim, a rede de instituições de aprendizagem, as quais este documento recomenda que sejam estabelecidas, trabalhando com as diversas populações no Brasil, necessitariam fazer parte de uma rede muito maior dessas organizações operando em todos os países no mundo. Isso tornaria possível, cremos, a exploração mundial de assuntos relacionados com a escolha tecnológica - uma exploração que não seria facilmente cooptada por grupos privilegiados que direcionam o progresso material e que recebem uma parte gigantesca do poder que este gera. Embora científico em seu enfoque dos problemas, este esforço vigoroso beneficiar-se-ia em grande parte na herança religiosa da humanidade para esclarecer questões de valores e propósitos. A presente revolução nas comunicações torna tal esforço global eminentemente praticável e abre possibilidades para uma rápida transformação tecnológica de uma maneira impensável até há algumas décadas.

Educação

Nenhum dos ideais descritos neste documento ou as sugestões práticas aventadas, poderiam levar a uma transformação duradoura, em qualquer país, sem uma reforma educacional substancial. O Brasil não é uma exceção. A passagem abaixo, de The Lab, the Temple and the Market, dá um foco especial aos assuntos envolvidos e destaca o caminho a seguir:

Desde o início, aumentar a habilidade dos governos do mundo em prover educação aos seus cidadãos tem sido um componente essencial na estratégia de desenvolvimento. Inicialmente, a ênfase era dada, em grande parte, à infra-estrutura, mas, no decorrer dos anos, outros assuntos relacionados a currículo, administração, tecnologia educacional, capacitação de professores e até mesmo a relação entre a escola e a comunidade foram também sendo considerados. Deve-se reconhecer que um progresso enorme foi feito nessas áreas inter-relacionadas de esforço educacional, particularmente no contexto da universalização da educação primária. No entanto, há um sentimento difundido de que, apesar dessas marcantes realizações, a educação não está podendo cumprir com suas promessas; que, em verdade, os sistemas educacionais estão em crise em toda parte.

...Aparte de um número relativamente pequeno de estudantes afortunados que freqüentam escolas de alto nível, a maioria das crianças e dos jovens recebe hoje em dia uma educação cada vez mais superficial, que sistematiza a fragmentação da mente dos estudantes, fazendo crescer, desta forma, a fragmentação de toda a sociedade. A solução para o problema não pode ser buscada simplesmente através de melhor administração dos parâmetros e relações que envolvem a escola e de uma melhoria do ensino - aprendendo a dinâmica dentro e fora da sala de aula, aplicando a mais recente tecnologia ou elaborando um fluxo de documentos que definem um jogo impressionante de objetivos para todo curso e toda área de estudo. Estas medidas são importantes em si mesmas e, certamente, criam a imagem de um movimento progressivo sempre envolvido com a reforma educacional em todos os países, um após o outro. As raízes da crise que aflige a educação, no entanto, encontram-se na forma como o conhecimento é entendido e tratado em muitos sistemas educacionais.

Na maioria das escolas, os currículos são organizados por assuntos. Embora enfoques mais avançados permitam atividades educacionais que buscam integrar dois ou três assuntos, a escolha do conteúdo de todo curso é feita dentro de uma estrutura que divide o conhecimento em componentes distintos e desconexos. A divisão em disciplinas é vista como virtualmente inerente ao conhecimento, o qual, por sua vez está definido em termos de seus fragmentos - como a soma de todas as disciplinas em ciências naturais e sociais, artes e ciências humanas e campos profissionais como a engenharia e medicina. Ano após ano, os estudantes acumulam conhecimento em categorias separadas, sem se dar conta das relações essenciais que unem as partes, talvez sem ter ao menos idéia da interconexão subjacente à existência social e, menos ainda, do universo material.

O problema é exacerbado pela ênfase que é colocada na assimilação de fatos em vez de ênfase na compreensão de conceitos profundos. O aprendizado superficial é categoricamente condenado, mas é apenas brandamente substituído pelo domínio de técnicas de manipulação da informação. Até mesmo a pedagogia atrativa de aprender fazendo é distorcida por uma atitude exagerada de atividade recreativa. Em nenhuma parte, está isto mais aparente do que nos enfoques denominados modernos para a educação da ciência onde, em nome da descoberta individual, a cogitação é apresentada como a essência da investigação científica, entretanto, sendo que a avaliação da estrutura complexa da ciência como um corpo crescente de conhecimentos recebe pouca atenção. A moralidade, quando considerada, é tratada como outro fragmento, outro assunto discreto. A noção de serviço à humanidade é apresentada de forma mínima e o estímulo ao desenvolvimento de uma consciência espiritual é praticamente ignorado. Uma dicotomia entre teoria e ação resulta em uma tendência para ensinar habilidades práticas e manuais a alguns, o ensino através de livros, a outros, capacidade de participar em planejamento e tomada de decisão, a poucos, e de levar a cabo as ordens dadas, à maioria. Nessas circunstâncias infreqüentes quando aprender a pensar recebe determinada prioridade, assume-se essencialmente que o método analítico preenche as exigências. O resultado é uma população de indivíduos com algum treinamento prático, que crescentemente podem se focalizar em partes mais minuciosas da realidade mas, que são incapazes de uma visão maior, particularmente num contexto histórico. Não é de surpreender que, quando tais indivíduos alcançam posições de liderança, ficam propensos a fazer julgamentos sem se dar conta das implicações morais e éticas envolvidas. Eles são capazes de negar a si mesmos o mais nobre dos sentimentos humanos em nome de fins escusos ou por conveniência. Somente agora começa a ser reconhecida a destruição provocada em nosso ambiente físico e social por tais mentes, aparentemente polidas e ostensivamente educadas, com alarmante e estreitas margens de entendimento.

Hoje, a tarefa de ampliar o alcance da educação, felizmente, desfruta de apoio geral e entusiástico. Se a avaliação precedente do drama por que passa a educação é de todo plausível, há que se reconhecer que a reforma do sistema educacional tem de ser a prioridade mais alta nos planos de desenvolvimento de nossa região específica. Aqui novamente, em um enfoque que coloque a aprendizagem no âmago de todos os esforços para transformar a sociedade, a universidade tem de exercer um papel preponderante, desenvolvendo um processo educacional apropriado para a população à qual serve. Por sua própria natureza, a universidade está preocupada com a educação a níveis mais altos. O que dela se requer, no contexto de tão específica dimensão do processo de capacitação, é um esforço combinado para desenvolver sistematicamente o conteúdo e os métodos de três programas de educação: a educação pré-escolar, a educação básica, para crianças de 6 a 14 anos de idade e a escola secundária, que se focaliza no desenvolvimento intelectual e moral de jovens de 15 a 18 anos de idade.

O maior desafio da universidade neste sentido é unir o conhecimento pertinente à criação de programas pedagogicamente fortes que respondam às exigências de cada fase do desenvolvimento intelectual e emocional dos estudantes. Em uma era de progresso acelerado da ciência e da tecnologia, ninguém negará a necessidade da especialização e aprimoramento técnico em campos bem definidos do esforço humano. Mas antes que ocorra a capacitação especializada - seja em um comércio ou profissão, ou em pesquisa e desenvolvimento - a estrutura básica da mente do estudante precisa seguramente ser considerada. A maioria dos livros texto hoje existentes parece assumir que todo estudante está sendo preparado para se especializar nos assuntos específicos que tais textos focalizam. O resultado é não ocorrer nenhum desenvolvimento intelectual sólido, nem um conhecimento razoável de qualquer disciplina. Uma indicação da seriedade do problema é a preocupação geral expressa pelas universidades, de todos os lugares, sobre a qualidade da educação recebida pela maioria dos seus calouros.

A situação exige uma nova e séria atenção no universo do conhecimento, em busca de um modo novo de reunir seus diversos elementos em currículos que respeitem a totalidade do conhecimento, prevendo especializações em uma fase posterior. O foco de cada conjunto de atividades educacionais relacionadas deveria ser o desenvolvimento de uma ou mais capacidades - científica, artística, técnica, social, moral e espiritual - dotando o indivíduo com a compreensão de conceitos, conhecimento de fatos e domínio de métodos, com habilidades, atitudes e qualidades que ele ou ela precisam para levar uma vida produtiva. Especificamente, nesta época de transição, é imperativo dotar os jovens de um duplo propósito moral: encarregar-se de seu próprio crescimento intelectual e espiritual e fazer contribuições significativas para a transformação da sociedade.

A reivindicação aqui exposta... é que um processo educacional organizado em torno do desenvolvimento de um conjunto de capacidades, cuidadosamente selecionadas, pode dar muito mais conhecimento às crianças e jovens, do que programas que visem cobrir a gama natural de habilidades e matérias estudadas. O cultivo de tais capacidades exige demandas especiais de cada um dos três estágios do empreendimento pedagógico. A pré-escola precisa enfatizar o desenvolvimento do caráter. Deve prestar atenção à estrutura emocional de cada criança e ajudar na aquisição das qualidades espirituais que amoldarão as atitudes e perspectivas da/do futuro/futura jovem. Precisa ensinar alegria e liberdade, instilando-lhes autodisciplina e criando em suas mentes uma estrutura moral duradoura. Precisa fomentar hábitos de investigação e reflexão, encorajar a pronta manifestação de pensamento bem delineado e fala eloqüente. Tais objetivos estão em completa harmonia com o desenvolvimento dos vários tipos de destrezas e poderes de percepção que preocupam tantos programas pré-escolares, amplamente propagados internacionalmente.

Qualquer que seja a definição da educação básica, um nível apropriado de proficiência em áreas de conhecimento, tais como matemática, ciências naturais, história, geografia, línguas e literatura, é claramente um elemento importante. Mas o enfoque aqui defendido permitiria aos sistemas educacionais ir muito além das metas bem modestas de hoje. Temos que perguntar quais atributos, em uns oito anos de educação, deveriam ser cultivados em um adolescente de 14 ou 15 anos de idade, a fim de lhe permitir uma transição clara da infância para a mocidade. Podemos prontamente identificar alguns que são especialmente úteis à natureza da educação prevista: a compreensão de que é principalmente o serviço à humanidade e a dedicação à unificação da humanidade que liberam poderes criativos ocultos na natureza da pessoa; a compreensão de que não somente o conhecimento de princípios, mas o exercício e a aplicação da vontade são essenciais ao crescimento pessoal e à mudança da sociedade; uma convicção de que honra e felicidade não residem na busca da riqueza e do poder, mas em respeito próprio e propósitos nobres, em integridade e qualidade moral; uma disposição para analisar e um desejo para entender as características de formas diferentes de governo, leis e administração pública. A estes devem ser somados outros atributos que aumentam a efetividade social: uma compreensão adequada, pelo menos no contexto local, das preocupações com programas de progresso social em tais áreas como saúde e serviço sanitário, agricultura, artes e indústria; um pouco de desenvolvimento do poder de investigação intelectual como um instrumento de uma bem sucedida ação individual e coletiva; uma certa habilidade para analisar as condições sociais e descobrir as forças que as causaram; a habilidade correspondente para expressar idéias e contribuir para a consulta sobre os problemas da comunidade; a capacidade de participar em ações da comunidade como um integrante, humilde, mas decidido, que ajuda a superar conflito e divisão e contribui para o estabelecimento de um espírito de unidade e colaboração e, um grau razoável de excelência, em pelo menos uma habilidade produtiva, através da qual se comprove a verdade de que trabalho é adoração quando executado em espírito de serviço.

Estes são, sem dúvida, os objetivos mais necessários para os oito anos de educação básica. Entretanto, um bom começo pode ser feito em cada uma dessas direções. A escola secundária, então, deve assumir a responsabilidade de assegurar que tais capacidades - relativa tanto à aquisição de conhecimento como às qualidades da mente e do espírito - se desenvolvam a ponto de possibilitar que todo homem e toda mulher continue a cumprir com o papel devido a cada um deles como membros da raça humana. Porém, isto não implica que o programa da escola secundária deva ser uma mera continuação da educação básica. Pelo contrário, a transição pede uma mudança qualitativa, particularmente em termos de rigor científico, uso de linguagem e conteúdo social, pois é nesta fase da educação que esperanças e ideais vagos, em relação ao futuro da pessoa e serviço à humanidade, têm de se cristalizar no duplo propósito moral acima mencionado. O estudante tem agora que se tornar um agente decidido, para com sua própria educação. Todo esforço precisa ser feito para elevar a consciência do estudante a um nível mais alto - consciência das ramificações das escolhas pessoais que são feitas, das forças sociais às quais a comunidade é sujeitada e da natureza dos processos históricos nos quais encontra-se imerso.

Reconhecemos que a concepção e a implementação dos três programas acima descritos representam um ousado desafio para qualquer nação. Sem dúvida, o Brasil tem enorme riqueza de imaginação criativa que pode utilizar para enfrentar este desafio. Já produziu, por exemplo, um eminente pensador como Paulo Freire, cujas idéias influenciaram educadores em todo o mundo. Porém, o sucesso da reforma educacional sugerida neste documento exigirá um comprometimento total de parte do governo e sua vontade em investir os necessários recursos humanos e financeiros. Acima de tudo, aqueles que estiverem envolvidos na reforma precisam aprender com a experiência do passado. Novas gerações no Brasil precisam ser potencializadas - o que é diferente de serem simplesmente instruídas - para que possa ser quebrado o círculo vicioso que se perpetua de crise social e econômica.

Vida Familiar

Não importa quão bem sucedidas sejam as reformas no sistema educacional, os esforços para educar as novas gerações da juventude brasileira falharão a longo prazo se igual atenção não for dada ao fortalecimento da vida familiar. A família é o alicerce básico de uma emergente civilização global. No entanto, a modernização e o extremo individualismo que promove estão levando, à deterioração desta unidade vital, em todas as partes do globo. Trata-se de uma tendência que pode e deve ser redirecionada. A seguinte passagem, extraída de um texto da FUNDAEC, apresenta nossa perspectiva sobre este assunto:

Desde o alvorecer da História, a sociedade reconhece a família como sua unidade organizacional básica. A família é o espaço social no qual o indivíduo é preparado para enfrentar os desafios da vida. É o lugar onde se aprende a amar, a ser tolerante e agir com justiça. O sistema de valores que irá nos caracterizar no decorrer de nossas vidas é principalmente formado durante os anos em que vivemos com nossa família e, a forma como iremos nos comportar e nos comunicar com outras pessoas, é determinada, quase que inteiramente, durante esse período crucial. Mas, infelizmente, é também na família onde podemos receber as influências mais danosas - a tendência a sermos injustos, a agirmos violentamente, a suprimir todos os sentimentos, a temer, a ter preconceitos, a dominar os outros e a sermos um individualista egocêntrico. Estes hábitos, uma vez formados, são levados do ambiente familiar à interação social, tornando-se obstáculos ao progresso e gradualmente rompendo o próprio material básico da sociedade.

Como todas as outras instituições da sociedade nesta era de transição, a instituição da família está em crise. Os valores e os princípios positivos que têm sustentado a vida familiar por séculos estão sendo esquecidos e, como resultado, a humanidade está perdendo rapidamente o espaço saudável no qual, os futuros construtores de uma civilização em constante evolução, devem ser nutridos. A crise da família, contudo, não pode ser resolvida através de tentativas românticas para recuperar o passado. Temos de admitir que o próprio conceito de família como um espaço ditatorial, dentro do qual um ou dois adultos dominam a vida dos outros membros, ou como uma unidade que une seus membros em absoluta lealdade somente para explorar os outros, está totalmente inadequada para a era de maturidade da raça humana. A família permissiva, centrada na auto-gratificação de seus membros, uma alternativa que está sendo oferecida em nome do modernismo, também provou ser deficiente. De fato, sua ascendência trouxe conseqüências desastrosas à sociedade e contribuiu grandemente para o processo de desintegração social.

O que sentimos ser necessário, então, é formular um novo conceito de família, que seja adequado ao presente estágio da História, marcado pela maturidade coletiva que está sendo alcançada pela humanidade. Tal concepção reconheceria que o ambiente mais apropriado no qual o ser humano pode crescer é a família, na qual os filhos vivem com ambos os pais, enquanto ao mesmo tempo usufruem o contato com outros membros da família: os avós, os tios e as tias, os sobrinhos, as sobrinhas e os primos. Neste contexto, a família reconheceria que determinados direitos e responsabilidades acompanham cada posição dentro da sua estrutura. Ainda mais, aceitaria que, para cumprir seu propósito, a família precisa ser guiada pelos mesmos princípios que devem guiar a construção de uma civilização mundial material e espiritualmente próspera. Embora já tenhamos nos referido a eles, dois merecem atenção especial. Um é o princípio da igualdade entre homens e mulheres, o outro, a justiça. Somente quando os padrões de conduta baseados na igualdade entre os sexos forem adotados na família e a justiça oriente todos os relacionamentos poderão os direitos de cada um dos membros da família ser mantidos e as responsabilidades de cada um cuidadosamente cumpridas. Além disso, uma concepção da família de uma forma apropriada para os dias de hoje consideraria como sua preocupação central a busca do conhecimento.

Os esforços unidos da família que se consolida através do amor, que é orientada pelos princípios de justiça e que dedica todos os seus recursos disponíveis à educação de seus membros, especialmente os jovens e as crianças, podem libertá-la dos grilhões da pobreza e contribuir para o progresso da nação. Em um país como o Brasil, onde existem fortes laços familiares e onde as influências corrosivas de uma cultura consumista agressiva ainda não fizeram sentir seus efeitos amplos, diretrizes e programas deviam buscar reforçar aqueles aspectos da vida familiar que resultam na honra de cada um de seus membros, enquanto eliminam aqueles que podem minar a união desta unidade essencial. Atenção particular, cremos, deve ser dada às quatro áreas em consideração: casamento, saúde familiar, paternidade e educação moral; também, à adolescência.

Programas e diretrizes relacionadas ao casamento, parece-nos, precisariam se voltar tanto para o indivíduo como para a sociedade. Ao nível individual, deviam se esforçar para preparar os jovens brasileiros para se conscientizarem da importância de adotarem uma atitude de responsabilidade com relação ao casamento, alcançarem uma compreensão profunda da base moral e espiritual do casamento e se conscientizarem das qualidades e atributos que levam ao estabelecimento da verdadeira união entre marido e mulher, adicionalmente àqueles dons e habilidades necessários para compartilharem sua vida com a de outrem. Para que tais programas tenham sucesso, uma ação paralela deve ser tomada para assegurar que as práticas prevalecentes e as imagens que se tem na sociedade brasileira não endossem, implícita ou explicitamente, a promiscuidade, a infidelidade e o divórcio.

A saúde da família é um assunto que exige inúmeros enfoques. Além da necessidade óbvia de programas que tratem da ampla gama de assuntos relacionados com o bem-estar físico, incluindo planejamento familiar e saúde materno-infantil, existe um desafio mais forte, o de se criar estratégias mais efetivas para combater destrutivos males sociais como o alcoolismo, o uso de drogas e a violência doméstica. Embora programas econômicos e de cunho legal sejam claramente essenciais, os programas educacionais deveriam despertar a compreensão de que qualquer forma de violência ou abuso, seja psicológico ou físico, é fundamentalmente incompatível com a nobreza do espírito humano.

Diretrizes bem definidas, relacionadas com o papel dos pais e a educação moral podiam servir para reforçar os programas relacionados com a saúde e bem-estar da família. O principal objetivo aqui seria prover oportunidade para os pais no Brasil equiparem-se com as destrezas e habilidades, atitudes e conhecimentos necessários para criar condições nas quais as potencialidades espirituais e intelectuais de suas crianças possam ser inteiramente desenvolvidas e florescer.

Quanto à adolescência, acreditamos que a idade entre 12 e 15 anos representa um tempo especial no desenvolvimento da vida de uma pessoa. É durante este período que os conceitos fundamentais sobre a vida individual e coletiva são formulados na mente de um jovem. Os programas, então, precisam ser estabelecidos através do país buscando ajudar as centenas de milhares de jovens brasileiros a formarem uma identidade adequada através de um lado, tornarem-se capazes de enfrentar as forças de um materialismo incansável, a lassidão moral, a violência e a corrupção e, de outro lado, cultivando e canalizando sua enorme energia, espírito, criatividade e capacidades em benefício de suas comunidades locais.

Tudo isso implicaria a existência de uma razoavelmente sofisticada infra-estrutura dedicada à promoção da vida familiar no Brasil, financeiramente apoiada pelo governo e recebendo seu apoio irrestrito. Em termos de uma região típica, o que seria necessário é uma rede de centros locais, estendendo-se ao nível de bairros em alguns casos, com o apoio de um grupo local de servidores que administrariam um vasto programa, abrangendo homens e mulheres, jovens e crianças.

3. Passos Subseqüentes

Diferente dos assuntos que se enquadram nos títulos dos conceitos básicos e das principais áreas de ação que receberam a atenção preliminar que aqui lhes demos, a revisão das estruturas e dos sistemas já existentes no Brasil - o próximo passo de um esforço para direcionar o país em um novo rumo - adentra o campo do planejamento e estaria além do escopo deste documento. Tal passo, como também os passos subseqüentes de mobilização de recursos e lançamento de programas complementares de ação, teria de receber a atenção devida de um processo contínuo de consulta no Brasil conforme descrito no início deste documento. Oferecemos a seguinte passagem como uma contribuição à discussão sobre uma mudança estrutural, assunto que consideramos de importância singular:

A maioria das intervenções voltadas "ao pobre" pelo governo e organizações não governamentais (ONGs) são de dois tipos: a provisão de serviços e a criação de grupos que de uma maneira ou de outra cooperem para melhorar as suas próprias condições. Normalmente, ambos os tipos incluem um componente notável de capacitação. Os objetivos da capacitação vão desde preparar os beneficiários para receberem os serviços continuamente, até a elevação da consciência política e sua própria capacitação. Porém, não importa quão extensas sejam essas intervenções e a capacitação que provêm, elas não definem o caminho do desenvolvimento para a maioria das nações. Isto é em grande parte decorrente de políticas arraigadas em instituições encarregadas de governar e administrar os assuntos sociais, instituições que, infelizmente, pertencem e são principalmente acessíveis apenas a uma minoria privilegiada, apesar do fato de que a maioria das pessoas estejam repetidamente votando neste ou naquele candidato que concorrerem a cargos públicos...

A inabilidade da teoria e da prática de desenvolvimento para adequadamente solucionar os assuntos relacionados à criação, transformação e fortalecimento das estruturas de uma civilização mundial emergente foi exacerbada pelo conflito existente há muito tempo entre duas visões extremas. Em um extremo, a convicção de que a transformação é efetuada basicamente ao nível do indivíduo; no outro extremo, a concepção do ser humano como um mero produto da sociedade, com a mudança estrutural revolucionária como o único modo para acabar com os problemas da maioria das nações. Os partidários da primeira visão incluem, obviamente, os seguidores de movimentos religiosos que vêem a solução para os problemas humanos na salvação das almas, incluindo apenas uma parte delas, ou mesmo para todos no planeta. Embora tal posição seja desaprovada em círculos de desenvolvimento, é surpreendente o fato de tantos planos internacionais de desenvolvimento terem buscado superar a pobreza com mudanças estruturais mínimas, elevando as capacidades dos indivíduos através de programas de treinamento elaborados para serem reconhecidos como habilitados ao trabalho ou mesmo para conseguirem emprego. A insistência de parte daqueles que defendem a segunda visão, alguns tendo ido a ponto de rotular os esforços pela melhoria da condição humana como mera tentativa de adiar uma revolução, cumpriu sua parte para desviar a atenção dos desafios do desenvolvimento institucional. Talvez hoje, quando o debate entre esses extremos parece ter sido exaurido, a teoria social possa examinar a transformação da sociedade humana sem estar condicionada às complexidades das interações das mudanças profundas dentro do indivíduo, podendo deliberar quanto a uma recriação sistemática da estrutura social.

A criação das instituições de uma sociedade global, uma teia de estruturas interconectadas que une a sociedade em todos os níveis, do local ao internacional - instituições que gradualmente se tornam o patrimônio de todos os habitantes do planeta - é... um dos principais desafios [que a humanidade enfrenta]. Sem isso, [tememos], a globalização será sinônimo de marginalização das massas.

Nesta altura, já deve ter ficado bem claro que acreditamos que este desafio somente poderá ser enfrentado através da rigorosa aplicação dos métodos da ciência. Mas, unicamente o método não será suficiente. É necessária uma visão, e a visão apropriada jamais será delineada, dissemos, se a totalidade da herança espiritual da raça humana continuar sendo negligenciada.

Deve ser deixado claro também que, enquanto enfatizando a necessidade de uma mudança estrutural, o que visualizamos não é uma mudança brusca, mas uma que ocorra através de um processo sistemático e gradual. Um enfoque adequado à maturidade da humanidade considerará as realizações alcançadas, as fraquezas e fortalezas, os ajustes necessários e permitirá que as instituições e os sistemas tomem forma gradualmente, utilizando-se dos talentos e capacidades de vasto número de pessoas. Isso nos leva novamente à questão do conhecimento e da necessidade das comunidades, em todos os níveis, de serem dotadas da capacidade de se engajar em um processo de aprendizagem sistemático e estruturado. Com isso em mente, gostaríamos de sugerir que, qualquer que seja o resultado inicial das consultas no Brasil sobre a questão das estruturas e sistemas, urgente atenção deve ser dada ao assentamento das fundações daquelas instituições que possam se devotar à geração formal, aplicação e propagação do conhecimento através das raízes das comunidades em todo o país.

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Parte II

Promovendo um Discurso Sobre Ciência, Religião e Desenvolvimento

Farzam Arbab
Experiência Pessoal

Parece-me essencial que, ao início de um programa de pesquisa sobre o tema de ciência, religião e desenvolvimento, dever-se-ia reconhecer francamente o papel privilegiado que a ciência tem como fonte de metodologia. Os assuntos que envolvem a escolha de métodos científicos, porém, são em si mesmos complexos, e algumas palavras sobre o assunto são aqui oportunas.

A ciência, em seu sentido mais amplo, abrangendo uma extensa gama de fenômenos, tanto da natureza como da sociedade, admite uma variedade de enfoques e métodos, cada um deles apropriados ao caráter de um objeto específico de investigação. No estudo dos inúmeros sistemas e processos científicos, não surgem perguntas diretamente relacionadas à existência de Deus, ou à dimensão espiritual de vida; o método apropriado necessariamente tem que excluí-los de consideração, por nenhuma outra razão que a preservação do rigor científico. Ainda mais, quando tal exclusão se torna uma regra a ser aplicada dogmaticamente pelo mundo científico, tal atitude produz uma inflexibilidade que rouba da ciência alguns de seus poderes. Enfoques "científicos" rígidos tornam difícil avaliar as próprias suposições da ciência em comparação com os sistemas de crenças fora dela. Tais enfoques permitem o estudo da religião, mas normalmente como um fenômeno psíquico ou social criado pelas interações de seres humanos entre si e com o ambiente onde vivem, interações que, em uma análise final, julga-se ocorrerem entre agregados de átomos e moléculas, cada qual se comportando rigidamente de acordo com a medida de complexidade outorgada pela natureza. Esta não é a visão da vasta maioria da humanidade, que todos concordam, terá de participar de forma integral no processo de transformação social e cujas culturas, crenças e valores devem ser incorporados no planejamento e na implementação de atividades de desenvolvimento. Tal fato leva a uma contradição que limita severamente a utilidade dos estudos de desenvolvimento dentro apenas das estreitas definições do "método científico".

Considero como uma premissa de nosso programa de pesquisa ser possível tratar de assuntos de convicção religiosa de forma rigorosa sem considerá-los como triviais ou explicando-os fora do contexto científico, relegando os assuntos de fé para o mundo privado e isolado do indivíduo ou limitando a prática religiosa apenas ao campo do ritual, legitimado pelas necessidades da humanidade como uma espécie social. Isso, naturalmente, não é uma premissa nova: é imanente ao trabalho de cientistas sociais e teólogos de várias escolas. Infelizmente, não teve uma influência significativa na forma de pensar que amoldou o campo de desenvolvimento nas últimas décadas.

Além disso, parece inevitável que, para lidar corretamente com as dificuldades da escolha metodológica, nosso enfoque, para esta pesquisa, deve permanecer mensurável e judicioso. Assim, creio que por algum tempo ainda, a ênfase continuará voltada para a formulação de um discurso sobre o tema ciência, religião e desenvolvimento, em vez de buscar de imediato elaborar estudos ou articular hipóteses. Naturalmente, para ser científico, nosso discurso terá que cumprir certas condições. Por exemplo, sua linguagem tem de se esforçar para ser racional, livre de ambigüidades e objetiva. O desafio à nossa frente é alcançar tal linguagem quando o objeto da investigação toca intimamente na própria convicção religiosa de cada participante.

Acho bastante inadequado o enfoque para o estudo de religião que divide o investigador em duas entidades separadas, o cientista e o crente; o primeiro, apegado às regras acadêmicas e o segundo, obrigado a ignorar os absurdos que esta dualidade introduz em seu sistema de crenças. Que tão insustentável enfoque tenha alcançado ampla aceitação é uma decorrência das imposições do pensamento secular, que age como um tipo de credo fundamentalista. Como resultado, muito da realidade da ciência, da religião e das forças que transformam a sociedade acabou ficando oculta atrás de um véu criado por uma falsa objetividade.

A alternativa para a situação prevalecente não pode restringir-se a apologética ou a uma controvérsia sectária. O que se faz necessário é uma nova consideração à interpenetração da razão e da fé, como também uma exploração sistemática de enfoques racionais que não estejam presos ao materialismo. Embora tal exploração completa não faça parte do escopo deste projeto, o reconhecimento de sua necessidade absoluta é importante para o nosso quadro de referência.

Pode-se questionar que uma conseqüência imediata desta realização é exigir do pesquisador que em certos campos torne explícito os aspectos pertinentes de sua própria convicção e experiência. Para fazer isso de modo significativo, deve-se estar convencido de que é possível manter-se firme em suas convicções sem ser intransigente. Embora a declaração: "se eu acredito que algo é certo e verdadeiro, então aqueles que têm opiniões diferentes devem estar errados" passe pelo teste da lógica formal e embora seja aplicável em incontáveis situações, sua utilidade desaparece quando o assunto em discussão torna-se relativamente complexo. Não é que "A" e "não A" possam ambos estar certos, mas que a vastidão da verdade não permite que a maioria dos assuntos de convicção, se tiverem a devida profundidade, sejam reduzidos apenas a tais comparações. As únicas opções que esta postura simplista acarreta, em instância final, são o fanatismo religioso e ideológico ou o tipo de relativismo que anula a fé, abraça o cepticismo e idolatra a dúvida. É instrutivo observar como as agressões de tal relativismo às crenças, inicialmente voltadas contra a religião, foram dirigidos na era pós-moderna às próprias bases da ciência.

Foi pelas razões acima, e não devido a qualquer intenção de defender um conjunto de convicções religiosas, que decidi incorporar neste trabalho um sumário de certos elementos de minha própria fé. Nesta seção introdutória, tentarei descrever como minha experiência pessoal e meu sistema de crenças determinam o modo como eu trato dos assuntos constantes das seções subseqüentes.

Como Fui Levado ao Desenvolvimento

Fui inicialmente apresentado ao campo do desenvolvimento em 1971, ao ser convidado para participar das deliberações de um grupo interdisciplinar interessado em enfoques integrados relacionados ao desenvolvimento rural. Na ocasião, eu era professor visitante na Universidad del Valle, na Colômbia, ajudando a reorganizar seu departamento de física para harmonizar-se com os padrões de universidades da América do Norte e da Europa Ocidental. Nosso projeto fazia parte de um esforço intensivo da Fundação Rockefeller para melhorar o ensino superior em várias universidades ao redor do mundo e transformá-las em instrumentos eficientes de modernização.

Contribuir à formação de uma geração de cientistas que iriam estabelecer uma base firme para o progresso no seu país, era uma perspectiva emocionante que realmente havia me atraído à Colômbia. Ainda assim, sentia-me incomodado com a distância que separava nosso esforço acadêmico formal da vida de milhões de pessoas cujas necessidades e aspirações exigiam uma atenção imediata. A participação nas deliberações do grupo interdisciplinar, na universidade, era uma excelente oportunidade para eu me dedicar à busca de meios que envolvessem a ciência mais diretamente em sistemas e processos pertinentes à realidade social das massas da humanidade. Afinal de contas, a ciência - a fonte da tecnologia - era para mim a força mais importante que atua no próprio âmago da modernização, aquele processo mágico que eu aprendera a apreciar e venerar em todas as diferentes fases da minha educação.

Como acabou se comprovando, meu entusiasmo pelas discussões do grupo, intelectualmente estimulantes, sobre a natureza do desenvolvimento social e econômico, perdurou por cerca de um ano. De acordo com nossa intenção inicial de nos mudarmos para a América Latina, minha esposa e eu estávamos nos envolvendo cada vez mais nas atividades da comunidade Bahá'í colombiana, especialmente em uma região rural perto de Cali conhecida como Norte del Cauca. Na época em que comecei a participar do grupo interdisciplinar, meus colegas já tinham decidido sobre uma série de definições sobre desenvolvimento e haviam se comprometido a construir um modelo para guiar suas atividades futuras. De acordo com este modelo, o bem-estar resultaria da convergência de vários fatores, como saúde, moradia, educação, emprego, vida familiar, organização comunitária e outros elementos que poderiam se agrupar sob o título geral de "cultura". O desenvolvimento integrado implicava na ação simultânea e unificada de várias organizações governamentais para melhorar estes fatores. O papel da universidade era coordenar estas intervenções e prover o embasamento teórico necessário. O enorme vazio entre a realidade da vida que lá encontramos e o elaborado acervo dos estudos do grupo interdisciplinar, trouxe à tona contradições que me pareceram impossível ignorar.

O exercício no qual nosso grupo estava envolvido era realmente singular. Aqueles foram os anos quando o campo do desenvolvimento começava a voltar sua atenção aos pobres e o Banco Mundial, sob a liderança de Robert McNamara, estava promovendo o crescimento com eqüidade, dando atenção às necessidades básicas e ao desenvolvimento rural integrado. Tínhamos contatos freqüentes com peritos mundiais, alguns dos quais nos visitaram e nos trouxeram o mais recente pensamento sobre desenvolvimento. Com a ajuda deles, nossa elaboração teórica ficou cada vez mais sofisticada; descobrimos fatores novos, refinamos nossas definições, observamos novas relações e pudemos constatar os efeitos de uma mudança em um fator no desempenho dos outros.

Se me lembro bem, o assunto que representou o maior desafio para nós foi a "participação", um tema que, na ocasião, ganhava proeminência no discurso sobre o desenvolvimento. Foi o meu descontentamento com o modo como este desafio foi enfrentado que ajudou a cristalizar em minha mente uma série de objeções às premissas subjacentes ao enfoque que nosso grupo havia tomado. Minha reação foi distanciar-me do grupo aos poucos e, com a ajuda de alguns outros colegas, começar a formular os alicerces para as atividades de uma organização pequena, mas inteiramente nossa: a Fundación para la Aplicacíon y Ensenanza de las Ciencias (FUNDAEC)1 - Fundação Para a Aplicação e Ensino das Ciências. Algumas perguntas que nos fizemos naquele momento - e algumas respostas que encontramos durante os anos seguintes, à medida que se expandia o campo de nossas ações e a FUNDAEC se tornava uma organização de desenvolvimento bem estabelecida - parecem altamente pertinentes à presente investigação sobre o tema de ciência, religião e desenvolvimento.

1. Informações adicionais sobre os princípios e atividades da FUNDAEC podem ser obtidas em seu site: www.bcca.org/services/lists/noble-criaton/fundaec1.html.

A Dicotomia Interna e Externa

A primeira questão levantada, inicialmente na linguagem do grupo anterior, foi a seguinte: Qual era o papel dos próprios aldeões na intervenção interdisciplinar e multi-institucional do desenvolvimento? As análises que encontramos na literatura sobre participação, embora instigadoras de reflexão, não eram inteiramente satisfatórias. Não importa quão arduamente tentamos, o fato é que não pudemos escapar de um sentimento intranqüilo de que, adotando qualquer dos enfoques prevalecentes, estaríamos pedindo às pessoas participar em nossos planos e seguir nossos modelos. Nossa intenção de fazer todo o possível para lhes dar participação no esforço conjunto, especialmente ao nível de implementação, pouco faria para mudar esta mensagem subjacente, a qual, e disso não tínhamos dúvida alguma, seria captada pelas próprias pessoas.

O curioso sobre estas deliberações com relação ao tema da participação era que quanto mais pensássemos em termos de "nós" e "eles", mais distante parecia estar a disposição das pessoas em servir. O pêndulo parecia balançar de um extremo ao outro, do paternalismo das décadas anteriores para a glorificação da autonomia cultural e autodeterminação. Por que tantas organizações de desenvolvimento estavam assumindo com tamanha tenacidade o papel de um agente externo? Estarão os seres humanos condenados a serem externos a todos os grupos, menos um único, uma sub-cultura estreitamente definida por nacionalidade, etnia, classe social, religião e ocupação?

Minha experiência com a comunidade Bahá'í mostrava um agudo contraste com os esforços da maioria dos projetos de desenvolvimento que eu conhecera. Na comunidade bahá'í, eu era um participante de um grupo - neste caso principalmente de pessoas com parcos recursos materiais - moralmente decidido a participar em seus planos, seguir a orientação de suas instituições eleitas e contribuir com meus talentos e recursos pessoais para seu avanço espiritual e material. Embora ter de aprender as sutilezas de uma cultura nova fosse um processo demorado, eu fazia parte, por definição do próprio processo, da coletividade desde o começo; não era um agente externo.

Familiarizar-se com uma população como agente de uma organização de desenvolvimento ou uma instituição de caridade, é algo profundamente diferente do que trabalhar entre amigos em busca de um propósito comum. Nesta segunda opção, a percepção da realidade não é amoldada simplesmente por teorias acadêmicas que descrevem, de fora do grupo, as necessidades e aspirações das grandes massas da humanidade. Embora a gravidade da injustiça social seja sentida e compreendida, a integridade e capacidade de suas vítimas em desfrutarem de alegria, oferece proteção contra algumas emoções que afligem os observadores externos da pobreza: piedade, temor, indignação justificada, ambivalência e o desejo desordenado de conduzir os outros a caminhos irrelevantes, criados conforme as nossas próprias realizações ou frustrações. Para mim, o que me surpreendia sobre a minha nova comunidade não era a pobreza material em si mesma, mas a riqueza de talento que continuava sem ser desenvolvida, juntamente com os sonhos de promissores e condignos futuros não alcançados, à medida que a injustiça sistematicamente bloqueava o desenvolvimento de suas potencialidades.

No decorrer dos anos, fui me convencendo cada vez mais de que o que percebi originalmente como um assunto de escolha pessoal - aprender a ver o mundo de dentro da população que desejava servir e me tornar um participante de seus esforços para transformar o mundo - representava, na realidade, um assunto fundamental na teoria de desenvolvimento até agora tratado inadequadamente. A maioria dos programas de desenvolvimento têm sido intervenções administradas de fora, embora a participação seja exaltada com tanta confiança. Esta é a manifestação de uma estrutura social que aceitou a separação como norma - dividindo as pessoas em grupos de "nós" e "eles" que lutam, que competem entre si, que negociam, que cooperam ou que ajudam um ao outro a partir das fronteiras que delimitam sua separação. Esta tendência reforça e é reforçada por uma intelectualidade que vê como o cunho oficial da inteligência a habilidade de identificar diferenças, dividir e tornar as coisas relativas, tudo em nome de ser científico. Tal enfoque é uma compreensão errada da ciência, pois embora seja verdade que a ciência analisa, ela também integra e aponta os padrões subjacentes de unidade.

A religião, naturalmente, tem contribuído muito para a consolidação das noções separatistas. Porém, seria um engano imaginar que uma postura de superioridade, freqüentemente assumida por um grupo religioso em relação a outro, é algo inerente à religião. A crença na unidade da humanidade, com suas implicações de eqüidade e amor abnegado é, no final das contas, uma concepção religiosa da realidade. Visto do ângulo da unicidade, o desenvolvimento deixa de ser algo que a pessoa faz para os outros. Uma visão começa a emergir quando o rico e o pobre, o analfabeto e o educado, todos podem e devem participar da construção de uma nova civilização que assegure a prosperidade material e espiritual da inteira raça humana.

Como os Pobres São Vistos

A segunda de nossas questões - que permanece pertinente hoje como era para nós no inicio da década de 1970 - tinha a ver com a forma como os programas de desenvolvimento viam a natureza essencial das massas da humanidade, cuja participação buscavam assegurar. Desde o princípio, meus colegas e eu na FUNDAEC, nos identificamos com enfoques que depois chegaram a ser conhecidos como desenvolvimento centrado na pessoa humana. Mas não nos sentíamos à vontade com as imagens que eram evocadas pela frase "os mais pobres dos pobres", usada tão extensivamente na literatura de desenvolvimento daqueles dias.

Quando, depois da Segunda Guerra Mundial, economistas de desenvolvimento começaram a promover políticas de crescimento entre as nações do mundo, o discurso técnico sobre industrialização, acumulação de capital, planejamento, ajuda externa e transferência de "know-how", tinha conotações não apenas de pobreza material, mas da condição de subdesenvolvimento das pessoas. Isto era especialmente verdade ao se referirem aos habitantes de áreas rurais, que eram descritos não importa quão polidamente, como ignorantes, desmotivados, preguiçosos e supersticiosos. Assumiu-se até mesmo que 50% deles viviam vidas virtualmente improdutivas e poderiam ser levados prontamente para as cidades, para prover mão de obra barata para apressar a industrialização. Talvez para mitigar as implicações morais de tal suposição, um grande elogio foi feito a essas massas humanas: foram chamados de capital oculto das nações em desenvolvimento. As primeiras fases de migração rural para áreas urbanas, agora tão profundamente lamentadas, não foram acidentes da história; inspiradas e dirigidas por percepções defeituosas de pensadores da área do desenvolvimento, em relação aos seus próprios semelhantes seres humanos.

Os pioneiros da Revolução Verde levantaram protestos contra esta visão sobre os camponeses, mas sem abandonar a maioria das outras premissas que defendiam sobre a economia do desenvolvimento. Não era o camponês, afirmavam, mas a condição da tecnologia a causa do baixo nível da produção. Os aldeões realmente eram inteligentes e eficientes no uso das ferramentas à sua disposição. A solução para o problema estava, então, na transformação da agricultura tradicional. Como seus outros colegas, esses pioneiros veneravam o que viam como racionalismo moderno. Assim, continuaram a proclamar que os camponeses, também, pertenciam à espécie homo economicus, um artigo de fé que caracterizava o seu elaborado - e admirável - esforço para modernizar a produção agrícola e animal.

A Revolução Verde foi apenas parcialmente bem sucedida. A produção de alimentos aumentou notavelmente e milhões foram certamente salvos de fome iminente. Mas a distância entre ricos e pobres também aumentou, tanto nas aldeias como nas cidades que receberam um fluxo constante de migrantes à procura de uma vida melhor. Enquanto isso, o pensamento voltado ao desenvolvimento continuava a enfatizar as necessidades dos pobres, sua parte e participação no crescimento econômico. Mas ainda não havia nenhuma mudança fundamental na forma em que os pobres eram vistos. A nova imagem, que se mantinha desde o início da década de setenta, é que os materialmente pobres eram um amontoado de problemas e necessidades; pessoas que sofriam de desnutrição e da falta dos serviços de saúde pública; pessoas com pouca educação, vivendo em locais inadequados, carecendo de capital, sem acesso à tecnologia moderna e incapazes de desfrutar qualquer nível razoável de consumo. Como fazer com que todos esses problemas tornem-se protagonistas ativos no desenvolvimento - é algo nada fácil de entender.

O problema vai muito mais longe. Os esforços para livrar a noção de desenvolvimento de tais visões paternalistas tendem freqüentemente a cair em armadilhas ideológicas, no centro das quais há um entendimento enganoso sobre a natureza humana. Nas noções nutridas por essas ideologias, os agentes responsáveis pelas mudanças são trabalhadores competitivos, incansáveis e, também, ativos empresários que acumulam riqueza ou politizados atores sociais concentrados unicamente em questões de poder individual e do grupo. Nem o individualismo excessivo da primeira noção acima, nem a consagração ao conflito, da segunda, naturalmente servem somente ao indivíduo. Por alguma alquimia nunca totalmente explicada, esses esforços e lutas resultam em forças sociais que modernizarão nações subdesenvolvidas e levarão a humanidade a uma era de prosperidade. Nos altares de tão trágicos mal-entendidos sobre a natureza humana, foram sacrificadas as vidas das massas da humanidade durante décadas.

É difícil ver como a teoria e a prática do desenvolvimento podem passar por mudanças estruturais, a menos que o discurso correspondente admita um reexame da natureza do ser humano. Tal exploração simplesmente não pode ser efetuada por especulação e expressões arbitrárias de opiniões desinformadas. A discussão séria deste assunto vital exige, inevitavelmente, um novo nível de diálogo entre ciência e religião.

Concepções da Natureza Humana

Muito do que apresentarei nas seções seguintes está baseado em minha visão da natureza humana. Por isso devo fazer alguns comentários a respeito. Idéias do tipo das que expresso aqui correm o perigo de serem rejeitadas como utópicas. Mas, então, contesto que a rejeição instintiva de aspirações nobres, em nome do realismo, ficou habitual nos enfoques que tratam de assuntos sociais, os quais têm falhado tanto em elevar a raça humana como em reconhecer a impotência desses enfoques. As visões prevalecentes - presumivelmente realistas - da natureza humana são confusas e contraditórias. Por um lado, sonhamos com, e labutamos por um mundo de paz e prosperidade; de outro lado, o que é aceito como teoria científica, nos descreve como escravos do egoísmo, incapazes de nos elevarmos e atingirmos as alturas de nobreza que precisamos alcançar para enfrentarmos os desafios. Trabalhamos, então, por objetivos que sempre se mantêm além de nossos propósitos egoístas. São tais contradições que levaram à paralisia que hoje se vê em todos os estratos de sociedade.

Para nos liberarmos dessas contradições paralisantes, temos que, primeiro, indagar se a história da raça humana, com todas as suas loucuras, substância qualquer teoria como a do pecado original, do inocente sendo corrompido pela civilização, o humano a um passo de ser um deus, ou do animal que é impulsionado por uma série de necessidades insaciáveis. Quando ações de amor, da vontade de conquistar o ego, de transcendência e de beleza são examinadas - lado a lado com a crueldade que tem afligido a humanidade em seu árduo caminho evolutivo - o quadro que emerge é o de um ser humano com uma natureza dual e um conjunto de forças complementares que amoldam e reformam aquela natureza.

Não podemos negar que herdamos, de milhões de anos de evolução animal, atributos que pertencem a essas origens. No animal, tais características não são nem boas nem más; são somente características necessárias à sobrevivência individual ou coletiva. Mas não constituem uma base realística sobre a qual a sociedade humana pode ser construída. Há uma ampla evidência histórica e empírica de que possuímos também uma natureza mais elevada, de ordem espiritual, que tornou possível, gradualmente, que entendêssemos que devemos satisfazer as necessidades materiais dentro de limites apropriados, ao mesmo tempo em que nos elevamos acima das exigências da existência animal. Nenhuma das atitudes habituais de nossa natureza física - como rejeição, culpa, aceitação passiva ou fixação amorosa - conduz à transcendência. O desafio é superar as limitações que nos são incitadas pelas demandas de sobrevivência, aprender a controlar os apetites animais e desenvolver as qualidades de nossa natureza mais elevada, as quais buscam expressão externa. Esta é uma tarefa pessoal a cargo de qualquer indivíduo e, ao mesmo tempo, um imperativo na evolução coletiva da raça humana.

A força primária propulsora deste processo evolutivo, do qual agora somos conscientes, é o conhecimento, um conhecimento que criamos e constantemente recriamos, com base em um entendimento bem claro do papel do ego e daquelas motivações que levam à degradação, como também daquelas que conduzem o ser humano à dignidade e à honra. Os dois repositórios deste conhecimento são a religião e a ciência. Com a ajuda de ambos, podemos descobrir em nós os poderes de nobreza, liberdade e unicidade e aprender a aplicar esses poderes para construir uma civilização em permanente evolução. "És assim como uma espada de fina têmpera," - diz Bahá'u'lláh - "oculta na escuridão de sua bainha, cujo valor se esconde do conhecimento do artífice. Que saias, pois, da bainha do ego e do desejo, para que teu mérito resplandeça e se manifeste ao mundo inteiro" (EBB 2002a, 158:72) Somente a convicção de sua nobreza inerente pode instrumentalizar a humanidade para responder às demandas deste momento histórico crucial. Longe da expressão familiar de um individualismo desenfreado, a liberdade, que é um corolário de tal convicção, é uma dádiva recebida pela obediência às leis de realidade espiritual, fruto do reconhecimento do princípio da unicidade e da interligação que governa o universo.

A Imperatividade de Ser Científico

Outro grupo de assuntos aos quais, meus colegas e eu, na FUNDAEC dedicamos muita atenção - que é também altamente pertinente ao presente discurso - são as preocupações com a natureza científica do empreendimento de desenvolvimento. Minha primeira reação com relação ao modo como a ciência estava sendo discutida no grupo interdisciplinar, que me iniciou no campo do desenvolvimento, fora de surpresa. Por que se dava tanta ênfase - em uma área ainda emergente do conhecimento humano - à criação de modelos elaborados, fazer avaliações precisas e encontrar populações "testemunha", como se a ciência fosse redutível a uma aplicação simplista de alguns métodos rigidamente definidos? Minha atitude foi surpreendente ao grupo, que esperava que o físico recentemente ingresso trouxesse rigorismo aos seus estudos. O que o grupo recebeu, ao invés, foi um apelo por flexibilidade, para a consolidação gradual de um conjunto de fatos e pela busca de discernimentos, em vez da formulação de grandes teorias e complexos modelos.

Tendo observado uma ampla gama de políticas e programas por muitos anos, estou agora convencido que o campo de desenvolvimento se ressente, em vários níveis, de uma compreensão adequada sobre a ciência. Primeiro, na ausência de uma base conceitual consistente, aceitável para a maioria dos praticantes, ela é uma presa das imposições de disciplinas competitivas - economia, ciência agrícola, saúde pública, antropologia, administração e assim por diante - cada uma delas, embora reconhecendo o papel desempenhado pelas outras disciplinas, insiste em formatar o campo de acordo com suas próprias premissas ideológicas. Segundo, na falta de uma interpretação clara das ligações entre ciência e tecnologia, o pensamento desenvolvimentista supervaloriza a tecnologia e não presta a atenção necessária ao avanço da cultura científica dos povos. Terceiro, ao se concentrar em certas ferramentas e procedimentos - para planejar, informar e avaliar - perde a visão dos requisitos necessários a uma aprendizagem sistemática e estruturada, uma característica essencial de qualquer enfoque que reivindique ser científico.

Tratando dos pontos acima, não desejo sugerir que o conjunto bastante complexo das interações sociais, culturais, políticas e econômicas, necessárias para provocar mudanças, deveriam ser estritamente científicas. Nem é razoável assumir que a transformação social seja um problema de engenharia a ser administrado por tecnocratas e levado para direções fixadas pelo poder político e econômico. O que nós temos o direito de esperar é uma aprendizagem sistemática sobre o desenvolvimento, através da qual alguma forma de conhecimento comprovado seja acumulado gradualmente nas comunidades e instituições.

Reflexões como estas levaram a FUNDAEC a dedicar seus primeiros esforços para a criação do que foi chamado universidade rural, uma instituição definida como o "espaço social" no qual os habitantes de uma determinada região rural aprenderiam a trilhar seu próprio caminho de desenvolvimento. Dentro deste contexto, focalizamos nossa atenção em várias esferas de atividade da vida rural dentro deste contexto - produção, comercialização, tomada de decisão, educação, socialização e outros - iniciando um processo de aprendizagem para cada um deles, que consistia de pesquisa, ação e capacitação, realizado com a participação crescente de pessoas da região, à medida que alcançavam um senso de propriedade da universidade rural.

Que o desenvolvimento não é um pacote pronto de "desenvolvidos" entregue a "subdesenvolvidos", mas um processo no qual populações inteiras devem, de uma maneira ou de outra, participar; uma constatação que ocorreu simultaneamente em muitas organizações e agências. Logo de início em nossa experiência com a universidade rural, aprendemos que tal visão de desenvolvimento, enquanto livrando o campo de fórmulas simplistas, trazia novos desafios. O processo não se desenvolve com a mera aplicação da tecnologia, até mesmo quando apoiado pela vontade política e deve estar conectado intimamente com a aprendizagem científica estruturada. Mas embora a ciência possa oferecer os métodos e as ferramentas de investigação e aprendizado, ela por si só não pode fixar a direção correta; a meta do desenvolvimento não pode vir de dentro do próprio processo. O caminho do desenvolvimento deve ser iluminado pela luz dos princípios morais e espirituais que emanam da religião, mas da religião que se disponha a submeter suas propostas ao escrutínio da ciência.

O Equilíbrio Rural-Urbano

Minha experiência em desenvolvimento começou com um intenso envolvimento na vida de uma população rural relativamente pequena e só gradualmente cresceu para abranger assuntos em um contexto global. Durante o tempo todo, o futuro imediato da vida rural no planeta era uma pergunta de importância suprema em meu pensamento. A pergunta é significativa para a atual investigação porque traz à baila a direção que foi fixada para o desenvolvimento social e econômico das nações.

Ninguém afirmaria que os objetivos de desenvolvimento são determinados por consenso, decorrente de uma profunda reflexão religiosa sobre a natureza e propósito da existência humana ou pela exploração científica das opções disponíveis à raça humana. Uma demanda tão simplista não podia ser feita por alguém que não fosse consciente da complexidade dos assuntos humanos. Contudo, seria razoável esperar que, depois de tantas décadas, a definição das metas de um empreendimento global, no qual se tornou o desenvolvimento, não mais fosse feita de forma desorganizada.

O direcionamento atual do desenvolvimento continua sendo - na prática, se não também em teoria - a modernização através da industrialização impelida por uma atividade febril para sustentar o progresso tecnológico. Foi determinado por indivíduos cujas experiências foram amoldadas antes de Segunda Guerra Mundial e pelo colapso de impérios coloniais. As teorias que ajudaram defini-lo, marxista ou capitalista, consideravam a cidade como o fruto mais justo da civilização e a fábrica como a fonte das riquezas. Eles acreditavam que aquele desenvolvimento levaria finalmente a um mundo no qual os camponeses representariam uma porcentagem extremamente pequena da população total e que, até mesmo estes, teriam as características de trabalhadores industriais.

Pessoalmente, nunca me rendi ao romantismo de um passado bonito, da vida tranqüila na aldeia ou a espiritualidade da rejeição de meios. O futuro que pressinto é altamente tecnológico, um futuro no qual os avanços científicos terão possibilitado à humanidade viver livre da luta por mera sobrevivência. Nem vejo muito valor especulando sobre qual será, eventualmente, a forma que cidades e aldeias terão, embora ache difícil de acreditar que uma humanidade madura viverá sob condições que definimos hoje como urbana ou rural. O que me parece ser indispensável é a criação de um futuro viável para que no vasto número de vilas existentes no mundo, seus moradores possam dele participar de forma significativa na construção de uma civilização mundial. Os cinturões de pobreza de Lima e Calcutá não são opções viáveis.

Um fato que perturba, com relação à atual desintegração da vida rural, é que ela é resultado direto de um programa de ação. As convicções que predizem e exaltam a tendência rural-urbana se auto anulam, porque são traduzidos em estratégias que empobrecem a zona rural e aumentam os problemas urbanos, desta forma absorvendo cada vez mais seus recursos e apressando seu ciclo. O Colonialismo transferiu para as nascentes cidades do Sul as condições detestáveis que caracterizaram tantas cidades européias no início da industrialização. Cinco décadas de desenvolvimento provocaram a multiplicação e crescimento dessas cidades cujos problemas parecem insuperáveis, apesar dos esforços combinados de milhares de instituições que labutam infatigavelmente para superá-los. Mas as vítimas desses conceitos e práticas incorretos de desenvolvimento não são somente as famílias carentes que moram, parte nas aldeias, parte nas favelas das cidades. O planeta inteiro sofreu em decorrência desse entusiasmo desenfreado pela industrialização e urbanização, com seus líderes e políticos seguindo seus sonhos impensados e morando com ostentação em ambientes de prosperidade, perderam contato com a alma das massas e sua natureza. Sua persistência inexorável naquilo que definiam como progresso não foi suficientemente influenciada, nem pelo poder de uma rigorosa investigação científica, nem pelos discernimentos espirituais da religião.

A Direção do Desenvolvimento

Ao longo dos anos, meus colegas e eu na FUNDAEC participamos de numerosas deliberações sobre a natureza e o propósito do desenvolvimento, e aprendemos muito de teorias que focalizavam a atenção em um conjunto crescente de temas relacionados entre si, como escolha tecnológica, ambiente, necessidades básicas, desenvolvimento humano, pesquisa e ações participativas. Porém, foi sempre difícil para mim entender como os resultados dessas deliberações poderiam, por si mesmas, mudar a direção do desenvolvimento. Poderia ser fixada uma nova direção se as massas da humanidade continuassem sendo consideradas meras beneficiárias dos projetos, em vez de serem os reais protagonistas do desenvolvimento? E esta mudança pode ocorrer no vazio institucional que caracteriza a vida de tão vasto número de seres humanos?

A maioria das intervenções voltadas "ao pobre" pelo governo e organizações não governamentais (ONG's) é de dois tipos: a provisão de serviços e a criação de grupos que, de uma maneira ou de outra, cooperem para melhorar as suas próprias condições. Normalmente, ambos os tipos incluem um componente notável de capacitação. Os objetivos da capacitação vão desde preparar os beneficiários para receberem os serviços continuamente, até a elevação da consciência política e sua própria capacitação. Porém, não importa quão extensas sejam essas intervenções e a capacitação que provêm, elas não definem o caminho do desenvolvimento para a maioria das nações. Isto é, em grande parte, decorrente de políticas arraigadas em instituições encarregadas de governar e administrar os assuntos sociais, instituições que, infelizmente, pertencem e são principalmente acessíveis apenas a uma minoria privilegiada, apesar do fato de que a maioria das pessoas estejam repetidamente votando neste ou naquele candidato que concorrerem a cargos públicos.

Por que razão o incremento da capacidade institucional entre populações rurais e habitantes de bairros de cidade pobres foi negligenciado por tantos planos de desenvolvimento - é uma pergunta para a qual nunca encontrei resposta adequada. Os economistas que fixaram o tom de todo o empreendimento falaram muito sobre a importância das instituições. Mas a ênfase dada na tradicional dicotomia moderna parece tê-los levado a se concentrarem em criar e fortalecer instituições do assim chamado setor moderno.

Afinal de contas, a existência dos setores tradicionais estava se acabando e aqueles que deles participavam deviam passar gradualmente para um mundo moderno que estava sendo construído para eles. O sonho, naturalmente, não se tornou realidade. O que emergiu, em vez do esperado, foi um mundo no qual a maioria não só vive em pobreza, mas está sendo cada vez mais marginalizada pelos canais institucionais que deveriam permitir sua participação no processo de desenvolvimento de seu futuro. As instituições tradicionais da maioria das sociedades não estão livres de defeitos ou nem mesmo são viáveis em um mundo que passa por rápida transição. O ponto é que eles foram impiedosamente assediados pelas forças da modernização sem lhes ser oferecido substitutos àqueles que só poderiam ser testemunhas passivas da desintegração de seus sistemas e processos de vida. O resultado está aumentando cada vez mais a distância que hoje separa uma sociedade tecnologicamente avançada de um mundo no qual vive a grande maioria da raça humana.

A inabilidade da teoria e da prática de desenvolvimento de adequadamente solucionar os assuntos relacionados à criação, transformação e fortalecimento das estruturas de uma civilização mundial emergente, foi exacerbada pelo conflito existente há muito tempo entre duas visões extremas. Em um extremo, a convicção de que a transformação é efetuada basicamente ao nível do indivíduo; no outro extremo, a concepção do ser humano como um mero produto da sociedade, com a mudança estrutural revolucionária como o único modo para acabar com os problemas da maioria das nações. Os partidários da primeira visão incluem, obviamente, os seguidores de movimentos religiosos que vêem a solução para os problemas humanos na salvação das almas, incluindo apenas uma parte delas ou mesmo para todos no planeta. Embora tal posição seja desaprovada em círculos de desenvolvimento, é surpreendente o fato de quantos planos internacionais de desenvolvimento buscaram superar a pobreza com mudanças estruturais mínimas, elevando a capacidade dos indivíduos através de programas de treinamento elaborados para serem reconhecidos como habilitados ao trabalho ou mesmo para conseguirem emprego. A insistência de parte daqueles que defendem a segunda visão, alguns tendo ido a ponto de rotular os esforços pela melhoria da condição humana como mera tentativa de adiar uma revolução, cumpriu sua parte para desviar a atenção dos desafios do desenvolvimento institucional. Talvez hoje, quando o debate entre esses extremos parece ter sido exaurido, a teoria social possa examinar a transformação da sociedade humana sem estar condicionada às complexidades das interações das mudanças profundas dentro do indivíduo, podendo deliberar quanto a uma recriação sistemática da estrutura social.

A criação das instituições de uma sociedade global, uma teia de estruturas interconectadas que une a sociedade em todos os níveis, do local ao internacional - instituições que gradualmente se tornam o patrimônio de todos os habitantes do planeta - é para mim um dos principais desafios do planejamento e da estratégia do desenvolvimento. Sem isso, temo, a globalização será sinônimo de marginalização das massas. Não vejo como, no presente estado de coisas, as ciências sociais possam tratar deste desafio adequadamente. O enorme avanço científico necessário para tal tarefa exige vontade e uma aplicação rigorosa dos métodos da ciência. Mas somente o método não é suficiente. É necessária uma visão e a própria visão não se transformará em realidade se a herança espiritual da inteira raça humana continuar sendo negligenciada.

Técnica, Poder, Espiritualidade e Conhecimento

Finalmente, em minha tentativa de explicitar certos elementos de convicção e experiências pessoais que influenciaram meu tratamento de nosso tema de pesquisa, eu deveria fazer um comentário sobre o modo como vejo algumas questões relacionadas ao desenvolvimento, que estão interligadas.

Como mencionado antes, o convite inicial para unir-me às deliberações de um grupo sobre desenvolvimento era a de um cientista do qual se esperava total apego ao rigor científico. Logo percebi que o que esperavam de mim era que fizesse contribuições técnicas ao grupo. Com certeza esforcei-me para fazer isso com muito prazer. Porém, aprendi gradualmente que lidar com desenvolvimento - e na realidade com a maioria dos assuntos sociais - ao nível da técnica, era uma tendência crescente e perturbadora de nossas tempos. Dei-me conta, cada vez mais, das limitações de uma tecnocracia e cheguei a sentir-me desestimulado de pertencer a ela. No entanto, a escolha oferecida pelos críticos das regras tecnocratas era a exaltação de políticas normativas e do poder político, que achei muito menos atrativa.

Que mudanças e transformações envolvem a participação do poder, é um fato inegável. Que numerosos assuntos no campo de desenvolvimento têm uma dimensão política significativa, é também irrefutável. Mas a premissa que o poder político e econômico - interpretado como vantagem desfrutada por pessoas ou grupos ou como um atributo que indivíduos, facções, povos, classes e nações buscavam alcançar, com o objetivo de superar, dominar, resistir e ganhar - e como o agente que trará prosperidade à inteira raça humana, é uma premissa insustentável. Apesar de todas as reivindicações em contrário, não há uma evidência histórica convincente para esta suposição. A mim parece que a aceitação de tal premissa, em nome do realismo é em si mesma uma indicação da confusão que aflige o pensamento social.

A rápida expansão da civilização ocidental leva a todas as partes do mundo as bênçãos e também os desacertos do Iluminismo. As bênçãos incluem a remoção sistemática dos véus da superstição. Mas, infelizmente, isto é acompanhado pela rudeza da mente que tende a descartar o ideal e chamar de real o que é feio e vil. O resultado, depois de alguns séculos de insistência, é o esquecimento generalizado dos inúmeros poderes do espírito humano, o qual é, na realidade, responsável por algumas das maiores realizações do passado da humanidade. Entre estes estão os poderes de unidade, de serviço humilde, de ações nobres, de amor e de verdade. Mas até mesmo mencionar a palavra verdade em discurso respeitável ficou inaceitável; a verdade foi destronada e reduzida a algo que pode ser negociável ou uma mera expressão de domínio. A mais enfática mensagem anunciada no mundo inteiro para toda uma geração ouvir foi: "aquele que é bem sucedido é que está certo."

A única explicação que encontrei sobre como um processo de desenvolvimento intelectual, tão intimamente associado em suas origens com a livre investigação da verdade, mas que nos levou às atuais dificuldades, é a persistente negligência quanto a dimensão espiritual da existência humana. O moderno conhecimento científico tem mostrado seu poder de nos libertar das garras das religiões nas quais impera a superstição e que se mantêm por prerrogativas farisaicas. Mas tem demonstrado, também, como a religião pode perder sua direção quando cai vítima do materialismo. O sistema de conhecimento que atualmente impulsiona o desenvolvimento do mundo é fragmentado. Seus fragmentos, por si mesmos, não podem atender aos problemas, altamente complexos e inter-relacionados, de sociedades profundamente carentes de uma transformação completa. No entanto, o poder que pode, em última instância, salvar a humanidade de sua presente condição é o poder do conhecimento. Minha percepção do papel do conhecimento no desenvolvimento, que me leva a examinar o tema de nossa pesquisa no contexto da capacitação, será o assunto da quarta seção deste documento.

Comentários Adicionais

No restante desta seção, trato de vários pontos relacionados diretamente com os argumentos das páginas anteriores. Tais comentários têm o objetivo de prover um contexto adicional para as idéias apresentadas até agora e lhes dão uma clareza adicional.

Definições de Ciência

Ao escrever este documento, tentei evitar definições explícitas de ciência. A literatura de vários campos está, naturalmente, repleta de tais definições. A nenhuma delas eu seriamente daria meu endosso, convencido que estou que entidades complexas revelam suas operações internas somente se forem enfocadas a partir de uma diversidade de frentes. Afirmativas sobre o que a ciência é e não é, são úteis até o ponto em que são utilizadas para oferecer e ampliar discernimentos e não numa atitude reducionista. Para o propósito deste documento, uma frase como "um sistema de conhecimento e de práticas" parece suficiente, ao que me permite discutir a ciência em termos bem amplos. Espero, contudo, que o que emergir seja consistente com a noção de ciência como uma expressão daquelas faculdades da alma racional que, através tanto das percepções sensitivas como das faculdades da razão, lance luz sobre a realidade dos fenômenos internos e externos.

Minha própria visão da ciência foi formada pela física teórica, um volume modesto de leituras sobre filosofia e história da ciência e anos de trato com as ciências sociais, com meu trabalho nos campos de desenvolvimento. Mas a fé imutável que tenho na ciência, que eu confio, vem dos argumentos apresentados neste documento, tem suas raízes na crença religiosa como também no treinamento científico. Tão insistentes são os ensinamentos Bahá'ís sobre o papel crítico da ciência no avanço de civilização que seria difícil a um Bahá'í não se impressionar diante tanto da herança científica da humanidade, como de seu potencial de realizações futuras. Estes ensinamentos definem, sem qualquer ambigüidade, o quão supersticiosa é qualquer convicção religiosa que claramente discorda dos resultados confirmados da investigação científica. Tais declarações, como a seguinte, de 'Abdu'l-Bahá, é representativa dos numerosos escritos sobre este assunto:

As virtudes da humanidade são muitas, mas a ciência é a mais nobre de todas elas.... A ciência é o esplendor do Sol da Realidade, o poder de investigar e descobrir as verdades do universo, um meio pelos qual o homem encontra caminho a Deus. ...

A ciência é a primeira emanação de Deus ao homem. Todas as coisas criadas incorporam a potencialidade da perfeição material, mas o poder de investigação intelectual e conquista científica é a maior virtude, especificamente do o homem apenas.... O desenvolvimento e progresso de uma nação estão de acordo com a medida e o grau das suas realizações científicas. Por esse intermédio, sua grandeza aumenta continuamente, e dia a dia, o bem-estar e a prosperidade das pessoas são asseguradas. (EBB, 2005, pp.58-59)

Estaria me enganando, porém, se desse a impressão, de que a ciência só recebe elogios nas escrituras Bahá'ís. Também existem passagens que advertem sobre o dano que pode ser causado pela ciência quando se divorcia da percepção espiritual. "As ciências de hoje são pontes para a realidade", declarou 'Abdu'l-Bahá, "se elas não conduzirem à realidade nada resta senão inútil ilusão." (EBB, 1993, 99:72)

Religião e Desenvolvimento

As limitações de um discurso sobre desenvolvimento restringido por definições limitadas do "método científico", às quais aludi, não são somente teóricas em natureza; elas afetam a operação de programas de desenvolvimento em todos os níveis. Desde seu início, o pensamento desenvolvimentista adotou as atitudes de uma tradição secular que, historicamente, foi influenciada por uma concepção inadequada sobre o conhecimento:

Este enfoque reducionista do conhecimento leva a maioria dos especialistas em desenvolvimento a se tornar gigantes de um olho só, cientistas carentes de sabedoria. Eles analisam, prescrevem e agem como se o homem pudesse viver somente de pão, como se o destino humano pudesse ser reduzido unicamente à sua dimensão material.

(Goulet, 1980, p., 481, ênfase no original)

As atitudes em relação à religião estimuladas pela cultura secular no campo do desenvolvimento floresceu de uma condição de desinteresse para uma de aberta hostilidade. O agora clássico de Gunnar Myrdal, Drama Asiático, provê uma cândida declaração - na verdade nada excepcional - deste ponto de autoconfiança da fé secular:

A religião é, naturalmente, crucial, mas não a interpretação das antigas escrituras e das elevadas filosofias e teologias desenvolvidas durante séculos de especulação. Realmente, é surpreendente o quanto escritores do Ocidente, como também do Sul da Ásia, julgam estar falando de povos da região quando se referem livremente ao impacto do Hinduísmo, do Budismo ou do Islã, cujas religiões consideram como conceitos gerais e, freqüentemente, como intelectualizados e abstrusos. Deveria ser estudada a religião da forma que realmente se manifesta entre as pessoas: um complexo estratificado e ritualístico de convicções altamente emocionais e tradições que dão a sanção de santidade, tabu e imutabilidade a arranjos institucionais herdados, modos de viver e atitudes diante da vida. Entendido neste sentido realista e abrangente, a religião normalmente age como uma tremenda força para a inércia social. O autor não conhece nenhum exemplo no Sul da Ásia atual onde a religião tenha induzido a mudança social. No máximo alimenta a compreensão dos ideais de modernização. De um ponto de vista de planejamento, esta inércia relacionada à religião, como outros obstáculos, deve ser superada através de políticas voltadas a mudanças, formulada no contexto de um plano para desenvolvimento. Mas as convicções e tradições, religiosamente sancionadas, não só agem como obstáculos entre as pessoas para aceitarem o plano aprovado, como criam inibições nos próprios planejadores ao compartilharem das mesmas ou com medo de contrariá-las.

(Myrdal, 1972, pp. 48-9)

Declarações magistrais deste tipo por muito tempo inibiram trabalhadores na área do desenvolvimento de dar a atenção devida à força da religião, até mesmo quando eles próprios tinham firmes convicções religiosas. Mas agora, quando cinco décadas de intervenção revelaram as forças e fraquezas dos padrões dominantes de pensamento, aqueles envolvidos na área do desenvolvimento estão cada vez mais expressando em voz alta o seu descontentamento com as conseqüências deste enfoque limitado em seu campo de especialização. Esta mensagem é fortemente exposta em "Cultura, Espiritualidade e Desenvolvimento Econômico: Abrindo um Diálogo", de William F.Ryan (1995) ao narrar suas entrevistas com cerca de 200 especialistas de todo o mundo, que serviu de ponto de partida para nosso esforço atual.

Incorporar o assunto da religião em um discurso de desenvolvimento não é uma tarefa fácil. É verdade que o campo foi razoavelmente aberto a novas idéias, mas mostrou relutância extraordinária em abandonar sua atitude mental fundamentalmente materialista. Com lentidão dolorosa, foi sendo aceita a participação de pessoas, suas culturas e seus valores como assuntos legítimos a serem considerados; até mesmo a menção de espiritualidade está começando a desfrutar de uma alguma aceitação. Porém, são levantadas mil objeções no momento em que a palavra religião é apresentada. Não existe oposição, evidentemente, ao que Goulet chamou de uso "instrumental" de convicções religiosas. Estes são "vistos principalmente como meros meios - de ajuda ou obstáculos - para a realização de metas decorrentes de fontes externas aos sistemas de valores em questão". (Goulet 1980, pág., 484, ênfase no original) Embora os agentes de desenvolvimento possam ser sensíveis a valores locais, eles

normalmente baseiam suas metas em um universo externo a esses valores; de modelos de desenvolvimento ou de suposições comuns de suas respectivas disciplinas científicas. Assim, um demógrafo se esforçará para "somar" valores locais ao seu objetivo de reduzir a concepção ou alcançar um nível zero de crescimento da população. Semelhantemente, o agrônomo buscará uma prática tradicional sobre a qual "enxertar" sua recomendação quanto ao uso de pesticidas químicos. O mesmo ocorre com um agente comunitário, tentará "mobilizar" a população para fins políticos em torno de símbolos tradicionalmente reconhecidos.

(Goulet, 1980, p. 484)

Este tratamento instrumental da religião é acompanhado de uma série de observações superficiais sobre a relação entre religião e progresso, que demonstram uma má vontade em estudar, em qualquer grau que seja, a forma como várias tradições religiosas tratam do assunto em discussão. Uma declaração feita por W. Arthur Lewis ilustra a atitude prevalecente:

Tem a religião produzido um efeito independente em amoldar a conduta econômica ou reflete apenas as condições econômicas? É óbvio que as convicções religiosas se transformam à medida que mudam as condições econômicas e sociais. As doutrinas religiosas estão sendo continuamente reinterpretadas e ajustadas a novas situações...

Não podemos aceitar a conclusão que é sempre a mudança econômica que causa a transformação religiosa e nunca que a transformação religiosa cause a mudança econômica ou social. Não é verdade que, se os interesses econômicos e as doutrinas religiosas entrem em conflito, o interesse econômico sempre ganhará. A vaca hindu permanece sagrada durante séculos, embora isso seja claramente contrário aos interesses econômicos. Ou, para citar outro exemplo, o fracasso da Espanha em obter e explorar as oportunidades econômicas decorrentes da descoberta do Novo Mundo não pode ser explicado satisfatoriamente sem levar em conta as atitudes e convicções religiosas que impediram a Espanha de competir com outros países. É possível uma nação abafar seu crescimento econômico adotando, de forma apaixonada e intolerante, uma doutrina religiosa de um tipo que seja incompatível com o crescimento. É possível, alternativamente, que a conversão a uma nova fé seja a faísca que provoca crescimento econômico.

(Lewis, 1995, pp. 106-107)
O Campo do Desenvolvimento

A palavra desenvolvimento - que envolve uma gama enorme de significados no idioma inglês - é principalmente usada neste trabalho para denotar um processo histórico particular. Durante os últimos anos da década de 1940 e os primeiros da década de 1950, seguindo-se ao colapso dos impérios coloniais, o mundo estava pronto para uma transformação econômica e social sem precedentes, tendo testemunhado o aparecimento de um conjunto de atividades cujo propósito, exceto o da reconstrução da Europa, foi o "desenvolvimento" das nações então consideradas atrasadas. Este campo de atividade, originalmente preocupação de um grupo de economistas de desenvolvimento (veja, por exemplo, Meier e Seers, 1984), rapidamente tornou-se um empreendimento global gigantesco envolvendo os governos, uma constelação de agências internacionais, o setor privado e uma corrente cada vez maior de ONG's.

Em seus primeiros anos, a prática do desenvolvimento estava intimamente relacionada à ajuda estrangeira. Na maioria dos países, porém, a proporção de ajuda financeira canalizada através de programas de desenvolvimento aos fundos gastos pelos governos e companhias privadas para efetuar mudanças sociais e econômicas, diminuiu gradualmente até que, hoje, em muitos casos tornou-se irrisória. No entanto, o campo do desenvolvimento cresceu continuamente em importância, em termos tanto do número daqueles que participam em suas atividades, como na influência que exerce sobre a opinião pública e na formulação de políticas. Seus sucessos e fracassos se tornaram assuntos vitais na vida social e política das nações, desafiando os recursos intelectuais de pensadores famosos em uma variedade de campos científicos e profissionais. Sua linguagem entrou até mesmo no vocabulário popular, com termos como Terceiro Mundo, transferência de tecnologia, necessidades básicas e sustentabilidade, agora já muito populares.

É razoável a reivindicação, então, de que o discurso multifacetado de hoje sobre desenvolvimento é de grande importância para o futuro da humanidade e que o rumo que deveria tomar nos anos próximos é um assunto merecedor de séria consideração. Dada a magnitude das forças em jogo, novas idéias somente serão difundidas se forem comprovadamente oportunas e isto não pode ser feito sem uma compreensão adequada da evolução do desenvolvimento durante as cinco décadas, ou mais, desde o seu começo. Embora uma discussão mais profunda do assunto esteja além da extensão do presente trabalho, alguns comentários parecem-me cabíveis.

Em um primeiro relance, certas características do discurso sobre desenvolvimento podem sugerir uma evolução linear de pensamento através de uma série de fases bem definidas e progressivas. Na verdade, as primeiras três décadas de atividade têm sido repetidamente descritas nestes termos. Dennis A. Rondinelli, por exemplo, dá o seguinte relato em seu trabalho, de 1983, intitulado: Projetos de Desenvolvimento como Experiências em Políticas.

As complexas e incertas mudanças que ocorreram em políticas de desenvolvimento e estratégias de ajuda podem ser classificadas em três períodos distintos na história das teorias de desenvolvimento. As políticas de desenvolvimento industrial dos anos cinqüenta e do início da década de 1960 buscavam um crescimento máximo nas economias das nações em desenvolvimento, acreditando o efeito-cascata-e-espalhe envolveriam a maioria dos pobres em atividades econômicas produtivas. As políticas da época buscavam altas e rápidas taxas de crescimento na produção nacional com pequeno interesse quanto a efeitos distributivos e assim utilizou largamente de estratégias de ajuda sem alvo definido.

As políticas de desenvolvimento dos anos sessenta foram previstas para superar obstáculos e eliminar as limitações existentes ao crescimento econômico, redistribuindo ativos produtivos, capacitando recursos humanos, controlando o crescimento populacional e aumentando a capacidade produtiva nos setores mais atrasados das economias em desenvolvimento. Os planos de desenvolvimento setorial buscavam mudar essas condições sociais e econômicas, que eram consideradas obstáculos ao desenvolvimento. Estas políticas utilizavam formas de ajuda com alvos semi-definidos: as ajudas técnica e financeira focalizavam-se e concentravam-se mais em problemas de desenvolvimento específicos e junto a grupos de pessoas consideradas com características adversas a um crescimento econômico.

As políticas da década de 1970 buscavam o crescimento econômico com eqüidade social; preocupavam-se muito com a distribuição de benefícios, como também com a taxa e a rapidez da produção econômica. Buscavam canalizar ajuda à maioria pobre e recursos a populações que subsistiam em áreas rurais, provendo as necessidades básicas nos países mais pobres e melhorando os padrões de vida de "públicos especiais" ou grupos de pobres. Estes objetivos foram largamente perseguidos através de estratégias definidas de ajuda.

(Rondinelli, 1983, pp. 23-4)

Relatos como o anterior mostram um quadro mais ou menos preciso do que pode ser chamado de "principal corrente de desenvolvimento" do fim de Segunda Guerra Mundial até os primeiros anos da década de 1980. Para serem completos, eles teriam também que descrever a relevante proeminência das organizações da sociedade civil, imperceptível no princípio, mas já célebres no final do período. Com tal projeção, poderiam contar a história de como, pelas interações de dois fluxos de esforços e em pouco mais de três décadas, o discurso sobre desenvolvimento ampliou sua gama de preocupação para incluir assuntos essenciais como crescimento com eqüidade, necessidades básicas, tecnologia apropriada, a condição da mulher, planejamento e implementação de projetos como instrumentos de aprendizagem, avaliação, participação e organização comunitária para um desenvolvimento centralizado nas pessoas.

Apesar desta expressiva acumulação de idéias, porém, seria difícil argumentar que a política e a prática do desenvolvimento ocorreram em fases sistemáticas e sucessivas. Já nos primeiros anos dá década de 1980, podiam ser vistos os sinais de um colapso. Rondinelli assim continua:

Mudanças turbulentas na economia mundial e nas condições econômicas, sociais e políticas entre as nações em desenvolvimento no início da década de 1980 criaram um ambiente de maior incerteza no qual os objetivos e enfoques quanto a ajuda estrangeira mudaram rapidamente. Uma nova ênfase foi colocada em ajustes macro-econômicos nos custos ascendentes de importações para as nações em desenvolvimento e baixa demanda de suas exportações. Foi dada maior atenção à produtividade do setor privado. Menos recursos estavam disponíveis para ajuda internacional e começou a minguar a forte ênfase em satisfazer às necessidades e aumentar a produtividade dos pobres, que haviam caracterizado as teorias de desenvolvimento na década anterior.

(Rondinelli, 1983, p. 24)

O que antes parecera ter sido um movimento progressivo, começou a parecer algo cíclico à medida que o discurso sobre desenvolvimento retomou algumas atitudes que o haviam caracterizado em seu início. Toda a década de 1980 chegaria a ser considerada por alguns observadores como uma "década perdida." Porém, outros seriam menos benevolentes na análise da disseminação da pobreza - especialmente na África - para a qual as políticas de ajustes estruturais haviam tão decisivamente contribuído. É verdade que durante o mesmo período, o interesse pela sustentabilidade do desenvolvimento começou a ocupar posição central, mas, com a década dos anos noventa chegando ao fim, ficava claro que o conceito nunca possuíra o poder necessário para alcançar seus objetivos. Provou-se incapaz de dar foco ao já, cada vez mais, diversificado conjunto de atividades voltadas ao estreitamento do vazio que separava o mundo materialmente rico do materialmente pobre, uma condição que afeta seriamente a consciência moral da sociedade moderna.

Parece-me, então, que em nosso esforço para explorar o tema de ciência, religião e desenvolvimento, faríamos bem em lembrar de algumas características que se opuseram ao discurso desenvolvimentista em sua evolução durante os últimos 50 anos.

Primeiro, muito conhecimento foi gerado que serve para explicar a natureza dos muitos fatores interagindo que contribuem ao processo de desenvolvimento, que é altamente complexo. O pensamento desenvolvimentista, pelo menos em sua literatura, foi crescentemente aprofundado à medida que os diferentes níveis de assuntos que se interligavam eram descobertos e analisados, às vezes com notável brilho. Contudo, política e prática continuaram a ignorar as lições aprendidas. Os mesmos enganos foram periodicamente repetidos e adotados modismos passageiros com um entusiasmo extraordinário. Estratégias, adormecidas por longo tempo, foram reavivadas de repente, com recursos significativos colocados à disposição de programas e enfoques favoritos, às lideranças de órgãos influentes, estas em constante mudança.

Segundo, em toda a fase deste progresso, os pensadores da área de desenvolvimento fizeram o máximo que puderam para expressar suas teorias e observações em termos técnicos. A tecnocracia, com sua reivindicação familiar de estar livre de julgamentos de valor começou a ditar o modo vigente de operação. No entanto, era aparente a todo o mundo envolvido que as decisões importantes eram baseadas em valores e alcançadas através do jogo do poder político.

Terceiro, a evolução do pensamento desenvolvimentista levou a uma preocupação crescente das pessoas. Em decorrência, culturas, valores, tradições e cosmovisões, vieram a ser consideradas vitais ao planejamento e implementação do desenvolvimento. Porém, apesar do fato da espiritualidade ser tão central às cosmovisões, apoiadas pela vasta maioria dos habitantes da Terra, as premissas da teoria e da ação de desenvolvimento, permaneceram quase que inteiramente materialistas, olvidadas da dimensão espiritual da existência humana.

Intervenção para o Desenvolvimento

As idéias expressadas anteriormente, sob o título "A dicotomia interna e externa", são elementos de uma categoria mais ampla de consideração, que podem ser com precisão chamadas de "a ética do desenvolvimento". Como um campo de ação, o desenvolvimento tem que estar permanentemente alerta para não transgredir os limites além dos quais os esforços para melhorar as vidas das pessoas degenerem em uma interferência anti-ética. A pergunta "Quem me deu o direito de intervir?" deveria estar sempre na mente do planejador consciencioso do desenvolvimento. Majid Rahnema traz à tona, talvez com bastante severidade, os aspectos inquietantes desse desafio:

Para impedir que o fracasso do desenvolvimento seja seguido de novas formas de colonização e mais perniciosos sistemas de intervenção, o próprio conceito de intervenção deveria ser explorado a fundo. Em particular, "os ativistas" e os assim chamados agentes de transformação, como também os intelectuais para os quais os escritos ou palavra oral tendem a dar significado à vida, deveriam tentar examinar as dimensões éticas da intervenção.

Minha experiência pessoal, às vezes amarga, ensinou-me a ser tão cauteloso neste respeito ao ponto de perceber a intervenção como um ato próximo do sagrado. Que direito tenho de intervir na vida de outrem, a quem não conheço, de cuja pessoa tenho apenas uma impressão pessoal, egocêntrica?

Há que se reconhecer haver o gesto espontâneo, compassivo do Bom Samaritano que, sem abrigar qualquer projeto de intervenção, dirige-se a um homem aparentemente ferido e agonizante em uma estrada deserta e busca ajudá-lo como pode. Aquele ato não é uma intervenção, no sentido usado no vocabulário moderno de ajuda. É um gesto que não tem nenhum outro propósito senão o próprio ato e, conseqüentemente, é um ato de amor e compaixão, uma "ação correta" no sentido budista da palavra. Aqui, aquele que presta ajuda não se pergunta se a pessoa que irá receber a ajuda ser-lhe-á de utilidade algum dia, se se trataria de um santo, de uma pessoa pobre ou até mesmo de um criminoso potencial. Isso é por que o ato do Bom Samaritano está bem próximo do território do sagrado.

O caso é diferente com um projeto de intervenção, que é preparado e desenvolvido em algum outro lugar, freqüentemente dentro de uma estrutura institucional, com uma visão para mudar a vida de outras pessoas, de uma forma útil ou benéfica para o interventor. Aquela pessoa tem que perceber, pelo menos, que, ele ou ela, está sendo lançada em uma aventura cheia de perigo. A consciência desse fato impõe àquele que intervém a se questionar sobre o "porquê" e "para que" de seus atos. São necessárias qualidades pessoais excepcionais para evitar a possibilidade de que intervenções bem-intencionadas possam terminar produzindo o oposto do que foi planejado. A maioria dessas qualidades é de fato qualidade essencial para qualquer tipo de relação genuína, no verdadeiro sentido da palavra.

A qualidade mais importante é manter-se aberto e sempre atento ao mundo e para todos os outros seres humanos (atento, significando pronto para atender, ajudar). Estar atento implica a arte de escutar, no sentido mais amplo da palavra, sendo sensível ao que é, observando as coisas como realmente são, livre de qualquer julgamento preconcebido, não como gostaria que as pessoas fossem e acreditando que a experiência ou visão de toda e qualquer pessoa é uma fonte potencial de aprendizado. Tal atitude é basicamente diferente daquela que peritos ou consultores com alta remuneração, que geralmente agem com base em uma série de certezas que procedem de seu "conhecimento pessoal" ou de sua "experiência profissional." Tais "autoridades", particularmente quando se recusam questionar suas próprias "certezas", não só desencaminham as pessoas em cujas vidas intervêm, mas também perdem o contato com os próprios objetos de seu conhecimento. Por não serem capazes de escutar, constatam que o conhecimento acumulado por eles logo se torna obsoleto e será de pequena relevância para as realidades mutáveis das quais tratam. Os militantes e outros entusiastas de vários "ismos," missionários, políticos carismáticos e outros "sedutores profissionais", pastores, vendedores e especialistas de todos os tipos, inclusive "eruditos" à procura de reconhecimento e fama, são todos exemplos de interventores cuja incapacidade de escutar e aprender de seus públicos-alvos, os desqualifica de qualquer tipo de intervenção. Eles raramente percebem que fazem aos outros aquilo que seus egos todo-poderosos, com suas técnicas de sedução e manipulação, lhes fazem.

A intervenção deveria ser considerada somente num contexto de um exercício constante de autoconsciência, de um estado "meditativo" onde a pessoa aprende ver a si mesma como realmente é, não como a pessoa gostaria de ser. Tal intervenção se opõe à ajuda e ao desenvolvimento institucionalizado, que representam a corrupção e o oposto completo do gesto espontâneo, compassivo do Bom Samaritano.

(Rahnema, 1997, pp. 8-9)
A Dignidade Humana

O texto a seguir de Robert L. Heilbroner extraído de A Grande Ascensão: A Luta pelo Desenvolvimento Econômico em nosso Tempo (1963) é citado aqui, não pela relevância de seus argumentos econômicos, mas para realçar a forma como o discurso sobre o desenvolvimento tem freqüentemente tratado os materialmente pobres. Por "grande ascensão", Heilbroner quis significar o desenvolvimento econômico do mundo inteiro, um processo pelo qual mais de 100 nações a maioria delas, de acordo com ele, que até então "não tiveram nenhuma história", tornar-se-iam entidades nacionais a se inserirem na "crônica de eventos registrados". Esse fato foi por ele considerado como "o primeiro ato efetivo da história mundial". O livro foi publicado antes que expressões politicamente corretas tivessem nos ensinado a evitar frases sensíveis - mas que infelizmente quase nunca mudando as atitudes subjacentes aos argumentos aparentemente técnicos:

Do que aprendemos sobre o aspecto estritamente econômico do subdesenvolvimento, já sabemos como deve ser o processo básico de expansão econômica. Deve consistir no aumento do baixo nível de produtividade que em cada área subdesenvolvida constitui a causa econômica imediata de pobreza. Este baixo nível de produtividade, como já vimos, é em grande parte devido à falta geral de capital nas nações atrasadas...

Mas como uma nação atrasada começa a acumular o capital que tão desesperadamente precisa? A resposta não é diferente de uma nação atrasada para uma já desenvolvida. Em toda e qualquer sociedade, o capital é formado através da poupança. Isto não significa necessariamente colocar dinheiro em um banco. Significa economizar no sentido "real" da palavra, como os economistas a usam. Significa que uma sociedade tem de evitar gastar todas as suas energias e materiais disponíveis para satisfazer suas necessidades atuais, não importando quão urgentes possam ser....

Esta liberação de esforço produtivo dirigido aos anseios de consumo do momento, a fim de abrir espaço ao esforço voltado para o futuro, não representa um problema assustador para uma nação rica. Mas o problema é diferente para uma nação assolada pela pobreza. Como pode um país que está sofrendo fome restringir suas atividades de auto-sustento? Como pode uma nação, com 80 por cento do povo trabalhando em sua própria terra para se alimentar, redirecionar suas energias para a construção de represas e estradas, fossos e casas, diques de via férrea e fábricas, todos, embora indispensáveis para o futuro, não podem servir de alimento para o dia de hoje? O camponês que cultiva com dificuldades seu infinitésimo pedaço de chão, pode ser o símbolo vivo do atraso, mas pelo menos ele produz as raízes e o arroz que podem mantê-lo vivo. Se fosse acumular capital - para construir uma represa ou cavar um canal - quem o alimentaria? Quem poderia poupar o excesso quando não há excesso algum?

Em síntese, este é o problema básico enfrentado pela maioria dos países subdesenvolvidos e que na aparência parece uma questão insolúvel. Porém, quando analisamos o problema mais a fundo, descobrimos que a situação não é tão derrotista como parece. Pois para um grande número de camponeses que cultivam a terra, seu trabalho não serve apenas para sua própria alimentação. Em outras palavras, assim fazendo, eles estão também roubando seus vizinhos. Na maioria das áreas sub-desenvolvidas, como vimos, o crescimento de populações camponesas numa região tem resultado em uma diminuição da produtividade agrícola bem abaixo daquela que ocorre em países desenvolvidos....

Agora começamos a ver uma explicação ao dilema das sociedades subdesenvolvidas. Existe, em quase todas essas sociedades, um excedente de produção que fica oculto ou que é disfarçado, o qual, se fosse tirado da terra, poderia ser utilizada para formar capital. Trata-se, para ser claro, de capital de um tipo especial e bem simples: capital caracterizado principalmente por grandes projetos que podem ser construídos através de trabalho com muito pouco equipamento: estradas, represas, diques de estrada de ferro, tipos simples de edifícios, fossos de irrigação, esgotos. Embora humildes, estes modelos de "capital social" são essenciais se uma estrutura adicional de capital industrial complexo - máquinas, equipamentos de base, e outros - for seguramente suprido. Assim, o trabalho do camponês, libertado de um trabalho de campo pouco econômico, torna possível um crucialmente importante passo para a solução do problema de escassez de capital...

Vimos como uma sociedade subdesenvolvida pode aumentar sua produção agrícola e simultaneamente "achar" os recursos de mão de obra que precisa para tarefas de desenvolvimento. Mas onde se encontra a poupança - a liberação dos bens de consumo - da qual falamos? Isso nos traz a um segundo importante passo necessário em nosso processo de criação. Quando a produtividade agrícola é aumentada pela formação de fazendas maiores (ou por técnicas melhoradas nas fazendas existentes), parte da colheita resultante deve ser economizada.

Em outras palavras, considerando que o camponês que permanece na terra será agora mais produtivo, ele não pode desfrutar da produtividade aumentada consumindo ele mesmo toda a sua colheita maior. Ao invés, o ganho adicional de sua produção individual deve ser levado para fora da fazenda. A colheita extra conseguida pelo afortunado camponês deve ser economizada por ele e compartilhada com seus até então improdutivos primos, sobrinhos, filhos e filhas, que estão agora ativos no trabalho de projetos de criação de capitais.

Não esperamos que um camponês faminto faça isso voluntariamente. Ao contrário, por tributação de vários tipos ou através de transferência forçada, o governo de um país subdesenvolvido tem que organizar a redistribuição essencial de alimento. Assim, nas fases iniciais de um programa de desenvolvimento bem sucedido, não deve haver nenhuma elevação visível no consumo de alimentos de parte do camponês, embora deve haver uma elevação na produção dos alimentos que planta. Ao invés disto, o que é apto a ser visível é um mecanismo mais ou menos eficiente e, algumas vezes, severo para assegurar que alguma porção desta produtividade recentemente aumentada, seja economizada - quer dizer, não consumida na fazenda, mas tornada disponível para apoiar o trabalhador de criação de capital. É por isso que devemos ter muito cuidado ao avaliar um programa de desenvolvimento, não medindo o sucesso do programa por padrões de vida do camponês. Por muito tempo, tais padrões terão de permanecer estáticos - possivelmente até que os novos projetos importantes comecem a dar resultados.

(Heilbroner, 1963, pp. 92-7, ênfase no original)

É encorajador observar que, ao longo dos anos, foram levantadas numerosas vozes contra tais ataques à dignidade humana, que estão, finalmente, sendo ouvidas. Dimensões éticas e Espirituais do Progresso Social, um relatório preparado para a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, de 1995, provê um exemplo útil:

Uma característica assustadora de muitas culturas - antigas e modernas - é de associar níveis diferentes de dignidade com uma hierarquia de profissões e atividades. Na base de tudo estão, naturalmente, os adultos que nunca trabalharam ou perderam seus empregos e não podem prover o sustento de suas famílias. O "emprego" - não o que ele é ou faz - é que determina a identidade do indivíduo. A pessoa precisa ter grande coragem e recursos internos para resistir à pressão social e cultural que aparta o indivíduo de sua dignidade quando ele não é mais "produtivo." Ao nível internacional, a cultura dominante tende também a tirar a dignidade de grupos sociais e nações quando não contribuem ou não mais contribuem para o crescimento e prosperidade da economia mundial. Como ocorre com a erradicação de pobreza, a luta contra o desemprego e sub-emprego tem que começar com o reconhecimento da dignidade e valor de todo o trabalho humano, até mesmo os mais humildes, inseguros, "improdutivos" ou não remunerados."

(Nações Unidas, 1995, pp. 32-33)

A religião, naturalmente, é uma fortaleza segura para a preservação da dignidade humana. Infelizmente, no curso da História seus apelos característicos quanto à libertação do acúmulo obsessivo de riqueza material têm sido quase sempre totalmente distorcidos. O resultado foi uma tendência para a rejeição do mundo e a exaltação de uma passividade que tem atraído a opressão. Tais distorções devem ser corrigidas para que a força da religião possa cumprir seu papel na luta contra o culto da ganância e os sinais são que isso realmente está acontecendo em muitos movimentos religiosos.

Um elemento de crença religiosa parece crucial neste respeito ou seja, a convicção de que o trabalho realizado em espírito de serviço à humanidade é um ato de adoração a Deus. Dá origem a atitudes que valorizam o progresso econômico mas rejeitam servidão a uma noção errônea da produtividade material. Nas palavras de 'Abdu'l-Bahá:

Na Causa Bahá'í as artes, as ciências e todos os ofícios são tidos como adoração. O homem que faz um pedaço de papel da melhor forma que lhe é possível, conscienciosamente, concentrando todas as suas forças a fim de aperfeiçoá-la, está dando louvores a Deus. Em resumo, todo esforço ou trabalho que o homem faça de todo coração é adoração se for inspirado pelos motivos mais nobres e pelo desejo de servir à humanidade. Servir à humanidade e suprir as necessidades do povo: isto é adoração. Servir é orar. Um médico cuidando de um doente, meiga e ternamente, livre de qualquer preconceito e acreditando na solidariedade da raça humana, está dando louvor.

(EBB, 2001a, p. 78)
O Estado e o Mercado

As duas ideologias que dominaram a vida social e econômica do planeta depois da II Guerra Mundial consideravam o Estado e o mercado como opostos, o primeiro sendo considerado como o guardião do bem coletivo, por um lado; e o segundo, como o protetor da liberdade individual, por outro lado. A bancarrota do sistema soviético levou aparentemente a um fim abrupto a deificação do Estado. Mas a adoração pelas conquistas alcançadas, atribuídas à "mão invisível", ainda subsiste. Pelo contrário, pelo menos ainda no presente, sua voz exuberante pode ser ouvida mais ruidosamente do que nunca, prometendo uma prosperidade que está claramente além das possibilidades da grande maioria dos seres humanos alcançar. Enquanto isso, o fenômeno mais prontamente observado é a marginalização. Seria demais esperar que o campo do desenvolvimento, preocupado como está com as condições do pobre, pudesse utilizar sua vasta experiência e conceder sua sabedoria à consecução do que parece ser um outro caso de sonho evasivo de progresso?

Embora nenhum compromisso claro para esta tarefa se mostre visível, declarações podem ser encontradas na literatura do desenvolvimento que refletem uma prontidão, por parte de alguns órgãos, em assumir tal responsabilidade, se existir a vontade política em assim fazê-lo. O relatório do Banco Mundial, de 1992: Desenvolvimento e Meio Ambiente oferece um exemplo:

A realização de um desenvolvimento contínuo e eqüitativo permanece como o maior desafio à frente da raça humana. Apesar do progresso positivo ocorrido na última geração, mais de 1 bilhão de pessoas ainda vivem em profunda pobreza e com acesso gritantemente inadequado aos recursos de educação, serviços de saúde, infra-estrutura, terra para trabalhar e o crédito necessário, que poderiam lhes possibilitar uma oportunidade de alcançar uma vida melhor. A tarefa essencial do desenvolvimento é prover oportunidades de forma a que essas pessoas e as centenas de milhões em condições nada melhores, possam usufruir do potencial que têm e que não está sendo utilizado.

Mas embora o desejo de desenvolvimento seja reconhecido universalmente, os últimos anos têm testemunhado uma crescente preocupação sobre se as limitações ambientais irão limitar também o desenvolvimento e se o desenvolvimento causará sério dano ambiental - o qual, por sua vez, prejudicará a qualidade de vida, desta e de futuras gerações. Esta preocupação está superada....

Há fortes oportunidades de "ganhar - ganhar" que continuam inexploradas. A mais importante delas está relacionada com a redução da pobreza: não só porque o combate à pobreza é um imperativo moral, mas também porque é essencial para a preservação ambiental. Além disso, somente as políticas que se justificam no campo econômico podem trazer significativos benefícios ambientais. Eliminando subsídios para o uso de combustíveis fósseis e água, dando direito de posse à terra a fazendeiros pobres que a cultivam, tornando mais competitivas as empresas do Estado que causam forte poluição ambiental, eliminando concessões que recompensam com propriedade aqueles que devastam florestas - são exemplos de políticas que podem melhorar a eficiência econômica e a preservação ambiental. Semelhantemente, investir na melhoria dos serviços sanitários e suprimento de água e aperfeiçoar as pesquisas e serviços de extensão, ambos podem melhorar o ambiente e aumentar as rendas.

Mas estas políticas não são suficientes para assegurar uma boa qualidade ambiental; instituições públicas fortalecidas e políticas para a proteção ambiental também são essenciais. O mundo aprendeu durante as últimas duas décadas que deve confiar mais nos mercados e menos nos governos para promover o desenvolvimento. Mas a proteção ambiental é uma área na qual o governo tem de exercer um papel central. Mercados privados provêm pequeno ou nenhum incentivo para restringir a poluição. Seja poluição do ar em centros urbanos, pelo descuido com a eliminação do lixo público ou o incorreto uso da terra ocupada por proprietários desconhecidos, são casos urgentes de ação governamental. Aqui pode haver um equilíbrio entre crescimento de renda e proteção ambiental, requerendo uma avaliação cuidadosa dos benefícios e custos de políticas alternativas, já que afetam a população de hoje e as gerações futuras. A evidência indica que os ganhos com a proteção do ambiente são freqüentemente altos e que os custos com a renda perdida são modestos, se forem adotadas políticas apropriadas. A experiência sugere que as políticas são mais eficazes quando buscam atacar as causas subjacentes, em vez de apenas concentrar-se nos sintomas, focalizando-se nos problemas para os quais os benefícios de reforma sejam maiores, usando incentivos em vez de regulamentos onde for possível e reconhecendo as limitações administrativas.

(Banco Mundial, 1992, p. 1, ênfase no original)
Nobreza

Um aspecto notável da crença Bahá'í é o otimismo extraordinário que demonstra sobre o futuro da humanidade. Tal esperança seria insustentável não fosse uma convicção profunda decorrente dos ensinamentos da Fé de que o ser humano foi criado nobre. O leitor poderá achar útil ver alguns exemplos de como essa questão é tratada nas Escrituras Bahá'ís.

O primeiro adorno (Taráz) do caráter humano, de acordo com Bahá'u'lláh, é o autoconhecimento:

O primeiro Taráz e o primeiro resplendor que despontou do horizonte do Livro Mater é que o homem deve conhecer a si próprio e reconhecer o que leva à sublimidade ou à humilhação, à glória ou ao rebaixamento, à riqueza ou à pobreza. Havendo atingido a etapa do cumprimento e alcançado sua maturidade, o homem necessita riqueza e a riqueza que ele adquire mediante ofícios ou profissões é recomendável e digna de louvor aos olhos dos homens sábios e, especialmente, dos servos que se dedicam à educação do mundo e à edificação de seus povos. Eles, em verdade, são os portadores do cálice da água vivificadora do conhecimento e guiam ao caminho ideal. Dirigem os povos do mundo à senda certa e lhes mostram o que conduz à elevação humana, à sublimidade. A senda certa é aquela que guia o homem ao alvorecer da percepção e da compreensão verdadeira e o conduz àquilo que redundará em glória, honra e grandeza.

(EBB, 1983, p. 43)

Trilhar o caminho reto com a perseverança necessária, seria impossível sem fé na nobreza da nossa própria natureza. Os Bahá'ís são instados a prestar atenção à voz de um Criador todo-misericordioso, em exortações como as seguintes:

Ó Filho do Ser!

Tu és Minha lâmpada e Minha luz está em ti. Que obtenhas dela o teu resplendor e não aspires a outro senão a Mim; pois Eu te criei rico e generosamente derramei sobre ti as Minhas graças.

(As Palavras Ocultas, 2002, p. 12)
Ó Filho do Espírito!

Eu te criei rico; por que te empobreces? Nobre te fiz; com o que te rebaixas? Da essência da sabedoria, Eu te concedi a existência; por que buscas iluminação de outro, senão de Mim? Da argila do amor, te moldei; como é que te ocupas com outro? Volta teus olhos a ti mesmo, a fim de que, dentro de ti, Me possas encontrar, forte, poderoso, O que subsiste por Si Próprio.

(As Palavras Ocultas, 2002, p. 14)

De maneira alguma a convicção Bahá'í sobre a nobreza inerente à raça humana, porém, confirma a noção romântica de que, deixados a si mesmos, os seres humanos instintivamente evitarão ações más de sua própria natureza. 'Abdu'1-Bahá rejeitou esta posição enfaticamente:

Existem alguns que imaginam que um senso inato de dignidade prevenirá o homem de cometer más ações e assegurará sua perfeição espiritual e material. Isto é, que um indivíduo que é caracterizado por inteligência natural, elevada determinação e um potente zelo, refrear-se-á instintivamente, sem qualquer consideração pelas severas punições conseqüentes de más ações ou pelas grandes recompensas da retidão, de infligir danos aos seus semelhantes e terá fome e sede de fazer o bem. E, no entanto, se ponderarmos as lições da história, tornar-se-á evidente que este próprio senso de honra e dignidade é, em si mesmo, uma das graças que derivam das instruções dos Profetas de Deus. Nós também observamos em crianças os sinais de agressão e ilegalidade, e que, se uma criança for privada das instruções de um professor, suas qualidades indesejáveis aumentarão de um momento para o outro. É, portanto, claro que a emersão deste senso natural de dignidade humana e honra é o resultado da educação.

(EBB, 2003a, pp. 114-115)
Em outra passagem, declarou o seguinte:

A causa básica da maldade é a ignorância, razão pela qual temos de segurar firmemente as ferramentas da percepção e do conhecimento. O bom caráter tem de ser ensinado. A luz precisa ser difundida em toda parte, de modo que, na escola da humanidade, todos possam adquirir as características celestiais do espírito e ver, por si mesmos, sem a menor sombra de dúvida, que não há inferno mais horrendo ou abismo mais abrasador do que possuir caráter mau e doentio; nenhum fosso mais negro nem tormento mais repugnante do que manifestar qualidades merecedoras de condenação.

(EBB, 1993, pp. 122:111)

Na Fé Bahá'í, então, a firme convicção na nobreza do ser humano está intimamente ligada a uma fé igualmente forte do poder da educação, mas uma educação que conduza ao caminho da verdadeira compreensão, não aquela que perpetue a tirania do ego.

Fé e Razão

Nossa ansiedade em promover um discurso sobre o tema triplo de ciência, religião e desenvolvimento, surge da convicção que a teoria e a prática do desenvolvimento têm que dar atenção urgente à dimensão espiritual da existência humana. Que tal reivindicação encontre uma audiência receptiva é, até certo ponto, um sinal de maturidade crescente no campo de desenvolvimento. Porém, temos que admitir que o desejo de tratar da espiritualidade não é o resultado de avanço teórico mensurável; está sendo forçado em toda área do esforço humano em decorrência de uma profunda crise que está abalando as próprias estruturas da ordem social. A filosofia materialista se esgotou. Não foram cumpridas as promessas anunciadas com imensa auto-confiança por seus profetas. E, em todas as partes, as vítimas despertas dos sistemas e processos por eles gerados, levantam suas vozes, clamando por uma prestação de contas por seus fracassos:

Chegou o momento em que aqueles que pregam os dogmas do materialismo, quer do Oriente ou do Ocidente, tanto o capitalismo quanto o socialismo, terão de apresentar contas da tutela moral que têm presumido exercer. Onde está o "novo mundo" prometido por essas ideologias? Onde está a paz internacional a cujos ideais proclamaram a sua devoção? Onde estão os avanços para novos domínios de progresso cultural, produzidos pelo enaltecimento desta raça, daquela nação ou de determinada classe? Por que é que a vasta maioria dos povos do mundo está se afundando cada vez mais na fome e na miséria, quando os árbitros atuais dos afazeres humanos têm a sua disposição riquezas incalculáveis, a uma escala jamais concebida pelos Faraós e pelos Césares e nem mesmo pelas potências imperialistas do século dezenove?

(EBB, 2002b, pp. 6-7)

É tentador argumentar, certamente, que a necessidade de incorporar espiritualidade no escopo da nossa ação, não importa quão incontestável seja, não justifica mergulhar-se em assuntos religiosos. A perspectiva de envolver-se no que é reconhecido amplamente como um antigo debate entre ciência e religião, poderá ser inclusive menos atraente, especialmente para aqueles que vêem a urgência de se aplicar soluções imediatas a problemas práticos. Mas, uma vez consciente da necessidade da espiritualidade, como poderia alguém recusar-se a investigar a religião não na forma de disputa sectária, mas como investigação de um sistema de conhecimentos e práticas que teve um papel bem definido no avanço de civilização? A questão não é uma noção vaga de espiritualidade - uma espiritualidade que estudos recentes inclusive estimulam que sejam tornados disponíveis como um produto necessário para maximizar a satisfação, uma gama de atividades para acalmar os nervos em uma vida materialista por essência. As questões que se apresentam no campo do desenvolvimento estão voltadas à prosperidade da humanidade, relacionadas com a natureza do ser humano, com os propósitos essenciais da vida individual e coletiva e também com a direção que a sociedade deve tomar. Respostas a estas questões têm que esclarecer a próxima fase de evolução nas relações que são essenciais à existência e ao progresso: entre as espécies e a natureza, na família, na comunidade e entre o indivíduo e as instituições da sociedade. A humanidade deve ocupar-se cada vez mais com a busca de um significado e tal indagação é inerentemente religiosa em natureza.

Ao rejeitar o enfoque materialista ao desenvolvimento, não reivindicamos que os assuntos serão solucionados, de alguma forma, através das soluções provenientes da religião. A tarefa diante de nós não é destronar a ciência, como tantos se mostram empenhados em fazer. Em razão de suas realizações extraordinárias, a pessoa poderia afirmar que a ciência merece uma posição mais elevada do que aquela que a humanidade tem até agora lhe concedido. Levantar a questão da religião não significa o retorno à superstição. Nem é a introdução de uma pseudo-ciência, em suas miríades de formas, a porta de entrada para a percepção espiritual. As soluções para os problemas urgentes que a humanidade enfrentam devem ser buscadas por uma aplicação rigorosa da ciência, no contexto de seu significado mais amplo. Mas para atender a esta expectativa, a ciência precisa iniciar um sério diálogo com a religião. Ao final do século XX, ambos os sistemas, juntamente com o restante da ordem social, estavam em crise profunda. Mas as crises, em sistemas de conhecimento são ocorrências bem-vindas, porque invariavelmente são precursores de progresso. Espero demonstrar neste trabalho que a teoria e a prática do desenvolvimento, em sua maior parte, foram influenciadas por postulados da ciência e da religião, que estão destinados a desaparecer quando, ambos, passarem por uma transformação radical nas próximas décadas. Argumentarei que o campo do desenvolvimento, admitindo uma exploração rigorosa dos assuntos relacionado à fé e à razão e reconhecendo a relevância de cada uma delas em suas políticas e programas de ação, alcançará o avanço esperado que todos aqueles que estão envolvidos nesse trabalho acreditam ser possível atingir, abrindo-se definitiva-mente as portas para a descoberta de estratégias eficazes.

A Verdade Científica

Vivemos em um tempo em que a ciência é cegamente venerada ou violentamente atacada por aqueles que não possuem uma compreensão adequada sobre ela. Muitos vêem a ciência principalmente como a responsável por criações que parecem mágicas. Infelizmente, isso é freqüentemente comprovado quando pessoas, que, sem refletir um pouco sobre a natureza tanto da ciência como da tecnologia, se engajam em atividades científicas de escopo limitado. Uma variedade de cursos sobre o método científico oferecidos a estudantes em várias carreiras infelizmente perpetua mal entendidos de há muito enraizados.

A ciência começa com a observação. Assim começa a história geralmente contada. O cientista utiliza seus sentidos para observar coisas e fenômenos. A verdadeira pesquisa científica requer que tal observação seja levada a cabo com uma mente sem preconceitos e com extrema objetividade. Os resultados imediatos da aplicação disciplinada e impoluta desses sentidos são numerosos "relatos de observação", das quais as leis e as teorias da ciência finalmente surgirão.

Os relatos de observação são singulares no sentido de que se referem a um evento particular em um momento particular. Mas a mente treinada é capaz de chegar a constatações mais universais pela aplicação cuidadosa do princípio da indução. Para que generalizações sejam verdadeiras, é necessário repetir as observações em uma variedade enorme de condições, tantas quantas forem possíveis realizar. O número de relatos de observação que formam a base da generalização deve ser suficientemente grande para justificar a aplicação do raciocínio indutivo. Quando as constatações universais são descobertas, os princípios da dedução são aplicados para explicar outros fatos observados e resultar em conseqüências que possam ser conferidas, então, pela experimentação. O poder da ciência para predizer é uma de suas características essenciais, a qual dá validez às suas reivindicações de grandeza.

Ao apresentar esta visão simplista de ciência, não desejo sugerir que até mesmo dentro do que pode ser chamado de campo positivista, os teóricos do desenvolvimento não estejam bem familiarizados com perspectivas mais sofisticadas. Mais recentemente, debates da ciência têm freqüentemente tratado das complexidades da relação entre teoria e observação e a forte influência que a primeira exerce sobre a outra. Invocando a noção de probabilidade e separando a forma como de fato uma generalização decorre de sua justificação subseqüente, certas escolas de pensamento se afastaram da explicação simplista do "método científico" em termos de observação e indução, seguidas por dedução e predição. Elaborados e engenhosos esforços para explicar o raciocínio científico em termos de falsificação - o conhecimento científico como um conjunto de hipóteses falseáveis e teorias em perigo constante de serem eliminadas por rivais mais adequados - levou a valiosos discernimentos nos métodos de ciência. A introdução, no discurso de ciência, dos conceitos de um paradigma científico, por um lado, e de programas de pesquisa competitivos, de outro, teve um impacto notável na maioria dos círculos intelectuais. Ainda assim, fortes convicções sobre a natureza da verdade científica, surgidas com base em uma concepção essencialmente ingênua de ciência, não só sobrevivem mas amoldam campos inteiros do esforço humano. A conseqüência deplorável é que um antigo debate histórico entre ciência e religião tem se perpetuado e um diálogo significativo entre os dois sistemas continua bloqueado.

"O conhecimento científico é conhecimento comprovado" é um conceito que está ao coração de tais convicções. "A ciência, em sua forma incorrupta, é objetiva e livre de opiniões pessoais." "O conhecimento científico é conhecimento confiável porque é o resultado da aplicação rigorosa de um método cuja validez é insofismável." Porém, os termos objetivo, rigoroso e confiável são palavras que trazem um julgamento de valor. A linguagem prega peças no processo de pensamento. A ciência logo torna-se a única fonte de verdade indisputável e qualquer outra fonte de conhecimento parecerá menos valiosa, menos confiável e, no final das contas, sem valor e desacreditada. Sob tais condições, como poderá a religião ser ouvida de forma a que a questão de uma interação harmoniosa entre as duas - ciência e religião - possa ser explorada? A crise contemporânea exige uma mudança significativa na percepção da humanidade quanto ao inteiro papel da ciência, porque a percepção prevalecente surgiu das primeiras tentativas para entender uma força nova e poderosa e que se tornou popular muito depressa, antes que fosse examinada criteriosamente.

Qualquer que seja a natureza precisa de seus processos e métodos, a ciência é claramente um sistema dinâmico de conhecimento e prática que desafia tentativas que pretendam reduzi-la a qualquer fórmula simplista. O trabalho vital e fascinante de filósofos e historiadores da ciência leva a teorias que explicam alguns de seus resultados e alguns de seus processos. Como os outros modelos que a ciência cria de várias partes da realidade física, intelectual ou social, cada uma das explicações tem uma gama finita de validez. Juntos, trazem à luz muitos aspectos mais salientes, mas nenhum deles descreve a ciência em sua totalidade.

A ciência contém claramente elementos que são em essência questões de fé - a começar pela fé na existência de ordem no universo e fé na habilidade da mente humana em dar sentido àquela ordem e expressar tal capacidade em uma linguagem precisa. Nas palavras de Einstein (1954, pág., 52), "aqueles indivíduos aos quais devemos as maiores realizações da ciência estavam todos imbuídos com a convicção verdadeiramente religiosa de que este nosso universo é algo perfeito e suscetível ao esforço racional do conhecimento".

As teorias científicas são todas baseadas em suposições, algumas das quais não podem ser provadas logicamente. Elas representam proposições simplesmente aceitáveis à razão humana, derivando seu valor do sucesso dos modelos e teorias construídas sobre elas. Durante séculos, a ciência reconhecida julgava que as leis que governam a movimentação de objetos na Terra eram diferentes das que determinavam a movimentação dos corpos celestes. As teorias baseadas nesta suposição provaram ser inadequadas. Hoje, uma premissa básica da ciência é que as leis da Física são as mesmas nos céus como na Terra; a força de gravidade, por exemplo, determina muito dos comportamentos que ocorrem no espaço, no tempo e na matéria, em todos os lugares do universo. Por enquanto, esta suposição levou a modelos que parecem explicar tudo o que observamos, justificando, assim, sua aceitação integral.

A prática da ciência também se baseia especificamente em qualidades espirituais do ser humano como o amor à beleza e compromisso com a veracidade. É altamente dependente do uso das faculdades de intuição, criatividade e imaginação. Estes recursos da alma racional não operam a esmo na atividade científica. Eles são produtivos, quando treinados e disciplinados e quando o resultado de suas operações passa pelos testes de uma racionalidade reconhecida pela comunidade científica.

A tarefa principal da ciência é criar modelos da realidade. Seus modelos - chamados de teorias quando são suficientemente complexos - raramente tomam a forma de representações físicas simples. Ao contrário, são estruturas em uma linguagem que tanto usa palavras como expressões matemáticas. A linguagem da ciência tem características típicas para alcançar seus objetivos. Entre outras coisas, busca ser racional de um modo bem definido, sem ambigüidade, objetiva. Não é fácil determinar se estas qualidades também distinguem todos os processos pelos quais a ciência é gerada: o próprio pensamento científico é obviamente muito complexo para ser inteiramente objetivo, perfeitamente lógico ou totalmente destituído de ambigüidade. Estando presa a uma linguagem rígida, através da qual deve ser expressada e comunicada, a ciência assume muitos atributos pelos quais recebe elogios bem merecidos.

Embora as falhas intrínsecas ao positivismo tivessem sido claramente expostas nos últimos anos, o papel indispensável da observação disciplinada, embora condicionada pela teoria, permanece central à prática científica. Generalização, formulação de hipóteses, dedução, avaliação de predições e falsificação, são componentes vitais de qualquer método científico. Mas deveria ser lembrado que eles não são realizados mecanicamente através de entidades programadas, mas por membros de comunidades de cientistas, os quais estão sujeitos à influência de forças sociais. Tais comunidades exibem padrões de conduta característicos de grupos compostos de seres humanos. Especificamente, trabalham dentro de determinadas cosmovisões e embasamento teórico que determinam os tipos de perguntas que se dispõem a fazer, e os tipos de respostas que estão dispostos a explorar. O conceito de um paradigma, embora não universalmente válido, é uma ferramenta altamente útil de pensar sobre a ciência. O conhecimento científico é acumulativo somente até certo ponto; alguns avanços da ciência acontecem através de evidentes mudanças de paradigmas, cuja dinâmica evoca imagens de uma revolução.

A prática científica depende de uma variedade de programas de pesquisa concomitantes. Cada programa é essencial à proposta da teoria para cuja construção uma comunidade de cientistas decide se dedicar. Uma das metas de tal pesquisa é estender a gama de fenômenos que uma teoria pode explicar com sucesso. Mas nenhuma comunidade científica busca responder a todas as perguntas no mundo. Um elemento indispensável de qualquer modelo científico é um conjunto de declarações que definem sua gama de validez. Teorias mais avançadas necessariamente não provam serem as anteriores erradas, mas definem os limites dentro dos quais elas operam e provêm uma compreensão de porque trabalham dentro desses limites. Assim, relatividade e mecânica quântica, por exemplo, não "desaprovam " a física newtoniana; ao contrário, definem a gama de tamanho e velocidade sobre os quais as predições newtonianas são totalmente confiáveis.

Ao fazer estas observações, não pretendo ser eclético, de alguma forma amalgamando o trabalho de Kuhn e Popper, Lakatos e Feyerabend. Minha intenção é argumentar que sem entrar em debate sobre assuntos já profundamente explorados pelos filósofos e historiadores da ciência durante as últimas décadas, podemos decidir prontamente que a relação entre ciência e verdade não é aquela relação simplista propagada por descrições ingênuas da ciência. Certamente, a relação entre ciência e verdade é de enorme importância. Declarações científicas são afirmativas sobre a realidade objetiva; têm uma existência própria, não sendo somente produtos da mente de alguns cientistas. Não satisfeita em só oferecer explicação, a ciência exige aplicação e gera tecnologia - e políticas no caso de algumas ciências sociais - que por sua vez atuam na realidade objetiva. Neste sentido, a tecnologia parece ser intrínseca à ciência; nasce dela e juntamente com outros fatores define o campo de suas operações. Embora direcionada pelos poderes da alma racional, a ciência é também uma exigência da existência social, que tem como um imperativo o avanço tecnológico. O conhecimento científico é, desta forma, uma expressão da verdade que esclarece realidades que estão interligadas: a realidade física do universo, a realidade social e a realidade interna do ser humano.

A Verdade Religiosa

Com esta perspectiva sobre a ciência, voltemo-nos agora para a religião. Em assim fazendo, confrontamo-nos de início com a questão se o conhecimento científico, com o grau de complexidade acima esclarecido, engloba toda a realidade que a mente humana pode conhecer. Será que os elementos de fé subjacentes na vida humana - não adquiridos através de cega imitação, mas por um processo de observação, estudo e reflexão - incluem a convicção em uma realidade espiritual além do mundo acessível aos nossos sentidos? Será que não podemos dar crédito à suposição que a inteligência não é um mero produto de operações mais elevadas de organização, mas considerá-la, ao invés disso, como uma qualidade de ser que transcende a existência física? Será que tal qualidade determina a estrutura e operação do mundo, inclusive o aparecimento evolutivo de uma mente humana capaz de observar e pensar no universo? Será que, realmente, o nosso senso inextinguível de identidade individual - o qual, enfim, dá definição à afirmativa de "eu sei" - aceita a suposição que se extinguirá com a morte física, sem nenhum significado razoável, levando-nos a explorar as implicações da intemporalidade e imortalidade?

A afirmativa habitual de que certas convicções e premissas não são necessárias e, por isso, de acordo com algum tipo de princípio minimalista, não devem ser consideradas, levanta pelo menos duas questões. Primeiro, pressupõe que a negação de uma realidade em expansão seja algo objetivo e não, por si mesma, uma suposição que tem conseqüências profundas para a direção do esforço intelectual. Desta forma, ela distorce o fato que a escolha, em cada caso, seja entre dois elementos de fé, nenhum deles provável e não entre "nenhuma suposição" e uma "suposição estranha". Segundo, supõe que a supremacia da ciência como meio singularmente válido para a investigação da realidade e sua reivindicação de autonomia como uma prova irrefutável desta validez. Certamente, suposições relacionadas à dimensão espiritual da existência são desnecessárias em muitos estudos científicos, mas por que razão estendermos isso para todo tipo de investigação, negando a necessidade de qualquer outro sistema de investigação com o qual a ciência tem que interagir se não quiser parecer dogmática e vulnerável?

Historicamente, a religião foi o sistema que se preocupou principalmente com a realidade espiritual e sua relação com o indivíduo e com a vida coletiva. Como a ciência, a religião é um sistema altamente complexo de conhecimento e de práticas, com um padrão particular de evolução em sua natureza e uma história profundamente entrelaçada com o desdobramento da civilização. Como um conjunto de práticas religiosas, teve, inevitavelmente, sua parte de insensatez, corrupção e abuso de confiança. Mas também foi causa da voz infalível chamado para a transcendência, a fonte principal de toda aspiração digna e a luz que tem iluminado a compreensão humana e lhe permitido saber distinguir entre o vil e o nobre.

Para examinarmos a religião com mente não preconceituosa e descobrirmos como suas interações com a ciência deveriam acontecer, precisamos pôr de lado apreensões que, por quaisquer razões julgadas justificáveis, ganharam aceitação geral. A mais notável delas é expressada na opinião de que não existe tal coisa conhecida como "religião", mas meramente numerosas religiões em discordância fundamental uma com a outra. Tal conclusão representa uma visão altamente restritiva de religião. Não há justificativa para tal disputa religiosa, juntamente com conflitos tribais, nacionais e raciais, que foi uma característica marcante do passado da humanidade e que continuam nos assediando durante o que pode ser visto como uma era de transição. Mas se concordamos que o caminho à nossa frente é de progresso material e espiritual, precisamos olhar mais profundamente para a herança espiritual da raça humana e não partir para um julgamento precipitado.

Da mesma forma como existem e se desenvolvem a ciência e suas múltiplas estruturas, assim também acontece com a religião e suas estruturas. Os ensinamentos e as convicções religiosas se apresentam em miríades de formas e estas expressões mostram diferenças significativas entre si. Mas esta circunstância não nega a existência de um sistema de conhecimento dinâmico, com seu próprio campo de investigação, sua própria linguagem e seus próprios métodos evolutivos. Uma vez livres da preocupação com as diferenças, ficaremos surpresos com a unidade dos temas tratados pelas principais religiões do mundo e a continuidade das soluções que propõem aos problemas mais agudos da vida. Neste contexto, a variedade de expressão se torna uma fonte de riqueza de discernimentos, em vez de ser causa de disputas. Mas tal perspectiva só será possível se cada uma das grandes religiões for examinada principalmente pelos olhos de alguém que focaliza sua atenção nos ensinamentos morais e espirituais entesourados em suas escrituras autênticas. Separar tais escrituras dos dogmas acrescentados por aqueles que, na direção de tais religiões, tiveram uma sede insaciável de poder mundano é, sem dúvida alguma, uma tarefa difícil em alguns casos, mas que não é de todo impossível realizar.

No caso da ciência, o que é compreendido e explicável é uma realidade basicamente observável e objetiva - física, psicológica ou social. Mas o que é a realidade objetiva focalizada pela religião com a finalidade de servir como um sistema de conhecimento e práticas dentro de uma comunidade? Para responder a esta pergunta, é essencial refletir no conjunto de ensinamentos que se encontra no âmago de cada uma das principais religiões do mundo e que proveram o impulso inicial à sua existência. Sem entrar no familiar debate teológico sobre a transcendência versus imanência, a pessoa pode observar que simplesmente o encontro entre a consciência humana e o Divino tem resultado, invariavelmente, em um texto religioso, oral ou escrito, em cujo âmago encontram-se os pronunciamentos do profeta-fundador e de algumas figuras históricas diretamente ligadas a essa pessoa especial. No texto, a vida é descrita tanto em sua dimensão material como na dimensão espiritual. "Revela" aspectos da realidade espiritual que, uma vez definida, pode se tornar assunto de investigação, nem só pela alma individual, mas também por populações inteiras. Sem o texto revelado, a espiritualidade seria uma expressão de experiência pessoal, nunca algo validado por interações intelectuais que criam o conhecimento social. Pois, por verdade religiosa não se quer significar meras afirmações sobre o lado esotérico da vida, mas declarações que levem à experimentação, aplicação e à criação de sistemas e processos cujos resultados possam ser validados pela observação prática e pelo uso da razão. A Humanidade, por sua própria natureza, é, desta forma, agraciada com dois Livros, o da Criação e o da Revelação, cujo estudo, como "ciência" e como "religião", dá impulso ao progresso da civilização.

Harmonia Entre Ciência e Religião

Cabe aqui uma nota de precaução. Esforços para descrever a religião como um sistema de conhecimento correm sempre o perigo de ir muito longe, antecipando argumentos que tornariam a religião uma mera extensão da ciência, uma ramo de aprendizagem científica dedicado ao estudo de fenômenos invisíveis. Que um sistema de conhecimento seja capaz de abranger todos os aspectos da vida individual e social não implica que tenha de ser definido como ciência. Evidentemente, como os dois principais sistemas de conhecimento e práticas vivenciais, religião e ciência terão muitas características em comum. Artigos de fé, suposições, uso das várias faculdades da alma, como razão, intuição, imaginação e a habilidade para criar modelos de realidade - inclusive o metafísico e a vida interna de indivíduos e comunidades - em nível mundial e até mesmo algo afim com um conjunto de coexistentes programas de pesquisas, são todos elementos prontamente observáveis na operação e evolução da religião. Realmente, pode se argumentar que em muitas de suas aplicações encontram-se métodos da alçada da religião que podem ser e devem ser científicos. No entanto, ciência e religião continuam sendo sistemas de conhecimento distintos, nunca um representando um subsistema do outro.

De importância particular é a distinção que tem de ser feita entre a linguagem da ciência e a linguagem da religião. Em muitos aspectos, a linguagem na qual a verdade religiosa é expressada, como ocorre também com a linguagem científica, busca ser bem clara e objetiva. Mas seu desafio primário é transcender as limitações da ciência e utilizar imagens poéticas, histórias, parábolas, mandamentos, advertências e exortações, para enfatizar o significado e falar diretamente ao coração humano de uma forma que a ciência, por sua natureza pragmática, não faz.

Enfatizar a distinção entre o conhecimento religioso e o científico não é negar o inter-relacionamento existente entre eles. A convicção difundida da existência de um conflito intrínseco entre os dois surgiu em uma época de crise na história do Cristianismo, quando as mesmas concepções da ciência e da religião eram inadequadas para acompanhar o rápido desenvolvimento intelectual que ocorria. Hoje, vários séculos depois, a pergunta diante de nós é se o tipo de entendimento alcançado mais recentemente torna possível uma nova estrutura para interações entre os dois sistemas. Não é igualmente provável que a harmonia e não o conflito, deveria caracterizar essas interações? Na verdade, não seria de importância vital a existência de tal harmonia para assegurar que nenhum dos sistemas se degenere em vãs imaginações e que ambos permaneçam autênticos à sua própria natureza?

Assuntos relacionados à harmonia entre ciência e religião podem ser focalizados de vários modos. Pode ser argumentado que os dois sistemas são tão distintos que de forma alguma pode haver conflitos significativos entre eles. A ciência estuda o universo material. O conhecimento que gera torna-se a base para o progresso tecnológico, mas a tecnologia pode ser utilizada para o bem-estar da humanidade ou em seu detrimento, para construir a civilização ou para sua destruição. A ciência em si mesma não tem condição de determinar os usos que seus produtos deveriam ter. A religião, ao contrário, preocupa-se precisamente com a dimensão espiritual da existência humana. Sua tarefa é lançar luz sobre a vida interna do indivíduo, tocar as raízes da motivação e gerar um código de ética e moralidade para guiar a conduta humana de forma adequada. Pode determinar os fundamentos éticos pelos quais a tecnologia pode ser corretamente desenvolvida e devidamente empregada. O processo civilizatório depende de ambos os sistemas de conhecimento; contanto que cada um deles se mantenha dentro da esfera de seu próprio campo de ação, com isto não haverá razão alguma para entrarem em conflito.

Esta visão da harmonia entre ciência e religião é válida, mas somente ao nível de aplicação. No final das contas, neste enfoque, ciência e religião estão separadas e livres para buscar suas próprias formas de ação e o que assume importância é a interação entre tecnologia e moralidade, as progênies dos dois. Mas tal análise da relação entre ciência e religião chega logo aos seus limites, pois os dois sistemas de conhecimento têm muito em comum e ultrapassam a gama de fenômenos dentro de seus próprios campos de estudo. Popularmente, no campo religioso são incluídas certas suposições e elementos de fé, qualidades e atitudes, métodos e processos mentais e sociais; outros aspectos das áreas da religião e da ciência, embora não contraditórios, são mais necessários em apenas um dos dois. Superar certos aspectos comuns é uma realidade intrínseca à operação dos dois sistemas e surge do fato de que uma dicotomia profunda entre matéria e espírito seria, em si mesma, impossível. Embora seja necessário, para muitas finalidades práticas, separar os dois sistemas e permitir que corram paralelamente, tentar negar seu inter-relacionamento na mente do ser humano e na sociedade pode tirar deles os poderes extraordinários que ambos possuem.

Pensando na relação entre religião e ciência, sempre achei de ajuda utilizar alguns dos discernimentos sobre o funcionamento do universo oferecido pelo princípio da complementaridade. Em sua formulação rígida, afirma o princípio que a onda-partícula dual, claramente observável ao nível dos componentes menores da matéria é inerente ao processo da observação científica e sua avaliação. Por exemplo, o elétron é algumas vezes uma onda e outras vezes uma partícula; quer dizer, nem ambos, nem um só. A complementaridade nos leva além da pergunta de " um...ou" e nos pede que consideremos diretamente o fato de que, sob certas "formas" experimentais, o elétron sempre se comportará como uma partícula e, sob outras, sempre agirá como uma onda. Estes dois tipos de organização esvaziam todas as possibilidades de medição. Impossível - quer dizer - estabelecer uma experiência na qual poder-se-ia perguntar - o que realmente é o elétron, uma onda ou uma partícula?

Não é minha intenção afirmar que a complementaridade da mecânica quântica seja de alguma maneira diretamente aplicável à dualidade entre ciência e religião. Na realidade, o que é conhecido como a interpretação de Copenhague, com que a anterior formulação está associada, voltou à baila mais uma vez nos anos recentes. Mas qualquer que seja a solução das dificuldades enfrentadas pelo modelo, o fato permanece que, fundamentalmente, ele não permite medidas simultâneas de certas quantidades e se submete a descrições complementares. Em razão das complexidades do processo de medida em ciência, tal declaração não pode somente valer para o universo físico. Modelos teóricos elaborados pela mente humana são subjacentes à preparação do instrumental de organização experimental, modelos que, como já comprovado, são estruturas de linguagem. Então, a complementaridade, em quaisquer de suas possíveis formulações, está nos revelando algo fundamental sobre duas realidades coexistentes e suas interações - a consciência humana e a realidade objetiva. Particularmente, está oferecendo discernimentos de como a mente humana pode abarcar aspectos de um universo tão complexo para admitir uma única descrição.

Aceitando que este é o caso, poderíamos deixar de nos questionar sobre os níveis da realidade além do mundo da matéria? Seria irracional assumir que quando o objeto de análise é a junção tanto da realidade espiritual como da realidade física - um assunto muito mais complexo que o universo material - uma única forma de descrição seria também inadequada? Não é possível que para entender e explicar esta realidade, a humanidade precisa pelo menos de duas linguagens, a da ciência e a da religião, que juntas possibilitariam penetrarmos em seus mistérios?

Comentários Adicionais

Os comentários a seguir ampliam e focalizam alguns detalhes dos argumentos apresentados nas páginas precedentes.

O Propósito de Religião

A passagem sobre fé e razão, citada na abertura desta seção, vem da publicação A Promessa de Paz Mundial (EBB, 2002b), uma declaração escrita pelo corpo administrativo internacional da Fé Bahá'í. O documento apresenta uma análise das forças sociais e espirituais que contribuem ao estabelecimento da paz entre os povos da Terra, uma condição que implica muito mais que a mera ausência de conflito armado. Afirma que a paz mundial é inevitável, mas que seu advento requer a vontade coletiva dos líderes do mundo e a aplicação de uma gama de princípios religiosos específicos.

Os argumentos definidos em A Promessa de Paz Mundial refletem a ênfase que os ensinamentos Bahá'ís colocam sobre a religião como um instrumento vital na construção de uma civilização. Porém, embora o papel da religião como uma força social positiva seja exaltada, também é reconhecido que ela pode ser distorcida em seus propósitos pela manipulação de líderes egoístas. Realmente, mal-entendimentos e confusões de toda natureza, perpetradas em nome da religião, estão entre as causas das condições deploráveis em que se encontra o mundo de hoje. Atribuir estas condições à elevação do secularismo seria injusto. Em muitos aspectos, o secularismo é claramente um desenvolvimento bem-vindo na história de humanidade, uma reação inevitável e necessária à religião, quando esta se prende ao fanatismo e à superstição. Referindo-se à religião como um meio para o progresso humano, Bahá'u'lláh declarou o seguinte:

O objetivo da religião, assim como é revelado do céu da santa Vontade de Deus, é estabelecer unidade e concórdia entre os povos do mundo; não a façais a causa de dissensão e contendas. A religião de Deus e Sua lei divina são os mais poderosos instrumentos e os mais seguros de todos os meios para o alvorecer da luz da unidade entre os homens. O progresso do mundo, o desenvolvimento das nações, a tranqüilidade dos povos e a paz de todos os que habitam na terra, figuram entre os princípios e preceitos de Deus.

(EBB, 1983, p 143)

Para os Bahá'ís, como para milhões de pessoas religiosas de todas as convicções, o fato da religião, apesar de seu impulso de origem divina, estar sujeita à mesma distorção que afeta todas as instituições humanas, não diminui a importância de seu papel no progresso da civilização. O que deve ser entendido e aceito é que a religião necessita da ciência para evitar cair nas armadilhas do fanatismo.

A Crise de Ciência

A maioria dos leitores destas páginas aceitará prontamente que, como é o caso com muitos outros aspectos da civilização, a religião está em crise. Mas há muitos que hesitariam atribuir crise semelhante à ciência como um sistema. Os problemas éticos enfrentados pela humanidade, como resultado do progresso científico e tecnológico acelerado são, evidentemente, geralmente reconhecidos. É possível, porém, considerar-se estes assuntos como desafios que emergem naturalmente no curso do progresso, os quais serão tratados pela ciência no tempo devido. A crise à qual me refiro é de ordem sistêmica, com muito mais dimensões que aquelas puramente éticas; surge de insuficiências no próprio processo pelo qual o conhecimento científico é gerado e aplicado. No célebre livro, de alguns anos atrás, O Conhecimento Científico e Seus Problemas Sociais, Jerome R. Ravetz expôs as conseqüências alarmantes que são o resultado da falta de um "entendimento renovado" da natureza da investigação científica:

A atividade da ciência natural moderna transformou nosso conhecimento e o controle do mundo à nossa volta; mas nesse processo acabou se transformando também; e suscitou problemas que a ciência natural sozinha não pode resolver. A sociedade moderna depende cada vez mais de produção industrial baseada na aplicação de resultados científicos; mas a produção desses resultados gerou uma grande e dispendiosa indústria; e os problemas com a administração dessa indústria e o controle dos efeitos de seus produtos, é uma tarefa urgente e difícil. Tudo isso aconteceu tão depressa dentro da geração passada que essa situação, nova, e suas implicações, são ainda imperfeitamente entendidas. Abre novas possibilidades para a ciência e para a vida humana, mas também apresenta novos e até perigosos problemas. Para a própria ciência, as analogias entre a produção industrial de bens materiais e aquela de resultados científicos têm ambas utilidades próprias, mas também seus riscos. Como produto de uma atividade socialmente organizada, o conhecimento científico é muito diferente de um produto como o sabonete, por exemplo; e aqueles que planejam no campo científico negligenciarão aquela diferença por seu próprio risco. Também, há que se considerar que a compreensão e controle dos efeitos de nossa ciência, baseada na tecnologia, apresentam problemas para os quais nem a ciência acadêmica do passado, nem a ciência industrializada do presente, possuem técnicas ou enfoques que lhes dêem solução. A ilusão que há uma ciência natural, que permanece pura e separada de qualquer envolvimento com a sociedade, está desaparecendo rapidamente; mas tende a ser substituída pela redução vulgar da ciência a um ramo de comércio ou de indústria militar. A não ser que a própria ciência, humilhada e corrompida, tivesse suas realizações empregadas, com uma rapidez impetuosa, para provocar uma catástrofe social ecológica - é preciso haver uma compreensão renovada quanto à forma muito especial do trabalho, tão delicado e tão poderoso, prestado pela investigação científica.

(Ravetz, 1973, p. 9)
Fatos Científicos

Reflexões sobre a natureza da verdade científica no contexto de um diálogo emergente entre religião e ciência, podem beneficiar-se de uma leitura cuidadosa da obra de Ludwik Fleck (1979 [1935]) uma monografia intitulada Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico. Neste inspirado trabalho, escrito originalmente em alemão, Fleck decidiu examinar em detalhes o aparecimento e o estabelecimento final do fato que uma experiência de serodiagnóstico desenvolvida nos anos vinte, conhecida como a reação de Wassermann, ter indicado, dentro de limites estatísticos aceitáveis, a presença da sífilis em um paciente. Ele descreveu o conjunto complexo de fatores que tiveram que convergir, durante um longo período de tempo, antes que a sífilis chegasse a ser considerada como uma "doença" com características definidas - começando com uma massa indiferenciada e confusa de informações sobre as várias doenças crônicas que foram caracterizadas através de sintomas de pele e freqüentemente foram localizadas nos órgãos genitais, doenças que, no século XV, eram todas misturadas. Fleck mostrou como várias convicções e padrões de pensamento tiveram papéis cruciais no caminho tortuoso que conduziu ao reconhecimento aberto desta forma de doença. Por exemplo, acreditava-se, na ocasião, que a "conjunção de Saturno e Júpiter sob o signo de Escorpião e a Casa de Marte em 25 de novembro de 1484", foi a causa do flagelo carnal, pois o "benigno Júpiter havia sido derrotado pelos planetas Saturno e Marte" e o signo de Escorpião "comandava os órgão genitais". (Fleck 1979 [1935], p. 2) "A crença em flagelo carnal foi a pedra de toque da sifilologia, dando-se a ela um caráter bastante destacado." (p. 3)

Depois, foi-nos dito que: "como resultado de décadas de prática, certamente por várias gerações, foi possível distinguir e isolar do campo crônico das infecções da pele um grupo particular que, quando tratado com ungüento de mercúrio, reagia favoravelmente". (Fleck, 1979 [1935], pp. 3-4) "Assim, dois pontos de vista se desenvolveram lado a lado, freqüentemente em conflito entre si: (1) uma doença ética-mística de "flagelo carnal", e (2) uma doença terapêutica-empírica".(p.5) Este enfoque dual foi completado, então, por uma convicção que a sífilis estava associada com uma mudança no sangue, que abandonara seu "estado natural" tornando-se desde logo uma doença "deteriorada por uma infecção que ataca sem inflamações e por isso era relativamente difícil de diagnosticar".(p.12) Mais tarde, com o crescimento da idéia moderna dos microorganismos patogênicos, o agente que causa a sífilis foi identificado como Spirochaeta pallida. A descoberta da reação de Wassermann levou as pesquisas além e constatou a associação da doença com o sangue e "ajudando a classificar a tabes dorsalis e a paralisia progressiva definitivamente com a sífilis. Considerando que esta spirochaera foi encontrada logo em seguida nos tubos linfáticos logo após a infecção, até mesmo o primeiro estágio da sífilis não foi mais considerado como uma doença localizada".(p. 17)

Na análise do conceito da evolução da sífilis como uma doença autônoma claramente definida e do desenvolvimento da reação de Wassermann e o aparecimento de serologia como um campo científico, (Fleck 1979 [1935]) introduziu várias idéias como sistemas de opinião, estilos de pensamento e pensamentos coletivos. O uso de conceitos desta natureza não está de forma alguma livre de problemas. Porém, quaisquer que sejam as discordâncias com relação a alguns aspectos da análise, a pessoa não pode mais ser iludida por definições simplistas de verdades científicas após refletir nos argumentos brilhantes de Fleck. A pessoa pode tentar modificar, mas não pode ignorar sua declaração de que:

A cognição é a atividade humana mais socialmente condicionada e o conhecimento é a criação social suprema. A própria estrutura da linguagem cria uma característica filosófica marcante daquela comunidade e até mesmo uma única palavra pode representar uma teoria complexa. A quem pertencem estas filosofias e teorias?

Os pensamentos passam de um indivíduo para outro, normalmente sofrendo sempre alguma alteração, pois cada indivíduo pode adicionar aos conceitos associações um pouco diferentes. No sentido exato, o receptor nunca entende exatamente o pensamento do modo que o transmissor pretendeu que fosse entendido. Depois de uma série de tais encontros, praticamente nada será igual ao conteúdo original. De quem é o pensamento que continua a circular? É um que obviamente não pertence a qualquer único indivíduo, mas para uma coletividade. Se um indivíduo interpreta algo como verdade ou erro, entende-o corretamente ou não, uma série de meandros de descobertas ocorridas na comunidade, são continuamente polidas, transformadas, reforçadas ou atenuadas, embora influenciando outras descobertas, formando conceitos, opiniões e hábitos de pensamento. Depois de passar por várias rodadas dentro da comunidade, uma descoberta, muitas vezes, retorna consideravelmente modificada em seu conteúdo original. O cientista, ou não reconhece a nova versão como sua própria, ou acredita que sim, e isso acontece com bastante freqüência com relação às versões finais das pesquisas científicas. A história da reação de Wassermann nos propicia a oportunidade para descrever tais meandros, no caso particular de uma descoberta completamente "empírica".

Este caráter social inerente à verdadeira natureza da atividade científica não está livre de conseqüências expressivas. Expressões que antigamente eram simples palavras, tornam-se slogans; frases, que foram simples declarações, tornam-se apelos para grandes conflitos. Isto altera completamente seu valor sócio-cogitativo. Não mais influenciam a mente pelo significado lógico que assumem - na verdade, agem freqüentemente contra ela - adquirem um poder mágico que exerce uma influência mental simplesmente ao serem aplicadas. Como exemplo, alguém pode considerar o efeito de expressões como "materialismo" ou "ateísmo", os quais, em alguns países, de imediato desacreditam seus proponentes, mas, em outros, imediatamente funcionam como senhas essenciais para aceitação geral. Este poder mágico dos slogans, como "vitalismo" na biologia, "especificidade" em imunologia, e "transformação bacteriana", em bacteriologia, claramente dá enorme profundidade à pesquisa especializada. Sempre que expressões como essas são encontradas em um texto científico, não são examinadas logicamente e imediatamente criam inimigos ou encontram amigos.

(Fleck 1979 [1935]), pp. 42-3)
Beleza

Examinar o papel exercido pela beleza na pesquisa de um pesquisador científico, pode abrir discernimentos inestimáveis à natureza da ciência. Infelizmente, não é possível em uma breve exposição como esta e sem o uso da matemática, explorar com alguma precisão o conceito de beleza, por exemplo, no estudo da Física. Em A Mente de Deus: A Base Científica para um Mundo Racional, Paul Davies (1993) empregou seu admirável talento para tornar idéias científicas acessíveis aos não-especialistas, expressando o seguinte:

De um modo geral, os cientistas acreditam que a beleza é uma guia segura para a verdade e muitos progressos na física teórica foram feitos por teóricos que exigiam a distinção matemática de uma nova teoria. Às vezes, quando testes de laboratório são difíceis, estes critérios estéticos são considerados mais importantes que a própria experiência. Einstein, ao falar de um teste experimental de sua teoria geral da relatividade, foi perguntado o que faria se a experiência não estive de acordo com a teoria. Não se perturbou pelo que sua resposta iria causar e disse: "Tanto pior para a experiência, a teoria está correta!" Paul Dirac, o teórico físico cujas deliberações estéticas o levaram a construir uma equação matematicamente mais refinada para o elétron, que em conseqüência levou à predição que confirmou a existência da antimatéria, revelou estes sentimentos quando reconheceu que: "é mais importante ter beleza em suas equações do que fazê-las adequar-se à experiência."

A beleza matemática não é um conceito fácil de transmitir àqueles que não estão familiarizados com a matemática, mas é reconhecido sutilmente por cientistas profissionais. Como todos os julgamentos de valores estéticos, porém, é altamente subjetivo. Ninguém ainda inventou um "metro de beleza que pode medir o valor estético das coisas sem referir-se a critérios humanos. Pode alguém realmente dizer que certas formas matemáticas são intrinsecamente mais bonitas que outras? Talvez não. Em quais circunstâncias seria tal beleza uma boa guia para a ciência? Por que as leis do universo deveriam parecer bonitas a humanos? Não há dúvida da existência de diversos tipos de fatores biológicos e psicológicos no trabalho de moldar nossas impressões sobre o que é belo. Por exemplo, ninguém se surpreende com o fato da forma feminina ser atraente aos homens e que as linhas curvas de muitas belas esculturas, pinturas e estruturas arquitetônicas, tenham alguma referência sexual. A estrutura e operação do cérebro também podem ditar o que está agradando ao olho ou ao ouvido. A música pode refletir ritmos cerebrais de alguma forma. De qualquer modo, entretanto, há algo curioso aqui. Se a beleza é apenas o resultado de uma programação biológica, criada unicamente por valor de sobrevivência, é ainda mais surpreendente vê-la re-emergir no mundo esotérico da Física fundamental, que não tem nenhuma conexão direta com a Biologia. Por outro lado, se a beleza for mais que mera biologia em ação, se nossa avaliação estética se originar de um contato com algo mais firme e mais penetrante, então seguramente trata-se de um fato de importância primordial, "algo" que as leis fundamentais do universo parecem refletir."

(Davies, 1993, pp. 175-176)

Minha própria inclinação é supor que qualidades como engenhosidade, economia, beleza e assim por diante, têm uma realidade transcendente genuína - não são meramente produto da experiência humana - e que estas qualidades se refletem na estrutura do mundo natural. Se tais qualidades podem por si mesmas trazer o universo à existência, não sei. Se podem, a pessoa poderia conceber Deus como sendo apenas uma personificação mítica de tais qualidades criativas, em vez de um agente independente. Isso, certamente, não iria satisfazer qualquer pessoa que sinta ter uma relação pessoal com Deus.

(Davies, 1983, pp. 214-215)

Davies está, obviamente, correto ao assumir que uma mera personificação de qualidades criativas está longe do conceito de Deus aceito pela maioria das religiões. Mas o conceito de que o universo físico reflete em sua estrutura os atributos de Deus é algo que encontra ressonância considerável no discurso religioso. Por exemplo, Bahá'u'lláh, cujos ensinamentos confirmam a existência de um Deus cuja essência não se pode conhecer, declarou que:

Ainda mais, qualquer coisa que esteja nos céus e qualquer coisa que esteja sobre a terra, é evidência direta da revelação, no seu imo, dos atributos e nomes de Deus, já que dentro de cada átomo estão encerrados os sinais que dão eloqüente testemunho da revelação daquela mais grandiosa Luz. Se não fosse a potência dessa revelação, jamais poderia existir, parece-me, ser algum. Como são resplandecentes os luminares de conhecimento que brilham num átomo e vastos os oceanos de sabedoria que se encapelam dentro de uma gota!

(EBB, 1977, p. 65)
Racionalismo

Muito freqüentemente, o racionalismo é identificado com um ou outro modo específico de pensar. A alma racional é uma característica sem igual do ser humano; seus poderes incluem investigação científica, compreensão dos significados e contemplação da beleza. Estes poderes podem se expressar na criação em mais de uma forma: pensamento e ações racionais. Somente quando estivermos dispostos a abandonar definições restritas de racionalismo, é que iremos poder apreciar a harmonia subjacente entre ciência e religião. As definições às quais chegamos deveriam permitir o cepticismo que caracteriza qualquer método científico, mas também deveríamos reconhecer a necessidade dos repetidos impulsos de fé, pois é um fato inegável da vida que um sem o outro não leva a nada. A seguinte citação de David Bohm em Totalidade e a Ordem Envolvida, ilustra o quero dizer com um "modo de pensar":

No entanto, este tipo de habilidade do homem de separar-se de seu ambiente e dividir e repartir as coisas, no final das contas conduziu a uma extensa gama de resultados negativos e destrutivos, porque o homem perdeu a consciência do que estava fazendo e, desta forma, estendeu o processo de divisão além dos limites dentro dos quais opera corretamente. Em essência, o processo de divisão é um modo de pensar em coisas que são principalmente convenientes e úteis no domínio de atividades práticas, técnicas e funcionais (por exemplo, dividir uma área de terra em diferentes campos onde várias colheitas possam ser cultivadas). Porém, quando esta forma de pensar é mais amplamente aplicada à noção do homem sobre si mesmo e ao mundo inteiro no qual vive, (i.e. para a visão de seu ego-mundo), então o homem deixa de considerar as divisões resultantes como meramente úteis ou convenientes e começa a ver e experimentar a si mesmo e ao seu próprio mundo como de fato é constituído, de fragmentos existentes separadamente. Sendo guiado por uma visão ego-mundial fragmentária, o homem então age de um modo tal que busca fragmentar a si mesmo e ao mundo ao seu redor, de forma a que tudo pareça corresponder ao seu modo de pensar. O homem, assim, obtém uma prova aparente da justeza de sua visão ego-mundial fragmentária; entretanto negligencia o fato de ter sido ele, agindo de acordo com seu modo particular de pensar, que provocou a fragmentação que agora parece ter uma existência autônoma, independente de seu desejo e de sua vontade.

(Bohm, 1981, pp. 2-3, ênfase no original)
Complementaridade

Tentativas para aplicar o princípio de complementaridade em áreas diferentes das da Física, não encontram guarida em todos os cientistas. Em primeiro lugar, os físicos não concordam unanimemente quanto ao significado preciso da complementaridade, nem compartilham de todas as visões filosóficas expressas pelos arquitetos da interpretação de Copenhague, principalmente Niels Bohr. Um assunto no qual existem diferenças profundas, por exemplo, é se as idéias humanas podem atingir a essência das coisas. Bohr duvidava abertamente de tal possibilidade; para ele, como definia Henry P. Stapp (1993) o "progresso no entendimento humano consistiria mais provável no crescimento de uma rede de compreensões complementares entrelaçadas de vários aspectos da natureza como um todo". Stapp continuou:

Tal visão, embora retendo a promessa de uma eventual iluminação completa relativa à última essência da natureza, aceitava a possibilidade da investigação humana poder continuar descobrindo novas e importantes verdades indefinidamente. E estas podem ser finais no sentido de abarcar ou trazer luz a alguns aspectos da natureza como é revelada à experiência humana. E a esperança pode persistir de que o ser humano perceberá cada vez mais claramente, através de sua crescente mistura de visões complementares, a forma geral de uma presença cada vez mais abrangente. Mas não se pode esperar que esta presença penetrante ocupe o espaço tridimensional de intuição espontânea ou ser descrita, fundamentalmente, em termos de quantidade associada com pontos de um espaço de tempo tetra-dimensional contínuo.

(Stapp, 1993 p. 70)

Pessoalmente, não me sinto à vontade com todos os aspectos da interpretação de Copenhague sobre mecânica quântica, muito menos com todo o seu pragmatismo extremo. Mas em relação ao conhecimento humano, as idéias que expressei neste trabalho se harmonizam muito mais com a declaração acima do que, digamos, com a convicção de que toda a explicação será por fim reduzida às ramificações de uma única teoria científica global.

Dualidade

Há uma enorme diferença entre a dualidade da mecânica quântica e as dicotomias nas quais a visão mundialmente aceita da mecânica parece ter alcançado. Uma das contribuições mais importantes da "nova Física" para um padrão de pensamento que está emergindo no mundo de hoje, é sua rejeição desta universalidade de aceitação. Em "O Ego Quântico: Uma Visão Revolucionária da Natureza e da Consciência Humana: Com Base na Nova Física", Danah Zohar (1991) faz uma análise criteriosa da alienação resultante da interpretação mecânica do universo:

As três "dicotomias perniciosas" nos deixaram imaginando como nós, seres humanos conscientes, relacionamo-nos conosco mesmos (nossos próprios corpos, nosso próprio passado e futuro, nossos próprios egos substitutos), uns com os outros ou com o mundo e com os fatos da natureza. Tentando responder a estas indagações, nossa psicologia, nossa filosofia e nossa religião fragmentaram-se em opostos extremos. Como Yeats disse sobre esta era: "As coisas se rompem e o centro não pode segurá-las."

A divisão entre a mente e o corpo ou entre o ser interior e o exterior, deu origem à dicotomia entre o subjetivismo extremo (um mundo sem objetos) e o objetivismo extremo (um mundo sem assuntos). Assim, o Idealismo negou a realidade ou a importância da matéria e reduziu tudo à mente, enquanto que o materialismo negou a realidade ou a importância de mente e reduziu tudo à matéria. Freud afirmava que a parte interna era real e acessível, enquanto que a exterior era toda projeção e muitas ondas de misticismo refletiam esta visão - por exemplo, o mundo é o véu de Maya, um véu de ilusão. Em outro extremo, o Behaviorismo afirma que o exterior era real, negando a relevância do mundo interior. Tornou-se psicologia sem a psique.

A divisão entre o indivíduo e seu relacionamento levou, por um lado, a um individualismo exagerado, a uma vontade egoísta pelo poder e por possessões e por outro lado, a um comunitarismo como aquele do Marxismo, que negou o significado ou a importância dos indivíduos, dando ênfase à primazia absoluta do relacionamento.

A divisão entre cultura e natureza levou ambos ao relativismo de todos os tipos - factível, moral, estético e espiritual (julgamentos de valores) - e para dogmas de fundamentalismo extremo. Não parecia haver um ponto mediano entre os dois extremos, um afirmando que um determinado modo de ver as coisas era apenas uma entre muitas formas contingentes e relativas de apreciação; outro, dizendo haver um único, verdadeiro e absoluto modo de ver as coisas. Parecia não existir uma forma de dizermos que não éramos nem criaturas de cultura e, portanto, não enraizadas em qualquer fato estabelecido ou inteiramente criaturas da natureza (do que foi dado), sem flexibilidade ou espaço para um desenvolvimento criativo.

No Ocidente, estas dicotomias roubaram nossa individualidade de seu contexto e nos colocaram num isolamento mais profundo, levando ao narcisismo. Fomos cortados de uma confirmação exterior de nossa vida interior, que conduziu ao niilismo e negou a confirmação de nossas idéias, deixando-nos com o relativismo e o subjetivismo. Cada uma alimentou uma forma de alienação e a soma total desta alienação é a maldição de modernismo.

(Zohar, 1991, pp. 217-218)

Ao tentamos promover um discurso sobre ciência, religião e desenvolvimento, o maior desafio que encontramos é superar os hábitos mentais descritos por Zohar na citação acima. O que amedronta é que nosso discurso tem de se focalizar principalmente no desenvolvimento, o próprio processo que tomou sobre seus ombros a responsabilidade de propagar estes hábitos em todo o planeta.

Princípios Espirituais e o Papel do Conhecimento

Os programas de desenvolvimento somente continuarão sendo pertinentes à vida de sociedade na extensão em que forem formulados e realizados no contexto de uma civilização mundial emergente. Isso não significa que o campo do desenvolvimento tem que ampliar seu escopo para abranger todos os aspectos de existência humana. Pelo contrário, como um empreendimento global seu valor está em sua consagração à tarefa de fomentar prosperidade entre os diversos habitantes do planeta. No entanto, para alcançar a vitalidade exigida, o esforço sistemático para realizar o desenvolvimento social e econômico de nações deve ser concebido no contexto de um processo maior que levará a humanidade a sua próxima fase de evolução.

Não importa quão superficial, uma análise das forças históricas que estão moldando a estrutura da sociedade - junto com as revoltas devastadoras que estas forças já precipitaram e as mudanças prodigiosas que geraram - ela deveria convencer os defensores intransigentes das políticas globais de hoje que o progresso material incontrolado não é o que a sociedade precisa.

Um duplo clamor é ouvido em toda parte, que surge do coração das vastas massas da humanidade. Exige a extensão dos frutos do progresso materiais a todos os povos e, ao mesmo tempo, clama pelos valores espirituais da civilização. Pois a "civilização material assemelha-se a uma lâmpada e a divina, à luz. Sem luz, a lâmpada permanece escura. A civilização material é como o corpo. Por infinitas que sejam sua formosura, graça e beleza, ele é morto. A civilização divina é como o espírito. É o espírito que insufla vida no corpo". (EBB, 1993, 276:227) A verdadeira prosperidade tem tanto dimensão material quanto espiritual.

Que a humanidade está sendo irresistivelmente impelida para alguma espécie de forma coerente de existência é algo que não se discute. A escolha está naquilo que deve ser globalizado - o mais vil dos desejos humanos ou os mais nobres ideais e aspirações. As idéias expostas nestas páginas originam-se da convicção de que o aparente domínio atual usufruído pelos primeiros, os desejos mais vis, é apenas ilusório; são os segundos, os ideais e aspirações mais nobres, que terão a palavra final no destino da raça humana. A visão aqui projetada, portanto, é otimista, não em relação ao futuro imediato, mas a um futuro mais distante, o qual, felizmente, é inteiramente discernível desde já.

É uma característica de numerosas formas de existência a necessidade de passar por sucessivos estágios de transformação antes de alcançar o nível de maturidade a ela destinado. Mesmo o ser humano está sujeito a essa característica da evolução, tem de passar da infância à adolescência e à juventude antes de alcançar a idade adulta e sua maturidade, quando todos os poderes do espírito humano se manifestam. Os atributos do adulto não são definidos pelas imperfeições da infância; nem as vicissitudes da adolescência duram além do período de transição para a maturidade. Não sugere a História um padrão similar para a vida coletiva da humanidade?

Se a humanidade está, na verdade, se aproximando da idade adulta, as transformações revolucionárias que estão ocorrendo com incrível rapidez em todos os setores de sua vida coletiva assumem o caráter de dois processos paralelos, um integrativo e outro de desintegração ruinosa. A ocorrência de ambos é necessária durante esse período tumultuoso quando as barreiras erguidas pelos pensamentos, atitudes e hábitos da infância da raça humana precisam ser removidas e, em seu lugar, construídas as estruturas de uma civilização que possam sustentar as fortes e pesadas responsabilidades da fase de maturidade. Se esta concepção é razoável e correta quanto a crise atual da civilização, então torna-se imperativo que aqueles de nós que estão envolvidos em um empreendimento global que chamamos desenvolvimento e que deve contribuir para o surgimento das instituições e práticas da vida adulta, devemos todos entender a natureza do processo dual que está afetando nossos esforços. Pois, por inevitável que seja o resultado, a desintegração pode ser dolorosamente prolongada pelas decisões de líderes mundiais que se recusam a atender às exigências de uma nova era.

Esta interpretação da natureza de nosso tempo pode nos ajudar a nos libertar do apego excessivo aos padrões do passado e caminharmos à frente para encontrar novos e viáveis caminhos para o desenvolvimento. Se permitirmos que antigas convenções persistam ditando os padrões de desenvolvimento, o destino da humanidade será uma sociedade global dirigida pelos interesses de uma minoria e estará sob o jugo de forças políticas e econômicas. Tal sociedade será inaceitável para a raça humana, que já superou antigos hábitos de sua adolescência. Neste contexto, a visão de desenvolvimento como algo que é dado pelos "desenvolvidos" para os "em desenvolvimento" ou como uma imitação de todas as nações ao modelo da industrialização, que historicamente levou alguns países à prosperidade material, não pode sobreviver diante de uma opção realista. Igualmente inadequada é a visão de desenvolvimento como um processo desordenado cujos objetivos surgem de dentro de sua própria dinâmica. A transição para a maturidade aqui mencionada prevê que a humanidade deve desenvolver-se como um todo, num nível de consciência coletiva. Como isso está ocorrendo de forma crescente, as únicas estratégias de desenvolvimento aceitáveis serão aquelas que consideram as pessoas e suas instituições como os reais protagonistas das transformações - toda a humanidade e as instituições que servem legitimamente aos seus interesses. Se desejarmos definir corretamente o desenvolvimento, é necessário fazê-lo em termos de criação de condições e capacitação adequada em indivíduos, comunidades e instituições, para participarem efetivamente no tecimento da estrutura social de uma próspera civilização material e espiritual.

Princípios Espirituais

Claramente, a relação entre a civilização material e a espiritual acima apresentada não é algo simples. Matéria e espírito interagem em padrões intrincados e em vários níveis. No campo do desenvolvimento, uma interação essencial deve ocorrer ao nível de princípios. Reconhecendo a necessidade de modificar a declaração em um estágio posterior, gostaria de propor que o progresso na civilização material receba seu impulso fundamentalmente da força da ciência. É decorrência das diferentes aplicações da faculdade racional da alma humana, por exemplo, entender as leis da natureza e da sociedade, promover a agricultura e a indústria, aprender as lições da história, alcançar discernimentos sobre uma viável organização social e mesmo criar métodos de governança humana. No entanto, essas aplicações devem estar voltadas para, e ser governadas pelos princípios da civilização espiritual, sem a qual o progresso material pode levar tanto à miséria quanto à felicidade.

No mundo de hoje não será fácil argüir que a prática do desenvolvimento devia ser guiada por princípios espirituais. A prescrição que "o fim justifica os meios" tem sido por tanto tempo e tão amplamente aceita por tantos que já se tornou um conceito normal na cultura popular, como o é a idéia a ele ligada de que o sucesso é o árbitro final dos componentes conflitantes do problema. Consideremos, por exemplo, a questão da justiça. Se a justiça deve ser um princípio obrigatório na prática do desenvolvimento, então a criação propositada da injustiça, mesmo como uma medida temporária para alcançar a prosperidade em uma data futura, não é algo permissível. No entanto, não somente o pensamento desenvolvimentista endossou tal prática não só nos primeiros anos, como trinta anos depois, mesmo após a dolorosa experiência adquirida, mantendo ainda práticas similares, embora expressa no vocabulário de forma amena para tornar mais palatável tal conceito, que voltou e continua sobrevivendo até nossos dias.

O efeito de incorporar a discussão dos princípios espirituais nas deliberações sobre desenvolvimento social e econômico envolve outras dificuldades, muitas enraizadas já há longo tempo na história de atos condenáveis dos movimentos religiosos. Mesmo a lembrança de tais experiências de arrogância e hipocrisia, inevitavelmente gera resistência. No entanto, conforme argüido em outros pontos deste documento, reações extremas de mentes eruditas para corromper formas de crença religiosa têm acarretado um grande peso sobre a humanidade, sendo já tempo de mostrar disciplina neste respeito. Acreditar em princípios e defendê-los não implica um senso de superioridade espiritual. Existe uma diferença entre crer em ideais elevados e o fato de incorporá-los em seus ensinamentos. Para traduzir princípios em ações devemos nos engajar em um processo de aprendizado, um processo cujos métodos devem ser científicos. Ainda mais, um aprendizado efetivo depende de uma postura de humildade e nosso temor à hipocrisia não nos deve impedir de dar à humildade o mérito que merece. A discussão dos princípios que se seguem, então, não é um tratado sobre religiosidade; é apresentada no contexto do aprendizado como o modo ideal de operação no campo do desenvolvimento.

A Unidade da Humanidade

A marca distintiva da era da maturidade será a unificação da raça humana.

O princípio da unidade da humanidade não é uma mera expressão de uma noção romântica de amor fraternal ou de louvor a algum ideal vago de tolerância e respeito mútuo. Não é um chamamento à uniformidade. Não tem nada em comum com o avanço agressivo de uma cultura superficial que idolatra a gratificação desenfreada dos desejos e que devora toda cultura que encontra em nome da universalidade.

Acreditar na unidade da humanidade, conforme aqui definido, implica a rejeição de teorias que explicam a vida coletiva dos seres humanos em famílias, grupos, tribos, cidades e nações unicamente em termos de imperativos de sobrevivência. Mais que isso, a evolução de tal vida coletiva e suas instituições é vista como um desenvolvimento gradual das potencialidades do espírito humano. Este processo evolutivo alcançará um estágio de realização no qual a humanidade será, finalmente, capaz de assumir a tarefa de assentar as bases de uma civilização unida e evoluída. O progresso rumo a essa meta demanda uma mudança rápida e orgânica em todas as estruturas da sociedade, acompanhada por uma igualmente profunda transformação na consciência humana.

Os esforços para entender a operação destes princípios devem ter em mente que a unidade precisa necessariamente expressar-se em uma variedade infinita de formas. Diversidade e unicidade são complementares e inseparáveis. A diversidade nem sempre acarreta inimizade e oposição. As diferenças de etnia, nacionalidade e raça que existem hoje em dia podem ser avaliadas no contexto de um processo histórico que tem passado por estágios progressivos de unidade. As diferenças que são vistas como as causas de divisão e conflito devem ser na verdade tratadas como fontes de estabilidade. A diversidade traz enorme força à composição do todo quando a unificação ocorre.

A conscientização gradual do significado da interconexão nos processos que ocorrem no universo está crescendo cada vez mais não somente nos meios religiosos e filosóficos, mas também no campo da observação científica. Muitos progressos ocorridos nas últimas décadas - por exemplo, no entendimento da evolução dos sistemas biológicos e cognitivos, na ecologia, no estudo do cosmos e de suas mais ínfimas partículas - tornaram obsoleta a noção, mundialmente aceita, fundamentada na mecânica de um relógio e nas interações de bolas de bilhar. O pensamento desenvolvimentista precisa ser igualmente desafiado a deixar para trás a visão de uma sociedade que se originou em mentes vítimas da fragmentação e buscar em novos paradigmas científicos as idéias e as ferramentas necessárias à realização de suas tarefas.

A analogia que parece demonstrar a operação do princípio da unidade na sociedade é o corpo humano. Dentro deste sistema, milhões de células, com uma extraordinária diversidade de formas e funções, colaboram para tornar possível a existência humana. Elas são e recebem o que quer que seja necessário ao bem estar do todo. Ninguém ousaria tentar explicar a vida de um corpo sadio em termos de alguns princípios que usamos tão livremente em nossas teorias sociais, como a competição entre as partes em luta por parcos suprimentos. O princípio que governa o funcionamento do corpo é a cooperação. Mas não uma cooperação sem um propósito - a existência devido à sua própria existência. O resultado deste complexo conjunto de interações é um sistema que serve como o templo da alma. A faculdade racional surge e a inteligência, uma qualidade que parece estar presente profundamente na estrutura do universo, se manifesta. Não poderia a sociedade tornar-se também a arena para uma harmoniosa interação entre os seres humanos, interações cujo propósito não seria uma mera satisfação de alguns momentos passageiros nesta Terra, mas o aparecimento de uma forma superior de civilização humana?

Visto desta forma, o princípio da unidade da humanidade entraria no discurso desenvolvimentista em três níveis. O primeiro seria o nível de tomada de decisões e direcionamento. O que fomenta a separação, consolida o isolamento e fortalece a ascendência de um grupo de pessoas sobre outro - mesmo sob a máscara da unidade e globalização - poderia de forma alguma ser considerado como desenvolvimento. O segundo ocorre ao nível dos enfoques e metodologias. O desenvolvimento, entendido como uma prosperidade adicional a tudo, não pode ocorrer através da glorificação do conflito, seja de classe ou ideológico. Nem pode a busca de objetivos egoístas e competitivos ser considerada como o princípio organizador da sociedade e como o único caminho para a excelência, embora alguém possa aceitar que as idéias e os produtos devem poder competir entre si. A excelência não será alcançada se as qualidades nobres da alma humana não puderem florescer num ambiente de liberdade criado pela cooperação. O terceiro nível no qual o princípio da unidade pode ser encontrado é o da atividade programática. A união dos corações humanos e o alcance progressivo da unidade de propósitos, unidade de pensamento e unidade de ação devem ser incorporadas tanto nas metas como nos métodos dos projetos de desenvolvimento; assim, também, têm de ser medidas que promovam a integração das pessoas em todas as partes em uma rede crescente de relações globais. Neste mesmo sentido, creio, é que a frase bem conhecida: "Pense globalmente, aja localmente" - encontra o seu verdadeiro significado.

Justiça

Dizer que a justiça deve ser uma preocupação fundamental da estratégia do desenvolvimento é expressar um truísmo. Existe, porém, pouca concordância sobre os meios pelos quais a justiça pode ser aplicada em planos reais e colocada em ação. Reconhecer que a justiça é basicamente um princípio espiritual, uma exigência do espírito humano, ajuda a superar a dificuldade e abre as portas à possibilidades que não estão disponíveis quando a discussão é limitada à distribuição da produção ou à aplicação da democracia. Como um conceito não aplicável á rede de conexões que definem o reino animal, a justiça é, irrefutavelmente, uma exigência de uma vida que transcende a existência animal. Mais que uma mera preocupação com assuntos sociais, a justiça, como um princípio espiritual, diz respeito ao indivíduo em seu nível mais profundo de consciência.Sua influência motiva a participação, eleva a consciência a novos níveis e fortalece os indivíduos, as comunidades e as instituições.

As raízes espirituais do princípio podem ser encontradas naquela faculdade da alma humana que nos possibilita ver com nossos próprios olhos e não com os alheios. O cultivo desta faculdade cria no indivíduo a responsabilidade de investigar a realidade livre das cadeias das tradições perpetuadas através da imitação. Quando suficientemente desenvolvida, ela protege a pessoa, por exemplo, de ser uma vítima ingênua da propaganda de mercado, que de forma constante induz à compra de coisas, serviços e ideologias. A eliminação de tal credulidade é, claramente, uma exigência do processo de desenvolvimento que convoca a participação das pessoas na definição de seu próprio caminho de desenvolvimento coletivo.

Entendido como um princípio espiritual, a justiça ajuda os formadores de programas de ação a evitar as armadilhas da uniformidade, respeitando ainda as exigências da eqüidade. A analogia do corpo humano mencionada em relação ao ideal de unidade assume um novo significado quando examinada à luz deste princípio. Em vez de apenas definir o relacionamento entre os membros da sociedade em termos de uma igualdade extemporânea à própria estrutura da criação, a pessoa é levada a ver o bem estar individual e coletivo como resultado de uma intrincada operação de um sistema que avalia as necessidades, as aspirações, os talentos, as motivações, os atos e as recompensas, todos de forma eqüitativa. Quando apropriadamente aplicada a assuntos sociais, a justiça é singularmente o instrumento mais importante para o estabelecimento da unidade.

Sem justiça, as metas de desenvolvimento tornam-se distorcidas. Elas nem são ditadas pelos interesses das ideologias dominantes e grupos poderosos, nem representam nada mais que as crenças, freqüentemente admitidas como baseadas no altruísmo, daqueles que trabalham profissionalmente no campo do desenvolvimento. Observe-se quão ruidoso é o louvor dado a enfoques imperfeitos para a globalização e quão maior ainda é o valor que se gasta para cobrir a resultante marginalização das massas. Sabe-se que milhares de projetos que foram lançados para aliviar a pobreza, mas que somente conseguiram proporcionar a um pequeno grupo de beneficiários algumas poucas vantagens, enquanto que o distanciamento entre o rico e o pobre na área sob sua influência continuou sempre a aumentar. Certamente, em cada estágio da atividade - desde a formulação das políticas até a definição dos programas de ação e à implementação de projetos específicos - o princípio da justiça deve ser o árbitro final.

Igualdade Entre Homens e Mulheres

Não há dúvida de que a igualdade entre homens e mulheres será uma característica distintiva da civilização a emergir do presente estágio evolutivo da raça humana, atualmente em fase de transição. O desafio é assegurar que, de um lado, o princípio possa dar uma direção à estratégia de desenvolvimento e, de outro, seja traduzido em estruturas e atitudes apropriadas, aceitas como meta integral de projetos específicos.

Reconhecer que a igualdade entre homens e mulheres é um princípio espiritual elementar acaba com todos aqueles argumentos que, abertamente ou de forma sutil, procuram defender a noção da superioridade masculina. Promover, como um elemento da crença religiosa, a convicção de que a alma do ser humano não tem sexo - como é o caso da raça e da cor - é atacar as próprias bases de antigo preconceito contra as mulheres. A ciência, evidentemente, muito faz para acabar com crenças errôneas. Mas a história está repleta de exemplos de povos inteiros que prontamente aceitaram premissas erradas como verdades científicas, devido a convicções herdadas que os levaram a assim agir.

Infelizmente, no que diz respeito à consideração deste tema sobre mulheres, os anais das principais religiões demonstram fatos surpreendentes. Denunciar a religião como perpetradora da desigualdade entre mulheres e homens, porém, não se justifica. A aceitação da realidade da igualdade dos sexos tem sido progressiva, certos elementos da religião considerando apenas à histórica realidade dos povos entre os quais foi promulgada. Isso deve ser entendido no contexto de um processo crescente, através do qual a verdade espiritual tem sido alcançada progressivamente, a fim de ir superando aos poucos os desafios do processo civilizatório.

A sociedade contemporânea está sendo levada por uma tendência prevalecente de relegar a segundo plano certos princípios, muito importantes, mesmo após o reconhecimento de seu valor, isso mais especificamente no campo da retórica e da discussão acadêmica. Se o princípio da igualdade entre mulheres e homens não está alcançando um reconhecimento generalizado, precisa pelo menos poder ser expresso de forma contínua através da adoção de uma meta especial: assegurar que os homens e as mulheres compartilhem, lado a lado, em todos os campos do esforço humano - científico, cultural, social e político - dos mesmos níveis de remuneração e em igualdade de condições. Para a grande maioria das mulheres no mundo, a implicação mais importante de tal meta é o direito à educação de forma irrestrita, uma educação com a mesma qualidade à que é oferecida aos homens e que é da máxima importância a educação das meninas, algo que precisa ser reconhecido internacionalmente como um tema das políticas sociais. A seriedade deste comprometimento poderá ser melhor apreciada ao se constatar o cuidado que está sendo tomado para complementar a ênfase dada à educação das mulheres com medidas de transformação das atitudes dos homens.

Por mais bem-vinda que seja esta conquista, a mudança de atitude é no entanto, apenas, parte da resposta de uma sociedade formatada dentro de antigos preconceitos. O princípio da igualdade entre homens e mulheres, tem profundas implicações nas mudanças de estrutura, que irão caracterizar a idade de maturidade da humanidade. Não seria exagero afirmar que a aplicação rigorosa deste principio irá revolucionar todas as instituições da sociedade, desde as famílias até os governos, desde as menores unidades de produção até às maiores organizações financeiras, desde as estruturas que apóiam a criatividade individual até os canais mais complexos de expressão coletiva da cultura. Pois o objetivo não é apenas criar oportunidades para as mulheres poderem fazer tudo o que os homens fazem atualmente, muito até vergonhoso e cruel. O princípio da igualdade de homens e mulheres traz muita luz ao entendimento das verdadeiras qualidades da alma humana, tão necessárias à organização da vida social. Confirma a realidade humana e sua aplicação constitui um requisito vital para o estabelecimento da paz, afasta em definitivo a violência, é uma exigência de uma nova e longamente esperada civilização espiritual. Sem ela, o desenvolvimento simplesmente não ocorre.

Gestão e Intendência da Natureza

A moderna era científica testemunhou uma rebelião justificada contra os pontos de vistas religiosos que pregam o abandono deste mundo em troca de recompensas no próximo. Para as pessoas em geral, tornou-se cada vez mais aparente que colocar o espiritual e o material em uma oposição forçada engendra passividade, que é uma influência importante para a perpetuação da pobreza através da opressão. O credo do materialismo que acompanhou a rebelião contra a tradição, porém, não promove a relação da humanidade com o mundo material no qual vive. Colocando Deus de lado, a resposta a toda essa questão foi buscada nos fatos da natureza, vagamente definidos como tudo o que é acessível aos sentidos. Mas, com esta mudança, baniu-se também a reverência pela natureza que havia sido um aspecto vital dos estágios anteriores da evolução social. A Terra tornou-se basicamente um reservatório de recursos materiais a serem explorados dentro de um enfoque que foi caracterizado como hostil e irresponsável. O resultante desastre ecológico agora força os líderes mundiais a re-examinarem o significado de progresso e a relação existente entre a humanidade e a natureza.

Muito da culpa pelo grande desequilíbrio criado na ecosfera é colocado sobre o antropocentrismo da civilização atual. A alternativa freqüentemente oferecida, porém, é um biocentrismo que parece igualmente inalcançável. Em sua formulação extrema, esta filosofia é apenas outra marca do materialismo, uma forma de adoração da natureza que ignora as exigências de uma consciência singular da espécie humana e ausente do universo material. Mais uma vez, o foco é exclusivamente sobre a sobrevivência da raça. Podem os seres humanos ser agora induzidos a crer que seu único propósito na vida é passar algumas dezenas de anos neste planeta em harmonia com a natureza, como fazem os peixes e os pássaros?

O princípio da gestão e intendência ambiental defendido neste estudo afirma ser uma aspiração humana natural transcender as limitações do mundo material, mas o faz mantendo uma atitude de respeito e cooperação com a natureza, o que está em harmonia com a unidade da existência. Defende uma visão de inteireza e interconexão através da criação, o que inclui tanto a natureza como a consciência humana, o primeiro sendo uma expressão da vontade de Deus no mundo contingente e o segundo um imperativo de uma ordem mais elevada de existência. A gestão e intendência da natureza, então, constituem um papel imprescindível que a humanidade, dentre outras incontáveis espécies na biosfera, tem de exercer - o papel de ser um participante consciente, compassivo e criativo na evolução da vida do planeta. Longe de considerar a presente crise ecológica uma causa de desespero, os pensadores desenvolvimentistas devem reconhecê-la como um ponto de mutação providencial na evolução da consciência humana, um ponto de mutação no qual a fragmentação dá lugar à unidade do todo.

Trabalho e Riqueza

Como acontece com a natureza, a riqueza recebeu também um tratamento contraditório em cada período da evolução social. Repetidamente, o pêndulo tem se movido de um lado para o outro, de repulsa à riqueza como corruptora da alma humana à sua adoração como provedora final da felicidade. O conceito, claramente, precisa ser reexaminado no contexto de um processo de desenvolvimento que pode contribuir para o avanço espiritual e material da raça humana.

O princípio espiritual que pode ajudar a definir uma atitude apropriada com relação à riqueza tem consistência com a natureza real e com o propósito do trabalho. O trabalho é tanto uma exigência da vida neste planeta como um impulso inerente ao caráter humano. Através dele, as exigências necessárias da alma humana encontram sua realização e muito de seu potencial é realizado. Para alcançar sua finalidade, porém, o trabalho não pode ser reduzido a uma luta pela sobrevivência. Nem pode seu objetivo ser apenas a satisfação de anseios pessoais. O mais elevado grau do trabalho é o de serviço à humanidade e quando realizado neste espírito torna-se um ato de adoração espiritual.

O fruto mais nobre do trabalho é a realização intelectual e espiritual decorrente. Mas o trabalho precisa produzir também os meios materiais de sustento do indivíduo e da sociedade, tornando possível o progresso. Uma civilização mundial próspera, já ao alcance da humanidade, exige a produção da riqueza em uma escala até então não imaginada. O sucesso de tal esforço depende de uma definição rigorosa dos parâmetros de propriedade da riqueza, a fim de escapar das armadilhas tanto do excessivo controle do estado como do imensurável acúmulo de riquezas nas mãos de alguns poucos. Os extremos de riqueza e pobreza estão estreitamente ligados - a pobreza não poderá ser abolida enquanto se permitir a existência extrema da riqueza.

Visto sob este enfoque, a riqueza pessoal é aceitável enquanto atender a certas condições. Deve ser adquirida através de trabalho honesto, físico ou intelectual e sua aquisição não pode ser a causa, não importa quão indiretamente, do empobrecimento de outros. Ainda mais, a legitimidade das possessões materiais depende igualmente de como foram ganhas e como são usadas. A pessoa tem o direito de usufruir os frutos de seu próprio labor e gastar a própria riqueza não somente com sua própria família, mas também para o bem estar da sociedade.

Liberdade e Empoderamento

No âmago da espiritualidade está o anseio da alma humana pela libertação das cadeias e disputas pela existência material. Paradoxalmente, o impulso recebe oposição de outro: permissão para atender aos seus próprios desejos. Ao longo da história, aqueles dois impulsos têm coexistido e têm se misturado, formando dezenas de ideologias, cada uma delas apelando às nobres aspirações e cada uma carregando dentro dela as sementes de suas própria destruição. Revolução tem sido seguida por revolução - justificadas inicialmente pelo desejo legítimo de ser livre, apenas para servir de opção, mais tarde, às mais cruéis manifestações de uma natureza inferior. O desespero que caracteriza a sociedade de hoje deve muito de sua força à confusão daqueles que não podem distinguir entre a verdadeira liberdade e a entrega ao desejo animal.

A ciência provê as ferramentas e os métodos que podem ser usados para se alcançar a liberdade. Mas é a luz da religião que separa a nobreza da vileza. Do ponto de vista religioso, a verdadeira liberdade está em conformidade com os ensinamentos divinos. Pois, somente na extensão em que os seres humanos despertam sua consciência para a capacidade do amor, generosidade, justiça, compaixão, confiabilidade e humildade, é que podem manifestar os poderes extraordinários com os quais foram dotados.

Certamente, libertar-se da opressão é uma causa a ser apoiada durante toda a era de transição da infância à maturidade. Os que trabalham para esta meta encontrarão pouca dificuldade para detectar a conduta opressiva de regimes tiranos e medidas políticas e econômicas instituídas por um grupo para suprimir outro. O que é bem mais difícil de entender é o fato de que a versão reinante de democracia, tão intimamente ligada às operações de mercado, alimente outras formas de opressão, sutis, mas igualmente danosas, pois o maior crime da opressão é aquele que rouba das pessoas suas verdadeiras identidades. Sua arma é a manutenção da ignorância através da manipulação da informação e a negação do acesso ao conhecimento. Ironicamente, tanto o perpetrador como a vítima se vêem privados de oportunidades para o desenvolvimento de potencialidades das quais, em última instância, depende a sua realização. Uma tarefa central do desenvolvimento, então, é a propagação sistemática do conhecimento material e espiritual quanto ao claro propósito de fortalecimento das pessoas.

O Papel do Conhecimento

Como a prática do desenvolvimento tem de ser orientada por princípios espirituais, o papel que concede à geração e aplicação do conhecimento deve ser reavaliado. O materialismo, seja convincentemente definido ou oculto em conclusões implícitas, tem pouca chance de sobreviver a não ser colocando a atividade econômica no centro da existência humana. De uma forma ou outra, todos os outros processos de vida social terminam subordinados a esta atividade, derivando dela a maior parte da importância das contribuições que fazem à criação do conforto material e da riqueza. Especificamente, o conhecimento, muitas vezes confundido com informação, adquire muito de seu valor do enorme potencial que tem para direcionar o progresso econômico.

Uma afirmativa alternativa, feita neste estudo, é que um consenso geral que confirma as dimensões espirituais de consciência devia considerar a geração e aplicação do conhecimento como o verdadeiro processo essencial à existência social. Claramente, a criação da riqueza e sua distribuição eqüitativa continuariam a ser indispensáveis. Mas a atividade econômica não seria vista como um fim em si mesma. Além da atenção às necessidades de sobrevivência, estaria preocupada com a multiplicação dos meios através dos quais a humanidade poderia trabalhar no sentido de metas com propósitos mais elevados.

Em uma análise final, se a necessidade de alcançarmos tão fundamental mudança em nossa percepção da vida social está sendo reconhecida, ou rejeitada, isso depende de nossa convicção sobre o significado e propósito da vida. Mas, quaisquer que sejam nossas convicções, será cada vez mais difícil ignorar a evidência que aponta de forma surpreendente para a incapacidade da prática de desenvolvimento enraizada no materialismo dogmático assegurar pelo menos o bem-estar de grandes setores da humanidade. Na verdade, como pode alguém negar que a opressão econômica e política são inerentes à visão materialista da existência? Não importa quão heróica seja a luta contra a miséria e a opressão, a causa principal da miséria, prevalecerá de uma ou de outra forma, dentre as miríades de formas existentes, pelas quais a sociedade transforma a expressão dos mais elevados imperativos da natureza humana.

Para a construção de uma civilização mundial - o conteúdo nela contido, já argüi aqui -o campo do desenvolvimento precisa organizar devidamente suas operações, exige um nível de capacidade bem maior que qualquer outro que a humanidade tenha imaginado durante seu longo período de infância. Para alcançar tal nível é necessária uma expansão enorme do conhecimento. Mas se tudo o que for realizado representa apenas crescimento em magnitude, os resultados práticos serão lamentáveis, na verdade. Se os atuais arranjos que limitam o acesso da ciência moderna a pequenos setores da sociedade forem mantidos, as conseqüências nada mais serão que o alargamento da distância que separa o rico do pobre. O desenvolvimento verdadeiro não pode ser visto como a mera preparação da maioria dos seres humanos para tornar-se ativos usuários dos produtos da ciência e da tecnologia. Uma preocupação fundamental de qualquer programa de desenvolvimento social e econômico não pode esquecer que se trata de um direito das massas da humanidade não somente ter acesso à informação, mas também participar inteiramente na geração e aplicação do conhecimento; a extensão da participação de cada ser humano deve ser determinada somente em decorrência de suas próprias capacidades.

Colocar à disposição de todos os membros da raça humana uma forma de educação bem qualificada irá certamente ter um papel crucial para se chegar ao nível de participação aqui proposto, como será a extensão do trabalho de sofisticados centros de pesquisas em todas as regiões. Mas, além desses avanços, o fluxo do conhecimento no mundo terá de ser reorganizado.

Em sua maior parte, o que se conhece como conhecimento científico moderno é gerado em universidades e em centros especializados de pesquisas nos países industrializados. Réplicas dessas instituições no hemisfério sul participam deste processo somente em graus limitados. A maioria das pessoas no mundo recebe uma educação formal inadequada deste sistema de desenvolvimento e de elaboradas pesquisas, bem como instruções de órgãos governamentais e de ONG's sobre o uso devido de pacotes tecnológicos e uma variedade de cursos de curta duração sobre os muitos aspectos da vida moderna na qual as massas da humanidade devem ser incorporadas. As pessoas são simultaneamente expostas à propaganda comercial, política e cultural de inumeráveis grupos e organizações competindo para obter sua atenção.

Que esses centros altamente sofisticados existentes no mundo, dedicados à pesquisa e ao desenvolvimento das fronteiras da ciência moderna, são essenciais, é um fato inegável. A necessidade de eficientes canais através dos quais indivíduos e comunidades recebam serviços benéficos em áreas tais como saúde, educação e produção, é igualmente evidente. Mas o que é amplamente ignorado é que, além do treinamento e da disponibilização de serviços, a aplicação do conhecimento no propósito da transformação das complexas realidades sociais exige a geração de novos conhecimentos que levem a pesquisas dinâmicas e eficazes, bem como à participação de uma diversidade cada vez maior de mentes.

Ainda mais, é certamente evidente que a pesquisa sobre o desenvolvimento não pode ter como propósito exclusivo o aumento do conhecimento em círculos acadêmicos ou ser realizado apenas por cientistas estranhos às populações para cujo progresso estão sendo promovidas. Por mais valiosos que sejam os frutos de tais pesquisas, elas falham na promoção do desenvolvimento da capacidade institucional dentro das populações para tratarem da geração e aplicação do conhecimento, não necessariamente na dianteira da moderna ciência e tecnologia, mas em áreas onde as ciências naturais e sociais possam juntas tratar de problemas de povos específicos. É a consideração desta última necessidade que constitui um dos principais desafios no campo do desenvolvimento. Se satisfatoriamente atendido, o resultado será o rompimento do modelo atual da fluência do conhecimento no mundo, dissociando o desenvolvimento de todos os processos destrutivos e mal concebidos de modernização, focalizando a atenção sobre o verdadeiro progresso cultural.

Comentários Adicionais

Os dois comentários seguintes parecem-me necessários para esclarecer a natureza dos princípios que tentei descrever aqui.

Relação com Textos Bahá'ís

Conforme mencionado anteriormente neste estudo, a metodologia adotada para este projeto de pesquisa convida a todos os participantes deixarem claro quais são as crenças religiosas nos quais se baseiam os argumentos que apresentam. Esta sub-seção é basicamente uma exposição de alguns ensinamentos Bahá'ís relevantes à criação de capacidades, o tópico a ser tratado no próximo capítulo. Embora as idéias expressadas representem meu próprio entendimento desses ensinamentos, tentei seguir os textos Bahá'ís tão intimamente quanto possível. Darei um exemplo que ilustra como fiz isso. Minha breve descrição do conceito da idade de maturidade da humanidade está baseada em várias passagens dos escritos Bahá'ís. Bahá'u'lláh faz repetidas referências ao surgimento de uma nova era na vida da humanidade:

Este é o Dia em que os mais excelentes favores de Deus manaram sobre os homens, o Dia em que Sua graça suprema se infundiu em todas as coisas criadas. Todos os povos do mundo devem reconciliar suas diferenças e, em paz e união perfeitas, se abrigar à sombra da Árvore de Seu cuidado e Sua benevolência. É mister aderirem a tudo o que, neste Dia, lhes possa elevar a condição e promover os melhores interesses.

(EBB, 2001b, IV)

'Abdu'l-Bahá , interpretando os ensinamentos de Seu pai, elabora ainda mais esta idéia:

Desde o princípio até o fim de sua vida, o homem passa por certos períodos ou estágios, cada um dos quais é marcado por certas peculiaridades. Por exemplo, durante o período da infância, suas condições e requisitos são característicos daquele grau de inteligência e capacidade. Depois de algum tempo ele entra no período da juventude, no qual suas condições e necessidades anteriores são substituídas por novos requisitos aplicáveis ao avanço de sua condição. Suas faculdades de observação se ampliam e se tornam profundas; sua capacidade de inteligência é treinada e despertada; as limitações e o ambiente da infância não mais restringem suas energias e realizações. Finalmente, ele deixa o período da juventude e entra no estágio ou estado de maturidade, o qual necessita de nova transformação e correspondente avanço nas atividades de sua vida. Ele é provido de novas capacidades e percepções, e aprendizado e educação correspondentes ao seu progresso ocupam sua mente, graças e dádivas especiais lhe são concedidas na proporção de sua ampliada capacidade, e seu período anterior de juventude e suas condições não mais satisfazem sua visão e perspectiva amadurecidas.

De modo semelhante, há períodos e estágios na vida coletiva da humanidade,...

O mundo humano está sofrendo transformações sob todos os pontos de vista. As leis dos antigos governos e civilizações estão em processo de revisão; as idéias e teorias científicas estão se desenvolvendo e progredindo para se adequarem a nova categoria de fenômenos; invenções e descobertas estão penetrando campos até agora desconhecidos, revelando novas maravilhas e segredos ocultos do universo material; indústrias têm âmbito e produção imensamente mais amplos; em toda parte, a humanidade está passando pelas dores do parto da atividade evolutiva, que indicam o abandono das velhas condições e o advento de nova era de reforma. ...

Este é o ciclo da maturidade e da reforma da religião também. Imitações dogmáticas de crenças ancestrais estão sendo abandonadas. ... Fanatismo e adesão dogmática a velhas crenças se tornaram a fonte central e fundamental de animosidade entre os homens, o obstáculo ao progresso humano, a causa de guerra e conflito, o destruidor da paz, tranqüilidade e bem-estar no mundo. ...

... Esta reforma e renovação da realidade fundamental da religião constituem o verdadeiro espírito de realização do modernismo, a inconfundível luz do mundo, o esplendor manifesto da Palavra de Deus, o remédio divino para todas as enfermidades humanas e a graça da vida eterna para toda a humanidade.

(EBB, 2005, pp. 550-552)

As operações de dois processos, um de desintegração e outro de integração, através dos quais a "união" dos povos do mundo será realizada, são também o assunto de exposição detalhada nos textos Bahá'ís. Os Bahá'ís são convocados, então, a fazer tudo o que puderem para promover as forças de integração na sociedade, mas devem estar bem conscientes dos inevitáveis efeitos das forças destrutivas que estão em ação em suas próprias vidas e na vida dos outros. Assim fazendo, devem manter-se alertas quanto à visão de um futuro que é descrito em termos como os seguintes:

As rivalidades entre as nações, os ódios e as intrigas cessarão e os preconceitos e animosidades de raça serão substituídos por amizade, entendimento mútuo e cooperação. Não mais existirão os motivos de contenda religiosa; abolir-se-ão as barreiras e restrições econômicas e a desmedida distinção entre as classes será eliminada. Desaparecerão a pobreza extrema, por um lado e, por outro, a excessiva acumulação de bens. A quantidade enorme de energia que se desperdiça com a guerra, quer econômica ou política, será dedicada a fins como estes: a extensão do alcance das invenções humanas e do desenvolvimento técnico, o aumento da capacidade produtiva da humanidade, o extermínio das moléstias, a ampliação das pesquisas científicas, a adoção de mais altos padrões de saúde física, a refinação do cérebro humano, a exploração dos recursos do planeta que ainda não foram utilizados ou descobertos, o prolongamento da vida do homem, a promoção de qualquer outro meio de estimular a vida intelectual, moral e espiritual da humanidade inteira.

(EBB, 2003b, p. 275)

O leitor não familiarizado com a Fé Bahá'í pode achar essas idéias utópicas e deterministas. Para os Bahá'ís não têm essa conotação. Quando examinadas no contexto da totalidade do sistema de crença, que coloca grande ênfase na escolha individual e coletiva, essas declarações são entendidas como descrições de um processo de crescimento orgânico, a revelação de potencialidades com as quais a existência humana foi dotada.

Conhecimento, Amor e Fé

Os princípios analisados com brevidade nesta parte de nosso estudo representam a convicção de um número crescente de pessoas de muitas tradições religiosas e seculares. Para os Bahá'ís, são considerados como elementos essenciais de seu sistema de crença e recebem extensas citações em suas Escrituras. Em razão do nome deste projeto de pesquisa, as crenças que tenho tentado tornar explícitas estão relacionadas primariamente com a transformação da sociedade. Isso, eu temo, pode transmitir uma visão estreita da Fé Bahá'í como religião. De fato, uma elevada porcentagem da literatura da Fé trata dos aspectos místicos da vida, assuntos de adoração e prática religiosa e, naturalmente, de conceitos teológicos. Embora estes não tenham relação direta com os assuntos em discussão, devo expressar minha convicção de que sem eles os princípios que tenho tratado perdem a força necessária para realizar a transformação desejada. O conhecimento deve ser acompanhado da vontade de agir para que os ideais possam ser traduzidos em realidade. Para uma pessoa religiosa, a vontade de agir recebe seu impulso de duas forças principais: a do amor e a da fé. De acordo com 'Abdu'l-Bahá: "O amor é a benévola luz do céu, o sopro eterno do Espírito Santo que vivifica a alma humana. ... (ele) revela com poder infalível e ilimitado os mistérios latentes no universo." (EBB, 1993, 24:12) E fé, em Suas palavras, é "o magneto que atrai a força celestial". (BPC, 1930, 1:62) "O significado de fé é, primeiro, conhecimento consciente e, segundo, a prática de bons atos." (BPT 1930, 3:549)

"No jardim de teu coração, nada plantes salvo a rosa do amor", é o conselho de Bahá'u'lláh (EBB, 2002ª, 79:3) "Somente por amor," diz o Bhagavad Gita, "podem os homens me enxergar e me conhecer e vir a mim." (11:54) "Nem mesmo a água de muitos rios pode apagar o fogo do amor", assegura-nos o Cântico de Salomão, "nem podem as grandes enchentes afogá-lo. Se um homem oferecesse por amor todas as riquezas de sua casa, seria certamente escarnecido". (8:7) Dos ensinamentos budistas aprendemos que "um homem de fé é reverenciado onde quer que vá: possui virtude e fama, ele prospera". (Dhammapada, 21: 303) "Se tiverdes fé, do tamanho de um grão de mostarda", Jesus prometeu, "podereis dizer a esta montanha que seja removida daqui para bem longe e isso ocorrerá; pois nada será impossível a vós." (Matheus, 17;20) E o testemunho do Alcorão é igualmente enfático: "Deus é o protetor daqueles que têm fé: das profundezas da escuridão Ele os conduzirá à luz." (Q 2:257)

Capacitação

Em uma tentativa para explorar as características de uma teoria de desenvolvimento que leve em consideração a dimensão espiritual da existência humana, tenho delineado alguns princípios que proponho devem governar tanto a estratégia como a operação do projeto. A visão do desenvolvimento demonstrada é a de um empreendimento global cujo propósito é criar prosperidade para todas as pessoas, um empreendimento que, tenho afirmado, deve buscar seus objetivos no contexto da emergência de uma civilização mundial. Tenho afirmado que a humanidade está passando por uma era de transição, melhor apreciada como uma passagem da infância coletiva para a maturidade coletiva e que, para ser efetiva, os esforços desenvolvimentistas devem transcender os padrões de conduta da adolescência. Escolhi a força do conhecimento como propulsora da civilização e afirmei que a participação na geração e aplicação do conhecimento é um direito inalienável de todo ser humano no planeta. Dentro deste contexto, propus que o desenvolvimento deve se focalizar na capacitação das pessoas, comunidades e instituições - os três protagonistas que devem participar na construção da civilização material e espiritual.

Se aceitarmos que o desenvolvimento deve ser configurado pelas exigências da transição da vida humana, de sua infância coletiva para a maturidade coletiva, precisamos reconhecer que no processo a criação conceitual de blocos de culturas e ideologias deve passar por mudanças profundas de significado. A lista de termos a serem redefinidos é longa - homem, mulher, jovem, trabalho, ócio, riqueza, honra, lealdade, liberdade, nação, estado, governo etc. Particularmente urgente é a tarefa de repensar conceitos do indivíduo e da comunidade e a relação de cada instituição que tornam possível a vida organizada no planeta.

Aqueles que encontraram no desenvolvimento um campo distinto de esforço, em meados do século XX, estão convencidos de que o mundo era essencialmente povoado por dois tipos de indivíduos. De um lado foi colocada a vasta maioria da humanidade, cujas pessoas, dependendo da oportunidade, seria considerada como atrasada, letárgica, presa em tradições, limitada pelas demandas da extensão familiar e da comunidade, dirigida por tabus, contentando-se com muito pouco e carecendo de iniciativa. No outro lado situam-se "os homens modernos" - e eram homens - enérgicos, ativos, trabalhadores, disciplinados, automotivados e racionais. O desenvolvimento objetiva mudar gradualmente o primeiro neste segundo grupo. Cinqüenta anos mais tarde, o pensamento sobre os habitantes do planeta tornou-se algo muito mais sofisticado e a maior parte da forma de conduta do homem moderno ficou sujeita a um severo questionamento. O individualismo incontido passou a representar um problema assustador para a sociedade e para a natureza e um liberalismo excessivamente autoconfiante provou ser um terreno fértil para o crescimento do desespero e confusão. A necessidade de um entendimento mais claro sobre os direitos e responsabilidades do indivíduo tornou-se uma preocupação geral.

Mantendo tais pontos de vistas bem definidos sobre o indivíduo, os primeiros pensadores sobre desenvolvimento mostraram notável ambivalência sobre a noção de comunidade - mas até então o conceito havia estado em crise por décadas no Ocidente e seu papel e sua natureza no mundo moderno não estavam bem definidos. Assim, a despeito dos esforços heróicos de uma variedade de programas, a vida comunitária se desintegrou e as estruturas tradicionais da sociedade desabaram, sem serem substituídas por instituições capazes de manter a comunidade unida. Por algum tempo parecia que pequenas comunidades, especialmente aquelas em áreas rurais, estavam destinadas a desaparecer e que a única opção aberta aos seres humanos era viver em cidades superpopulosas e estagnadas. Então, subitamente, os avanços extraordinários na tecnologia da comunicação nos anos recentes começaram a introduzir elementos inesperados no quadro. A necessidade de centralizar, característica da industrialização do passado, rapidamente diminuiu a ponto de tornar-se possível afirmar que a uma comunidade relativamente pequena, se levada a participar de um esforço coletivo e conectada globalmente a um enorme reservatório de informações, podia ser uma alternativa viável para um número cada vez maior de pessoas. É evidente que o conceito de comunidade também precisa de uma redefinição.

A idéia que gostaria de colocar é que novas definições de indivíduo e de comunidade surgirão somente se estivermos dispostos a re-examinar em profundidade os conceitos de autoridade e poder. Adicionalmente, ao ser o desenvolvimento intimamente relacionado com o conhecimento, novas percepções sobre a natureza da autoridade e poder surgirão de um diálogo entre ciência e religião.

Poder e Autoridade

No capítulo de abertura deste documento, expressei certos receios sobre a forma como o poder tem sido compreendido e utilizado através do período da infância da humanidade e subseqüentemente durante sua adolescência. Argumentarei, aqui, que com o aparecimento da maturidade o poder seria visto, primariamente, como um atributo do indivíduo e da comunidade local - poder de realizar, sob o impulso do espírito humano, as tarefas exigidas para a criação de uma civilização que atenda aos seus interesses comuns.

Para este conceito de poder tornar-se amplamente aceito, necessitamos de um novo entendimento do que significa exercer a iniciativa individual e sua participação nos empreendimentos coletivos. A iniciativa individual não é o mesmo que a busca de qualquer coisa que o coração deseje, ou uma noção indefinida decorrente de alguma definição romântica de criatividade. Para ser frutífera e para evitar a alienação resultante de um individualismo irrestrito, a criatividade precisa ter disciplina e a iniciativa deve mover-se no sentido da unidade.

A disciplina precisa ser mantida pela força da convicção interior. Quando é imposta, somente conseguirá seus objetivos abafando o fogo da criatividade. No entanto, seria também incorreto ver a disciplina interna simplesmente como um produto da vontade individual. A alma humana manifesta seus poderes latentes ao aprender a submeter-se a uma autoridade superior, fundamentalmente a autoridade das leis materiais e espirituais que governam a existência. Essas leis são tratadas nos contextos da ciência e da religião. Entendê-las não somente influencia a consciência individual como também dá significado à autoridade que a sociedade concede às instituições. Esta última é, em sua essência, a autoridade que canaliza os poderes do indivíduo e do grupo para alcançarem o bem comum, uma autoridade que muitas vezes excede seus direitos, degenerando-se no poder de controlar e manipular.

O conflito entre o indivíduo e as instituições da sociedade - um clamando sempre por maior liberdade e o outro demandando cada vez mais submissão completa - tem sido uma característica da vida política através dos tempos. O modelo de democracia vigorosamente propagado no mundo de hoje aceita naturalmente este estado de conflito, mas tenta fixar os parâmetros para que os direitos individuais não sejam transgredidos no processo. Além de qualquer dúvida, a versão de democracia até agora alcançada é preferível aos sistemas despóticos de governo aos quais a humanidade tem se submetido muitas e muitas vezes. Mas o processo histórico de democratização não termina aqui, neste seu atual estágio de imaturidade; a interação entre a autoridade institucional para decidir e o poder individual de realizar apenas começou a se conscientizar de suas possibilidades. Melhores formas de organização e ação surgirão, mas somente quando as instituições cessarem de ser vistas como instrumentos de imposição à sociedade de pontos de vistas de uma facção particular, seja democraticamente eleita ou não. Na extensão em que as instituições tornarem-se canais através dos quais os talentos e as energias dos membros da sociedade possam ser expressados a serviço da humanidade, um senso de reciprocidade crescerá, gerando o apoio e ajuda dos indivíduos às instituições e estas, por sua vez, prestarão atenção sincera à voz do povo a cujas necessidades servem.

A existência social, naturalmente, não pode ser reduzida a um intercâmbio de ações entre indivíduos e instituições. Eles somente podem existir e interagir em um ambiente do qual possam obter o sustento e a riqueza que precisam para poderem melhor dedicar seus esforços de vida. Assim, um novo entendimento de poder e autoridade terá implicações profundas para a natureza da vida comunitária daqui por diante. Sobre a comunidade pesa o desafio de prover condições às vontades individuais de se unirem, onde os poderes sejam multiplicados e se manifestem em ações coletivas e onde possam surgir expressões mais elevadas do espírito humano.

Com estes breves comentários sobre o caráter dos três protagonistas do desenvolvimento, passo agora a tratar do assunto da capacitação, primeiro para considerá-lo em termos gerais e então analisando algumas capacidades específicas que considero indispensáveis para o progresso de um povo.

Tomada de Decisão e Implementação

Capacitação, como proposto aqui, implica tornar possível ao indivíduo manifestar seus poderes inatos de uma forma criativa e disciplinada. Significa a formação de instituições que possam exercer autoridade para que esses poderes possam ser canalizados com vistas à elevação das condições de vida da humanidade e para que o desenvolvimento da comunidade se realize em um ambiente conducente ao enriquecimento da cultura. O desafio de todos os três é aprender a usar os recursos materiais do planeta e os acervos intelectuais e espirituais da raça para o progresso da civilização. Enfrentar este desafio implica também uma mudança fundamental do processo de tomada de decisão, tanto individual como coletiva. Hoje, a competição irrestrita, a obsessão pelo poder e o abuso da autoridade viciam a forma como são tomadas as decisões. O processo sofre de dois excessos: apatia ou superentusiasmo, apego à técnica ou à improvisação, devoção à minúcia ou a propensão para tratar apenas de abstrações. O que se faz vitalmente necessário é a forma de operação na qual o sistema de aprendizado seja envolvido.

Para facilitar a discussão aqui e no restante do documento, desejo apresentar meus argumentos sob o contexto de uma região de um país, uma região que abarca várias pequenas cidades, muitas vilas e possivelmente uma ou mais grandes cidades. Tais regiões, normalmente com identidades ecológicas, culturais e políticas bem definidas, com um governo estabelecido e com algumas organizações da sociedade civil - todas tendo partes distintas a realizar.

Podemos seguramente assumir que a maioria dos habitantes de nossa região típica raramente tem voz nas decisões substanciais que afetam sua vida coletiva - por exemplo aquelas relacionadas com a infra-estrutura física, a natureza e o volume da produção agrícola e industrial, tecnologia, educação ou comunicações. Essas decisões são tomadas externamente à região ou por uma elite regional, a qual, dependendo da extensão da descentralização alcançada no país como um todo, exercem mais ou menos um papel importante na estrutura geral de poder através da qual a nação é governada. A própria elite está dividida em numerosas facções, isto sem considerar se os arranjos políticos são de natureza democrática ou não.

A região que aqui descrevo não é uma onde inexistam processos políticos. A democratização, com seus ciclos recorrentes de triunfos e revezes, tem estimulado o surgimento de instituições que tratam da vida do indivíduo em pequenas cidades e vilas. Como a aceitação dos valores de descentralização tem aumentado, o grau de autoridade bem pode ter se desenvolvido nessas instituições locais. Mas o que está na ordem do dia é a necessidade de um sistema político que leve à participação das pessoas na administração de seus próprios assuntos. Na realidade, mesmo os conselhos eleitos nas menores vilas funcionam como instrumentos nas mãos de pessoas indicadas por diferentes chefes políticos. Estes utilizam suas ligações políticas para levar recursos às pessoas, as quais, em troca, garantem-lhes apoio, cada vez maior na forma de votos, à medida que mais e mais nações se juntam àquelas que promovem eleições democráticas.

A despeito das imperfeições existentes, seria enganoso considerar a situação nessas regiões como de desesperança. A elite não é inacessível às reformas e ao fato de que indivíduos de integridade comprovada alcancem posições de influência. A corrupção é geral, mas existe freqüentemente também um desejo genuíno de criar prosperidade para as massas. O altruísmo e a ganância caminham lado a lado em constante oposição mútua.

Uma grande fonte de esperança para a região é a ascensão gradual das organizações não-governamentais na área do desenvolvimento. Elas já trabalham em todos os cantos do mundo, um acervo de serviço que já duram décadas. Muito de seu trabalho é realizado através de organizações populares - cooperativas, associações, clubes e outras - dotando a sociedade civil com as indispensáveis estruturas políticas e econômicas. Por mais importante que seja o trabalho que realizam, porém, mesmos esses arranjos institucionais não substituem um imprescindível sistema apropriado de governo. Na ausência de tal sistema, também as entidades não-governamentais tendem a reforçar o poder dos grupos de interesse locais, prontos que estão para absorver os recursos de quaisquer projetos de desenvolvimento que surgirem.

Efetuar uma mudança fundamental nestas condições, envolve claramente a criação e fortalecimento de autênticas estruturas de governo, especialmente em nível local. Mas onde - a pergunta deve ser feita - devem os pensadores desenvolvimentistas buscar aqueles conceitos que poderiam ajudar as instituições inexperientes a se engajar em um bom processo de tomada de decisão e levá-lo à respectiva implementação? Seria ingênuo esperar que a política, conforme praticada na região, seria uma fonte de inspiração proveitosa. Enfim, o propósito não é aprender a manipular, acumular riqueza material e consolidar grupo de poder em detrimento dos outros e ser habilidosos jogadores em um interminável jogo que tem levado ao empobrecimento das massas.

O que, então, dizer dos processos característicos dos países materialmente avançados? São eles modelos que devem ser emulados por outros países do mundo? Incorporam eles os valores necessários para possibilitar aos habitantes de nossa região, até agora marginalizadas das decisões que governam sua vida coletiva, construir um caminho de progresso por si mesmos? Seriam as contribuições passadas para a riqueza de algumas nações, de parte desses políticos, provas suficientes de sua capacidade para produzir as transformações que irão engendrar a prosperidade material e espiritual da raça humana como um todo?

Se formos seguir o modo de ser de nosso tempo, ficaríamos entusiasmados com a última alternativa na proporção em que medidas foram instituídas para evitar corrupção. Atribuir as inadequações óbvias dos atuais modos de conduta dos políticos unicamente à corrupção, porém, é ignorar profundamente os defeitos enraizados em determinadas concepções fundamentais. Por exemplo, é verdade que o uso da força física, um bem aceito instrumento de autoridade através da história, tem perdido credibilidade e interesse nos anos recentes. Mas a democracia, definida como um processo que separa as pessoas de acordo com os interesses, talentos e ideologias, as quais, então, "negociam" decisões, continua a apoiar a violência. O propósito de cada grupo é vencer. Os meios para alcançar os fins propostos são as vantagens econômicas e a mobilização de apoio para superar o oponente. Tão forte é este legado de "o que vence é que está certo", que essencialmente determina a forma como a justiça é administrada. Devemos aceitar isso como a realização do coroamento da evolução da tomada de decisão coletiva no planeta?

Em vez de definir a tomada de decisão coletiva como a maestria da arte de manipulação política, a estratégia de desenvolvimento faria bem em vê-la como a investigação coletiva da realidade e a análise racional de opções. Tal processo está aberto ao uso de métodos que, embora não necessariamente sofisticados ou complexos, são fundamentalmente científicos. Na verdade, durante anos os programas voltados à ação comunitária têm criados métodos altamente imaginativos para detectar necessidades, analisar tendências casuais, avaliar cursos de ação, planejar e monitorar. É verdade que alguns desses esforços envolvem uma aplicação de técnicas um tanto negligentes. Mas também existem programas que têm claramente ajudado as pessoas a adquirirem as ferramentas intelectuais para tratar com a tomada de decisão coletiva, entendida como a investigação científica da realidade. Os aspectos particulares desses métodos não são tratados aqui. O importante é que o valioso conhecimento já existente nas ciências sociais poderá ser incorporado na corrente principal de atividades, mas a estrutura decisória deverá ser favorável a esta dimensão do desenvolvimento.

Que o poder da ciência pode ser utilizado para tratar do objetivo dos mecanismos efetivos para a tomada de decisão é apenas metade da história. O sucesso de um processo consultivo que assume as características da investigação da realidade e não se degenera facilmente em conflito e jogo de poder, depende também das qualidades espirituais dos participantes. Honestidade, franqueza, tolerância, paciência e cortesia são algumas dessas qualidades. Fazer uma lista de tais atributos não é difícil. A questão é como desenvolvê-los. Que força pode dotar as pessoas com a capacidade de se oporem às suas próprias paixões, a aderirem à verdade mesmo quando for contra seus interesses pessoais e aceitar a disciplina que exige tanto coragem para expressar uma opinião franca como a sabedoria para tornar-se um ativo participante de um consenso? Claramente, esta força interna é religiosa em natureza.

Insistir na aquisição de qualidades que uma investigação desapaixonada da realidade demanda não é ignorar o interesse pessoal. Nem pode alguém negar as dificuldades para alcançar um consenso sobre assuntos que afetam o bem estar dos participantes em um processo consultivo. Tudo o que está sendo solicitado é que as pessoas se utilizem dos recursos da ciência e da religião para o desenvolvimento de órgãos de tomada de decisão e das habilidades deles exigidas quanto às suas funções na sociedade. Tais funções incluem a capacidade de manter uma percepção clara da realidade social e das forças que nela operam; detectar algumas oportuni- dades oferecidas em cada momento histórico; utilizar apropriadamente os recursos da comunidade; consultar livre e harmoniosamente como um corpo consultivo e com a anuência de todos os seus participantes; saber que toda decisão tem uma dimensão tanto espiritual quanto material; chegar a uma decisão após as consultas; ganhar a confiança, o respeito e o apoio genuíno daqueles cujas vidas são afetadas pelas decisões; usar de forma efetiva as energias e os diversos talentos dos recursos humanos disponíveis; integrar a diversidade de aspirações e de atividades dos indivíduos e grupos em um movimento positivo e progressista; construir e manter a unidade; apoiar os padrões de justiça e implementar as decisões com abertura e flexibilidade que evite todo traço de conduta ditatorial.

Mesmo uma análise superficial dessas habilidades sugere a necessidade de se recriar os órgãos de tomada de decisão de nossa região como organizações de aprendizado. O que está em risco é a transformação do modo atual de governar, baseado em conceitos tradicionais de poder e autoridade, transformá-lo em um novo modelo, que tenha uma postura genuína de aprendizado. Não há como negar que a tarefa demanda comprometimento com princípios e o reconhecimento de que os projetos de desenvolvimento raramente administram para unir e utilizar a participação daqueles aos quais buscam servir. Porém, sinceramente, não será a mudança de governar pela força, para uma administração por aprendizado, uma das características distintivas da passagem da humanidade da infância à maturidade?

A Universidade

Para que os esforços de desenvolvimento operem completamente como uma forma de aprendizado, é necessário algo mais que o aprendizado experimental das comunidades e organizações. Toda região em desenvolvimento precisa de uma instituição devotada à geração, aplicação e propagação formal do conhecimento. Referir-me-ei aqui a essa instituição como a universidade. A extensão em que esta universidade assumirá as tarefas tradicionais a ela determinadas - oferecer educação superior e realizar pesquisas nas fronteiras do esforço científico moderno - dependerá das condições específicas da região em consideração. No contexto do desenvolvimento como capacidade construtiva, suas funções essenciais são pesquisa, ação e capacitação relacionadas com o inteiro conjunto de processos da vida social, econômica e cultural da população à qual serve. O que está sendo sugerido não é uma mera atividade acadêmica, mas sim um trabalho de pesquisa realizado com a participação da população nos próprios espaços onde ela está engajada, em atividades como produção agrícola e industrial, mercado, educação, socialização de valores e enriquecimento cultural.

Em sua relação com o desenvolvimento regional, então, a universidade é uma instituição presente em quase todos os níveis de ação social, acompanhando a população, sistematizando o conhecimento existente, gerando novos conhecimentos, incorporando os resultados do aprendizado sistemático em programas de educação formal e não-formal e provendo discernimento e uma perspectiva bem clara dos órgãos de tomada de decisão. O estabelecimento de tal instituição e a definição de seu modo de operar são componentes cruciais da criação de capacidades em qualquer região - um desafio que exige criatividade e a habilidade de inovar. Os modelos tradicionais de uma já estagnante educação superior têm pouco a oferecer. Novos parâmetros precisam ser estabelecidos tanto para a pesquisa quanto para a ação. A meta é criar um espaço social, no qual cada tipo de estrutura - a fazenda, a fábrica, a escola - sirva como um centro dinâmico de aprendizado.

Desenvolvimento, Transferência e Adoção de Tecnologia

Uma das tarefas mais necessárias diante das pessoas de uma região, tarefa que exige a atenção constante da universidade e dos órgãos de tomada de decisão em diferentes níveis, é a de fazer escolhas tecnológicas apropriadas. O tema tecnologia tem sido inseparável do discurso de desenvolvimento desde seu início e agora está sendo examinado de todos os ângulos possíveis. Um conjunto de adjetivos - grande ou pequeno, com ênfase no capital ou trabalho, moderno, avançado, intermediário, nativo, eficiente energeticamente, ambientalmente sustentável - tem sido usado para descrever quão apropriada é a tecnologia em uma ou outra de suas várias formas. Seus processos associados de transferência, inovação, pesquisa e desenvolvimento, adaptação e difusão aplicáveis em muitos campos do esforço humano têm sido escrupulosamente analisados e seus resultados debatidos de forma completa. O intercurso entre tecnologia e os fatores determinantes da vida econômica, cultural, política e social de uma nação, tem sido também estudado em detalhes. É intrigante, então, o fato das discussões sobre tecnologia no campo do desenvolvimento terem continuado tão inconclusivas. Na maioria dos países desenvolvidos, a formulação de políticas científicas e tecnológicas continua a ser um enorme desafio. Toda vez que o tópico da tecnologia é destacado, um conjunto de outros fatores, principalmente econômicos e políticos, é apresentado e o resultado é que tal enfoque acaba sendo desconsiderado.

À parte da complexidade dos assuntos envolvidos, o avanço tecnológico é em si mesmo um tema elusivo, pois é tanto uma meta de desenvolvimento como um meio de realizá-lo. Muito da modernidade é definido em termos do uso da moderna tecnologia. Isso não reflete uma incompreensão, já que a mudança tecnológica é inerente ao progresso material. Assim, quando a água corrente é levada a uma vila, os habitantes podem com razão afirmar que o acesso a esta nova tecnologia constitui um passo avante no desenvolvimento. Pelo mesmo critério, a introdução de computadores em uma sociedade pode ser considerada uma contribuição ao seu progresso. O problema surge quando o elo essencial entre o progresso material e espiritual é ignorado e a civilização material acaba conseguindo ir avante com pouca ou nenhuma atenção dada à realidade espiritual. O papel da tecnologia como um meio de prover soluções às mais altas aspirações escapa à visão. Em vez disso, a tecnologia torna-se uma força autônoma e misteriosa que define como será o futuro. As pessoas se perdem neste pano de fundo, como se não tivessem outra escolha a não ser seguir qualquer tendência estabelecida pela invenção de novas tecnologias.

Obviamente, a solução para o dilema é não negar o valor intrínseco do progresso tecnológico, muito menos perpetuar noções defeituosas de espiritualidade e harmonia com a natureza. O que é preciso, na verdade, é proporcionar aos habitantes de cada região a capacidade para fazer escolhas cada vez mais válidas, tanto individual como coletivamente, relativas ao desenvolvimento, transferência e adoção da tecnologia.

Em um mundo acostumado a distorcer as palavras para justificar interesses econômicos, a capacidade de fazer escolhas tecnológicas apropriadas poderia facilmente tornar-se sinônimo de possuir os atributos de um bom consumidor. Claramente, não é isso o que pretendemos. O tipo de capacidade em discussão representa um conjunto complexo de atitudes, convicções, compreensões, habilidades e hábitos - que caracterizam a conduta dos indivíduos e organizações em sua interação diária com a tecnologia.

Um forte determinante de tal conduta é o que pode ser chamado de uma cultura científica e tecnológica. A inabilidade da estratégia de desenvolvimento em tratar deste aspecto da cultura em buscar alcançar uma mudança através dela - preferindo focalizar-se em fragmentos da ciência e acredito que da tecnologia modernas - é responsável por muitos fracassos seus passados. Acredito, seja a universidade a instituição capaz de remediar a situação, introduzindo na região um processo dinâmico de aprendizado sobre tecnologia em vários níveis.

Como definido anteriormente, a universidade deve atuar em uma variedade de espaços sociais, desde os círculos intelectuais mais sofisticados até as fazendas e fábricas da região à qual serve. Esses centros de aprendizagem podem ser utilizados para promover um discurso sobre ciência e tecnologia equilibrado em seu enfoque de mudança. A defesa militante de tradições quase sempre caracteriza uma expressão de medo por parte das massas e daqueles que as controlam. O desdém e a negligência para com os sistemas de conhecimento existentes entre as pessoas de uma região em desenvolvimento têm sua raiz na insegurança - neste caso, a insegurança daqueles que desejam impor as mudanças; entre os resultados indesejáveis desta forma especial de arrogância estão a alienação e a resistência. A universidade tem de se esforçar para cultivar uma relação saudável entre a herança cultural da população, cuja educação nutre - e os frutos da ciência moderna, permitindo assim que as pessoas tenham acesso ao novo conhecimento gerado pela interação dos dois.

Para que tal senso de propriedade seja significativo, deve ser acompanhado pela compreensão de que a tecnologia não é neutra. A noção de que a tecnologia pode ser boa ou ruim, dependendo de como é usada, é valida, mas somente dentro de um contexto muito limitado: claramente, uma faca pode ser usada para matar ou cortar pão. Mas a um nível mais fundamental, a tecnologia traz consigo uma ideologia e tem voz ativa no modo como a vida individual e social deve ser organizada. A escolha tecnológica influencia todas as outras escolhas feitas sobre a qualidade e direção de vida em uma região. Ela mesma é uma expressão de valores - políticos, sociais, culturais e, no final das contas, também morais e espirituais. A tarefa da universidade seria, então, infundir esta compreensão no pensamento geral das pessoas, de tal forma que venha a se tornar um elemento indiscutível da cultura.

Criar uma compreensão adequada da natureza da tecnologia na população de uma região constitui apenas um passo inicial para capacitá-la a enfrentar a escolha tecnológica, não como uma vítima desamparada do mercado, mas como uma entidade consciente, responsável por seu próprio destino. A universidade tem de buscar incessantemente a meta de promover um discurso dinâmico sobre ciência e tecnologia na região, ciente de que, a qualquer momento, as forças de propaganda política e comercial podem romper o processo de aprendizagem colocado em ação. O objetivo é não transformar programas de desenvolvimento em cursos de filosofia, perdendo-se em interminável debate acadêmico; tecnologias selecionadas têm de ser disseminadas amplamente e aplicadas de forma apropriada para que o progresso material se torne realidade. O desafio é assegurar que tal disseminação não ocorra como uma série de eventos isolados cujas implicações para a transformação social jamais são levadas em consideração.

Em uma região, pelo menos dois tipos de esforços deveriam ser incrementados para que a tecnologia possa ser um processo deliberadamente aberto ao escrutínio de uma população consciente. Primeiro, deve-se caminhar na direção de tornar explícitos os valores que estão subjacentes à operação de cada conjunto de produtos, instrumentos, processos e procedimentos inter-relacionados introduzidos na região. Infelizmente, em anos recentes, a palavra "valor" , como vários outros importantes termos incluídos no discurso social em moda, tem sido tão negligentemente considerada que se tornou quase inútil. O tipo de investigação do assunto aqui proposto implica uma oposição corajosa a uma cultura agressiva que não tem condições de lidar corretamente com questões de valores, podendo, conseqüentemente, reduzi-la a um assunto de caráter pessoal. Como poderia ser de outra forma, em um vazio moral e espiritual no qual propósito e identidade representam nada mais que um derivativo da própria atividade? Em contrapartida, em uma cultura ainda presa às suas raízes religiosas, surgem valores decorrentes dos ensinamentos espirituais que iluminam a vida individual e coletiva e definem o propósito do esforço construtivo.

Segundo, deveriam ser adotadas medidas para desenvolver na região a habilidade para compreender a ciência que há por trás da tecnologia propagada. Mais especificamente, pelo menos parte do texto científico responsável para cada passo dado no avanço do progresso tecnológico deveria ser introduzido no sistema de conhecimento da região. O grau de sofisticação com que isso é feito depende da natureza da tecnologia, da complexidade do texto científico em particular e das realizações antecedentes da população. Para alcançar esta meta, a universidade tem vários meios à sua disposição, desde publicações e filmes que popularizam temas científicos particulares, até currículos formais para todos os níveis educacionais têm também em sua estrutura de pesquisa, se não o máximo de substância, pelo menos o bastante dela para tirar a população da posição de mera receptora e usuária de tecnologia e colocá-la como sua efetiva proprietária.

Além da preocupação com a cultura, a dimensão tecnológica de criar capacidades em uma região tem implicações claras para os órgãos independentes encarregados do desenvolvimento, adoção e propagação da tecnologia. Essas agências precisam ser fortalecidas para estar em condições de assumir suas inúmeras responsabilidades, que incluem avaliar as exigências tecnológicas do processo de desenvolvimento; avaliar os recursos naturais da região como também os subprodutos de atividades em andamento e determinar como eles devem ser utilizados; planejar e monitorar a transferência de tecnologias específicas e avaliar seus efeitos; realizar pesquisas de alta qualidade e soluções tecnológicas para problemas concretos; além de suprir as necessidades de educação técnica. Todas estas tarefas devem ser executadas com conhecimento pormenorizado da ecologia da região e uma compreensão profunda da realidade social da população. Para assegurar que a aprendizagem realmente ocorra, a universidade precisa acompanhar as agências e instituições envolvidas nestes processos.

Da imensidão das tarefas acima descritas, fica claro que nenhum programa isolado de desenvolvimento focado em uma região específica pode dotar sua população com a capacidade de fazer escolhas tecnológicas sãs. A tecnologia é uma questão global e seu papel no avanço da civilização deve ser explorado e tornado claro dentro deste contexto. O discurso sobre ciência e tecnologia - do qual vários elementos foram aqui mencionados - tem de se estender além dos limites regionais. A universidade mencionada nestas páginas deve ser apenas um componente de uma rede maior de instituições de aprendizado que operam em cada sociedade, independente de seu grau de realizações materiais. O que realmente é preciso, é uma investigação aberta, mundial, de assuntos relacionados à escolha tecnológica, não uma investigação facilmente compartilhada por grupos privilegiados que buscam fixar a direção do progresso material e receber uma parte gigantesca do poder por ele gerado. Este esforço vigoroso deve ter enfoque científico no tratamento de problemas, mas também deveria poder utilizar livremente a herança religiosa da humanidade para esclarecer questões de valor e propósito. A atual revolução nas comunicações torna tal esforço global inteiramente praticável.

A própria revolução abre agora possibilidades para uma rápida mudança tecnológica em todo o mundo de uma forma inconcebível, quando, várias décadas antes, nasciam os primeiros esforços de desenvolvimento no mundo.

A Educação das Crianças e dos Jovens

Desde o início, aumentar a habilidade dos governos do mundo em prover educação aos seus cidadãos tem sido um componente essencial na estratégia de desenvolvimento. Inicialmente, a ênfase era dada, em grande parte, à infra-estrutura, mas, no decorrer dos anos, outros assuntos relacionados a currículo, administração, tecnologia educacional, capacitação de professores e até mesmo a relação entre a escola e a comunidade foram também sendo considerados. Deve-se reconhecer que um progresso enorme foi feito nessas áreas inter-relacionadas de esforço educacional, particularmente no contexto da universalização da educação primária. No entanto, há um sentimento difundido de que, apesar dessas marcantes realizações, a educação não está podendo cumprir com suas promessas e que, na verdade, os sistemas educacionais estão em crise em toda parte.

Uma análise mais completa dos males que afligem a educação moderna vai além do escopo deste trabalho. Mas um ponto precisa ser tratado brevemente para que a linha de argumentos aqui apresentada fique bem clara. À parte de um número relativamente pequeno de estudantes afortunados que freqüentam escolas de alto nível, a maioria das crianças e dos jovens recebe hoje em dia uma educação cada vez mais superficial, que sistematiza a fragmentação da mente dos estudantes, fazendo crescer, desta forma, a fragmentação de toda a sociedade. A solução para o problema não pode ser buscada simplesmente através de melhor administração dos parâmetros e relações que envolvem a escola, de uma melhoria do ensino - aprendendo a dinâmica dentro e fora da sala de aula, aplicando a mais recente tecnologia ou elaborando um fluxo de documentos que definem um jogo impressionante de objetivos para todo curso e toda área de estudo. Estas medidas são importantes em si mesmas e certamente criam a imagem de um movimento progressivo sempre envolvido com a reforma educacional em todos os países, um após o outro. As raízes da crise que aflige a educação, no entanto, encontram-se na forma como o conhecimento é entendido e tratado em muitos sistemas educacionais.

Na maioria das escolas, os currículos são organizados por assuntos. Embora enfoques mais avançados permitam atividades educacionais que buscam integrar dois ou três assuntos, a escolha do conteúdo de todo curso é feita dentro de uma estrutura que divide o conhecimento em componentes distintos e desconexos. A divisão em disciplinas é vista como virtualmente inerente ao conhecimento que está definido em termos de seus fragmentos - como a soma de todas as disciplinas em ciências naturais e sociais, artes e ciências humanas e campos profissionais como a engenharia e medicina. Ano após ano, os estudantes acumulam conhecimento em categorias separadas, sem se dar conta das relações essenciais que unem as partes, talvez sem ter ao menos idéia da interconexão subjacente à existência social, menos ainda do universo material.

O problema é exacerbado pela ênfase que é colocada na assimilação de fatos em vez de compreensão de conceitos profundos. O aprendizado superficial é categoricamente condenado, mas é apenas brandamente substituído pelo domínio de técnicas de manipulação da informação. Até mesmo a pedagogia atrativa de aprender fazendo é distorcida por uma atitude exagerada de atividade recreativa. Em nenhuma parte está isto mais aparente que nos enfoques denominados modernos para a educação da ciência onde, em nome da descoberta individual, a cogitação é apresentada como a essência da investigação científica, mas a avaliação da estrutura complexa da ciência como um corpo crescente de conhecimentos recebe pouca atenção. A moralidade, quando é considerada, é tratada como outro fragmento, outro assunto discreto. A noção de serviço à humanidade é apresentada de forma mínima e o estímulo ao desenvolvimento de uma consciência espiritual é praticamente ignorado. Uma dicotomia entre teoria e ação resulta em uma tendência para ensinar habilidades práticas e manuais a alguns e o ensino através de livros a outros, capacidade de participar em planejamento e tomada de decisão, a poucos, e de levar a cabo as ordens dadas, à maioria. Nessas circunstâncias infreqüentes quando aprender a pensar recebe determinada prioridade, assume-se essencialmente que o método analítico preenche as exigências. O resultado é uma população de indivíduos com algum treinamento prático, que crescentemente podem focalizar-se em partes mais minuciosas da realidade, mas incapazes de uma visão maior, particularmente num contexto histórico. Não é de surpreender que quando tais indivíduos alcançam posições de liderança, ficam propensos a fazer julgamentos sem se dar conta das implicações morais e éticas envolvidas. Eles são capazes de negar a si mesmos o mais nobre dos sentimentos humanos em nome de fins escusos ou por conveniência. Somente agora começam a ser reconhecidas a destruição provocada em nosso ambiente físico e social por tais mentes, aparentemente polidas e ostensivamente educadas, com alarmantes e estreitas margens de entendimento.

Hoje, a tarefa de ampliar o alcance da educação felizmente desfruta de apoio geral e entusiástico. Se a avaliação precedente do drama por que passa a educação é de todo plausível, há que se reconhecer que a reforma do sistema educacional tem de ter a prioridade mais alta nos planos de desenvolvimento de nossa região típica. Aqui novamente, em um enfoque que coloque a aprendizagem no âmago de todos os esforços para transformar a sociedade, a universidade tem de exercer um papel preponderante, desenvolvendo um processo educacional apropriado entre a população à qual serve. Por sua própria natureza, a universidade está preocupada com a educação a níveis mais altos. O que dela se requer, no contexto de tão específica dimensão do processo de capacitação, é um esforço combinado para desenvolver sistematicamente o conteúdo e os métodos de três programas de educação: a educação pré-escolar, a educação básica, para crianças de 6 a 14 anos de idade e a escola secundária, que se focaliza no desenvolvimento intelectual e moral de jovens de 15 a 18 anos de idade.

O maior desafio da universidade neste sentido é unir o conhecimento pertinente à criação de programas pedagogicamente fortes, que respondam às exigências de cada fase do desenvolvimento intelectual e emocional dos estudantes. Em uma era de progresso acelerado da ciência e da tecnologia, ninguém negará a necessidade da especialização e aprimoramento técnico em campos bem definidos do esforço humano. Mas antes que ocorra a capacitação especializada - seja em um comércio ou profissão, ou em pesquisa e desenvolvimento - a estrutura básica da mente do estudante precisa seguramente ser considerada. A maioria dos livros texto hoje existentes parece assumir que todo estudante está sendo preparado para especializar-se nos assuntos específicos que tais textos focalizam. O resultado é não ocorrer nenhum desenvolvimento intelectual sólido nem um conhecimento razoável de qualquer disciplina. Uma indicação da seriedade do problema é a preocupação geralmente expressa em todos lugares por universidades sobre a qualidade da educação recebida pela maioria dos seus calouros.

A situação exige uma nova e séria atenção no universo do conhecimento, em busca de um modo novo de reunir seus diversos elementos em currículos que respeitem a totalidade do conhecimento, prevendo especializações em uma fase posterior. O foco de cada conjunto de atividades educacionais relacionadas deveria ser o desenvolvimento de uma ou mais capacidades - científica, artística, técnica, social, moral e espiritual - dotando o indivíduo com a compreensão de conceitos, conhecimento de fatos e domínio de métodos, como também habilidades, atitudes e qualidades que ele ou ela precisam para levar uma vida produtiva. Especificamente, nesta época de transição, é imperativo dotar os jovens de um duplo propósito moral: encarregar-se de seu próprio crescimento intelectual e espiritual e fazer contribuições significativas para a transformação da sociedade.

A reivindicação aqui exposta, para a qual tenho ampla comprovação, é que um processo educacional organizado em torno do desenvolvimento de um conjunto de capacidades cuidadosamente selecionadas, pode dar muito mais conhecimento às crianças e jovens, do que programas que visem cobrir a gama natural de habilidades e matérias estudadas. O cultivo de tais capacidades exige demandas especiais de cada um dos três estágios do empreendimento pedagógico. A pré-escola precisa enfatizar o desenvolvimento do caráter. Deveria prestar atenção à estrutura emocional de cada criança e deveria ajudar na aquisição das qualidades espirituais que amoldarão as atitudes e perspectivas do/da futuro/futura jovem. Precisa ensinar alegria e liberdade, instilando-lhes autodisciplina e criando em suas mentes uma estrutura moral duradoura. Precisa fomentar hábitos de investigação e reflexão e encorajar a pronta manifestação de pensamento bem delineado e fala eloqüente. Tais objetivos estão em completa harmonia com o desenvolvimento dos vários tipos de destrezas e poderes de percepção que preocupam tantos programas pré-escolares, grandemente propagados internacionalmente.

Qualquer que seja a definição da educação básica, um nível apropriado de proficiência em tais áreas de conhecimento como matemática, ciências naturais, história, geografia, línguas e literatura, é claramente um elemento importante. Mas o enfoque aqui defendido permitiria aos sistemas educacionais ir bem além das metas bem modestas de hoje. Temos que perguntar que atributos uns 8 anos de educação deveriam ser cultivados em um adolescente de 14 ou 15 anos de idade, para lhe permitir uma transição clara da infância para a mocidade. Podemos prontamente identificar alguns que são especialmente úteis à natureza da educação prevista: a compreensão de que é principalmente o serviço à humanidade e a dedicação à unificação da humanidade que liberam poderes criativos ocultos na natureza da pessoa; a compreensão de que não somente o conhecimento de princípios, mas o exercício e aplicação da vontade são essenciais ao crescimento pessoal e à mudança da sociedade; uma convicção de que honra e felicidade não residem na busca de riqueza e poder, mas em respeito próprio e propósitos nobres, em integridade e qualidade moral; e uma disposição para analisar e um desejo para entender as características de formas diferentes de governo, leis e administração pública. A estes devem ser somados outros atributos que aumentam a efetividade social: uma compreensão adequada, pelo menos no contexto local, das preocupações com programas de progresso social em tais áreas como saúde e serviço sanitário, agricultura, artes e indústria; um pouco de desenvolvimento do poder de investigação intelectual como um instrumento de uma bem sucedida ação individual e coletiva; uma certa habilidade para analisar as condições sociais e descobrir as forças que as causaram; a habilidade correspondente para expressar idéias e contribuir para a consulta sobre os problemas da comunidade; a capacidade de participar em ações da comunidade como um integrante, humilde mas decidido, que ajuda a superar conflito e divisão e contribui ao estabelecimento de um espírito de unidade e colaboração; e um grau razoável de excelência em pelo menos uma habilidade produtiva através da qual se comprove a verdade de que trabalho é adoração quando executado em espírito de serviço.

Estes são, sem dúvida, os objetivos mais necessários para os 8 anos de educação básica. Mas um bom começo pode ser feito em cada uma dessas direções. A escola secundária, então, deve assumir a responsabilidade de assegurar que tais capacidades - relativa tanto à aquisição de conhecimento como às qualidades da mente e do espírito - se desenvolvam ao ponto em que todo homem e toda mulher possam continuar a cumprir com o papel devido a cada um deles como membros da raça humana. Porém, isto não implica que o programa da escola secundária deveria ser uma mera continuação da educação básica. Pelo contrário, a transição pede uma mudança qualitativa, particularmente em termos de rigor científico, uso de linguagem e conteúdo social, pois é nesta fase da educação que esperanças e ideais vagos, em relação ao futuro da pessoa e serviço à humanidade, têm de se cristalizar no duplo propósito moral acima mencionado. O estudante tem agora que se tornar um agente decidido de sua própria educação. Todo esforço precisa ser feito para elevar a consciência do estudante a um nível mais alto - uma consciência das ramificações das escolhas pessoais que são feitas, das forças sociais às quais a comunidade é sujeitada e da natureza dos processos históricos nos quais se está imerso.

Não há dúvida que o planejamento e implementação destes três programas representam um desafio assustador tanto para a universidade como para o sistema escolar em qualquer região. Só poderá ser resolvido se um empreendimento de desenvolvimento global estiver propenso a ajudar qualquer população e assegurar a disponibilidade tanto de imaginação criativa como de recursos humanos e financeiros. Para que isso aconteça é imperativo que aprendamos da experiência de quase cinco décadas de desenvolvimento. Novas gerações precisam ser empoderadas - ao invés de simplesmente ser instruídas - para que o desenvolvimento possa oferecer mais que soluções superficiais às crises sociais e econômicas que estão sempre ocorrendo.

Meios Materiais

Para ilustrar o desafio inerente ao processo de capacitação de uma população para fixar a direção de seu próprio desenvolvimento, apresentei uma breve análise de dois processos - um relacionado à escolha tecnológica e o outro, à educação. Um enfoque mais completo do assunto teria que falar também de outras capacidades como aquelas que tratam da informação de forma mais eficiente e precisa, em vez de responder inconscientemente à propaganda política e comercial; interagindo com outras culturas de uma forma que leve ao avanço da própria cultura da pessoa e não a sua degradação; manifestando retidão na administração pública e privada; e imbuindo a interação social de um senso agudo de justiça. Ao focalizar as dimensões tecnológicas e educacionais do processo de capacitação, como exemplos, não foi minha intenção depreciar a importância do desenvolvimento econômico. Como mencionado anteriormente neste trabalho, colocar a geração e a aplicação do conhecimento no âmago do processo de desenvolvimento não é negar a natureza indispensável dos meios materiais. O desenvolvimento, como previsto aqui, requer a multiplicação dos meios materiais à disposição das diversas populações do mundo em uma escala jamais alcançada pela raça humana.

O aumento da capacidade de uma região típica para alcançar a prosperidade material e espiritual de sua população envolve o fortalecimento de sua economia, um processo que inclui mas não é idêntico ao crescimento econômico. Tal esforço deve, certamente, acontecer no contexto de alguma forma de pensamento econômico. A busca de uma base teórica apropriada, porém, está longe de ser facilmente alcançada, em um tempo em que os conceitos fundamentais do "pensamento econômico" atual considerado como a incorporação da racionalidade já por muitas décadas - estão sendo vigorosamente questionados. A resultante perda de fé é exacerbada continuamente pela crescente crise ambiental e pela ascensão e queda de sistemas econômicos cujas performances recebem exagerados elogios, até que começam a se desintegrar e expor as reais condições sob as quais vivem suas vítimas.

As críticas às economias vigentes provêm tanto de dentro como de fora; exigem tanto uma revisão da metodologia como da estrutura conceitual de análise. De acordo com os críticos,os economistas, diferente dos cientistas em muitos outros campos, demonstram pouca vontade para examinar, de forma desapegada, a natureza de sua metodologia ou para entender suas origens. A apreciação da física clássica os inspirou a criar metáforas e métodos sem levar em conta a disparidade entre os objetos de estudo. A estrutura mecanicista de suas mentes impede que dediquem a atenção devida aos fatores cruciais como o conhecimento, propósitos e mudanças qualitativas. O conceito mais central às suas análises tem sido um "homem" imaginário, o juiz exclusivo de seus próprios caprichos e desejos, tomando decisões para otimizar sua utilidade. O mecanismo pelo qual estas escolhas "racionais" devem ser entendidas tem sido uma abstração do mercado, uma abstração bem além do que é permitido em uma prática científica razoável. E, de uma forma curiosa, tanto o mundo físico, a origem de todos os recursos materiais, como a cultura, o ambiente dentro do qual são amoldados os recursos humanos, são relegados a uma consideração secundária.

Não me sinto competente para analisar em profundidade os argumentos dos críticos e defensores da teoria econômica atual. Neste momento, porém, parece claro que os portões de uma fortaleza poderosa, até pouco tempo presumidamente inexpugnáveis, estão sendo assediados com sucesso. O que esta atividade intelectual em rápida expansão irá trazer e como afetará a estratégia do desenvolvimento, não são perguntas fáceis de responder. Mas as poucas indicações sobre a natureza do "novo pensamento econômico" são muito encorajadoras. Por exemplo, pode-se assumir seguramente que as novas economias não irão ignorar a questão dos valores ou permitir que sejam ocultas atrás do véu das conveniências externas. Apoiará o princípio da igualdade entre homens e mulheres, reconhecerá o papel e as necessidades da comunidade e deixará de promover o individualismo desenfreado. E, pode-se afirmar com certeza, prestará atenção considerável às questões relacionadas aos recursos naturais e ao meio ambiente.

Embora as novas direções que estão sendo consideradas sejam promissoras, um avanço marcante na teoria econômica não pode ser esperado em curto prazo. Em primeiro lugar - e isto é esperado de uma ciência que entrou num período de crise - o leque de opções é muito vasto, havendo uma tendência de buscar uma teoria que trate também de muitos aspectos da vida individual e da existência social. Sem dúvida alguma a humanidade precisa de uma renovação da filosofia moral. Mas, também é verdade, pelo menos do ponto de vista da estratégia de desenvolvimento e planejamento, que precisamos de uma ciência econômica que esteja diretamente preocupada com a geração, distribuição e utilização dos meios materiais. Tal ciência deve ser rigorosa sem ser reducionista. Precisará escolher métodos apropriados ao objeto de estudo e não seguir cegamente algumas impressões inadequadas da física. Deverá estar interessada em propósitos e deixar clara suas suposições e seus valores subjacentes. Acima de tudo, deve ser uma ciência capaz de modificar suas premissas progressivamente - especialmente as relacionadas com a conduta humana - à medida que desenvolve o processo de construção da civilização. Reconhecendo que as políticas que engendra têm a capacidade de mudar sistemas de valores, terá de levar em conta suas próprias interações com um objeto mutável de estudo e permitir um reexame constante dos fatos sobre os seres humanos e sobre as estruturas sociais, a partir das quais constrói seus modelos de conduta e de desenvolvimento econômico. Se for factível a existência de tal ciência é uma pergunta que espero seja considerada em futuros discursos sobre ciência, religião e desenvolvimento.

Não é propósito deste estudo fazer um comentário profundo sobre a teoria econômica. O que está sendo enfatizado é que uma estratégia de desenvolvimento, baseada em capacitação, precisa dar maior atenção às dimensões da capacidade regional que tem a ver com a criação e utilização de meios materiais - de níveis específicos de atividade econômica, como produção agrícola comercial e pequenas fazendas familiares, produção industrial em unidades de vários tamanhos inclusive micro-empreendimentos e uma ampla variedade de serviços, tanto privados como governamentais, até a formulação e implementação de políticas econômicas que permitam à região participar em uma economia global, não como uma vítima desamparada, mas como um contribuinte forte e independente. O trabalho exigido para alcançar tal fortalecimento da economia regional não é sempre complexo, quanto mais hoje quando a teoria econômica precisa passar por uma revisão completa e fundamental. Uma vez mais, a instituição cuja participação no processo é indispensável - se reconhecemos a premência do enfoque proposto neste estudo - é a universidade. Como foi bem enfatizado, a universidade é a única instituição que pode assumir as responsabilidades gêmeas de manter o progresso em andamento na busca mundial de novas teorias e de coordenar a aprendizagem nos vários espaços onde ocorre a atividade econômica na região.

Uma palavra de advertência, porém, faz-se necessária. Seria um engano dar a responsabilidade pelo desenvolvimento econômico a programas que unicamente se focalizem sobre os pobres. Indispensável à criação da prosperidade para a humanidade é a eliminação dos extremos de riqueza e pobreza. Os estrategistas de desenvolvimento, então, fariam bem em atender à declaração atribuída a 'Abdu'l-Bahá, que onde quer que se encontre grande pobreza, deve-se olhar atentamente e ver-se-á haver também riqueza extrema. Isto é verdade para uma região, para um país inteiro e globalmente para a comunidade de povos e nações.

Comentários Adicionais

A capacitação das pessoas é um assunto muito vasto, que apenas mencionei de leve nestas páginas. Os comentários seguintes oferecem novas percepções sobre o assunto.

O Conceito de Universidade

Em minhas referências sobre universidade, utilizei minha própria experiência na FUNDAEC onde a estrutura conceitual e o modo de operação da universidade rural, mencionados na primeira parte deste documento, foram desenvolvidos. Ao longo desses anos de intensa pesquisa e ação, fui me questionando freqüentemente por que teimei em usar o título de "universidade" para o que parecia ser, embora inovadora, outra organização de desenvolvimento. Espero que as idéias apresentadas neste estudo justifiquem de alguma forma o uso do termo. Basicamente, o que está sendo dito é que, no âmago do desenvolvimento de qualquer povo, deve haver um processo de aprendizagem. É sempre altamente desejável que tal aprendizagem aconteça em círculos de tomada de decisão e influentes instituições acadêmicas internacionais. Mas isto, por si só, seria insuficiente. Em cada região, também, programas de desenvolvimento têm de operar de acordo com um modo de aprendizagem, no qual a população da região assuma um papel ativo no processo. Tal aprendizagem sistemática não pode acontecer em um vazio institucional. Há necessidade da existência de uma instituição que se encarregue de prover a aprendizagem coletiva e a universidade é a indicada junto a disciplina intelectual exigida pela função.

Infelizmente, na maioria das regiões em desenvolvimento, a universidade tornou-se irrelevante à vida das pessoas; é focalizada praticamente apenas no processo rotineiro de produzir diplomados para várias carreiras. O desejo de recriar a universidade, então, surge de duas considerações. Uma, a necessidade da coordenação da aprendizagem no contexto do desenvolvimento; a outra, a necessidade urgente de salvar esta instituição fundamental da sociedade de seu estado atual de estagnação.

Tecnologia Autônoma

Enquanto refletia no tema do presente projeto - ciência, religião e desenvolvimento - reli um livro que havia influenciado significativamente meu pensamento nesta área de estudo. O trabalho é a Tecnologia Autônoma: Técnicas-fora-de-controle como um Tema de Pensamento Político, por Langdon Winner (1978). Há mais de 20 anos, quando nossa pesquisa na área de tecnologia na FUNDAEC tinha avançado consideravelmente e estávamos ansiosos por compartilhar nossos resultados e discernimentos com outras instituições, a análise rigorosa e completa de Winner foi valiosa para mim.

Estava claro para mim, na ocasião, que apesar da grande popularidade do movimento da tecnologia-apropriada havia uma tendência geral para tratar da tecnologia apressadamente e não na profundidade necessária. Os argumentos de Winner me convenceram de que devíamos muito desta situação infeliz à idéia difundida de que a tecnologia era uma força autônoma que induz mudança na sociedade de uma forma além do controle dos seres humanos. Alguns comemoraram a operação desta força, mas outros lamentaram. Ambos os grupos, porém, eram vítimas da paralisia sutil da idéia que tal convicção produz em todos aqueles que a ela se submetem. Tal compreensão me fez ver a enormidade da tarefa que era persuadir os programas de desenvolvimento a se engajarem na construção da capacidade de fazer escolhas tecnológicas nas populações que serviam - uma noção que já estávamos utilizando na FUNDAEC - e abandonar o hábito de buscar soluções aos problemas causados por mudanças tecnológicas fortuitas em mais novos e melhores arranjos tecnológicos.

Ao expressar estas conclusões - tão verdadeiras hoje como eram quando foram escritas - Winner se apega à imagem do Frankenstein de Mary Shelley:

A melhor declaração singular de sua visão vem da página do título do livro, uma citação do Paraíso Perdido, de Milton:

Eu te pedi, ó Criador, da minha argila
Me modelar homem? Solicitei a ti,
Da escuridão promover-me?

Nestas palavras, encontra-se, a mim me parece, o ponto verdadeiramente em jogo no Frankenstein como um todo: a dificuldade em que se encontram as coisas que foram criadas sem terem recebido o cuidado necessário. O problema define bem a essência dos temas de minhas investigações.

Victor Frankenstein é uma pessoa que descobre, mas recusa ponderar as implicações de sua descoberta. É um homem que cria algo novo no mundo e então coloca toda a sua energia em um esforço para esquecer. A invenção dele é inacreditavelmente poderosa e representa um salto quantitativo na capacidade de desempenho de um certo tipo de tecnologia. No entanto, divulga isso para o mundo sem uma real preocupação de como melhor incluí-la na comunidade humana. Victor encarna um artefato com um tipo de vida só manifestado em seres humanos. Ele contempla, então, surpreso, quando volta a ele como uma força autônoma, com uma estrutura própria, com demandas aparentemente inaceitáveis. Sem nenhum plano para sua existência, a criação tecnológica impõe um plano sobre seu criador. Victor fica confuso, medroso, e totalmente incapaz de descobrir um meio de reparar os estragos causados por seu trabalho imperfeito e ainda feito pela metade. Ele nunca vai além de um sonho de progresso, a sede por poder, ou a conversa de convicção incontestável de que os produtos da ciência e da tecnologia são uma bênção valiosa para a humanidade. Embora esteja atento ao fato de haver algo extraordinário e grande no mundo, é uma enorme dificuldade convencê-lo que a responsabilidade é dele. Infelizmente, até que supere sua passividade, as conseqüências de suas ações continuarão irreversíveis, e ele continuará totalmente desamparado diante de uma realidade que jamais imaginou.

(Winner, 1978, pp. 312-313)

Tendo afirmado que o mundo inteiro enfrenta agora este mesmo problema, Winner continua:

Além destas convicções e atitudes dominantes, porém, existe algo até mesmo mais fundamental, pois existe um senso no qual toda atividade técnica contém uma tendência inerente para o esquecimento. Não é o caso de que toda invenção, seja técnica ou algum mecanismo e mesmo de organização, assim que confirmada é dada como suficiente? A pessoa não quer mais se aborrecer em construir, desenvolver ou aprender a mesma coisa novamente.

A pessoa não quer se aborrecer com sua estrutura ou com os princípios de seu funcionamento interno. O que se quer é a coisa técnica simplesmente pronta para ser utilizada. Os bens serão utilizados sem a necessidade de que se entenda como são fabricados ou como funciona sua rede de distribuição. A energia será utilizada sem a preocupação com as miríades de conexões que tornam sua geração e distribuição possíveis. A tecnologia, então, nos permite ignorar nossos próprios trabalhos. É a licença para esquecer. Em sua esfera são encaixadas as verdades dos processos mais importantes, ocultos e removidos de nossa preocupação. Isto mais do que qualquer outra coisa, estou convencido, é a verdadeira fonte da colossal passividade que se constata nas ações do ser humano com os meios técnicos.

(Winner, 1978, pp. 314-315, ênfase no original)
O Propósito da Educação

Alguns comentários feitos anteriormente podem parecer críticos demais aos sistemas educacionais existentes no mundo. Mas é difícil assumir uma posição imparcial neste assunto, sabendo quão sedentas por conhecimento encontram-se as crianças e a juventude em todas as sociedades e tendo comprovado o entusiasmo com que elas se engajam na atividade educacional quando o lado espiritual é tocado. Um programa altamente bem sucedido, desenvolvido pela FUNDAEC como parte de seus esforços para definir os parâmetros dentro dos quais uma universidade rural operaria, é conhecido como Sistema de Aprendizagem Tutorial. Ele cobre as fases finais do que neste documento chamei de educação básica, como também o programa da escola secundária em sua totalidade. Atinge atualmente uns 40.000 estudantes nas áreas rurais da Colômbia e está penetrando gradualmente em outros países Latino-Americanos. Todas as vezes que visitei algum grupo de jovens que participa no programa, observei suas atividades, ficando muito emocionado, com uma mistura de alegria e tristeza. O nível de desempenho intelectual dos participantes era surpreendente. Mas nunca pude sentir-me satisfeito com as realizações da FUNDAEC sabendo que eram apenas um pequeno passo rumo a um processo educacional comensurável com as potencialidades enormes ocultas em todo ser humano.

Uma característica do currículo desenvolvida pela FUNDAEC é o esforço que faz para elevar progressivamente o nível de consciência dos estudantes. Isto se aplica ao processo de educação como também a todo outro processo de transformação no qual eles estão empenhados. Por exemplo, em uma unidade cujo propósito principal é fortalecer capacidades na área de idioma, durante o último ano da escola secundária, são apresentados aos estudantes uma série de leituras, com os exercícios correspondentes que tornam bem claros os conceitos fundamentais que são intrínsecos à sua própria educação. Para ilustrar algumas idéias que mencionei brevemente, gostaria de fazer algumas citações dessas leituras.

[Da leitura 1]

Para que um processo educacional seja bem sucedido, deve estimular os estudantes a refletirem nas bases conceituais de sua própria educação. As unidades chamadas de "Conceitos Básicos" irão lhes prover a oportunidade para se ocuparem com tal reflexão. Como com outras unidades na área de idioma, o propósito delas é ajudar a desenvolver suas habilidades de expressão. Porém, o seu conteúdo explorará conceitos fundamentais que a gente encontra em vários cursos sem ter tido a chance de examiná-los a fundo.

Comecemos considerando o propósito de sua educação. Foi-lhe dito muitas vezes que sua educação tem um propósito. Qual é esse propósito e como se manifesta no programa educacional que você está seguindo agora já por vários anos?

Dizer que a sua educação tem um propósito não faz com que, por si só, tenha algum significado relevante. Todos os programas de sistemas educacionais têm metas louváveis. Tornar-se um cidadão útil, contribuir ao progresso do país, ser um participante produtivo da sociedade, alcançar felicidade, encontrar trabalho e melhorar o padrão de vida da pessoa - são expressões que existem em abundância em livros e documentos sobre a educação. Por que é, então, que hoje, apesar dessas metas explícitas, a maioria dos estudantes no mundo está confusa sobre o propósito de sua própria educação? Por que existem tão poucos que se mostram verdadeiramente motivados para aprender? O que os motivou a mostrar zelo e entusiasmo durante o curso de seus estudos? O entendimento que têm do propósito de sua educação tem algo a ver com seu alto nível de motivação?

Se fôssemos resumir tudo que o que tratamos sobre o tema educação ao longo dos anos, diríamos que o propósito de sua educação é o crescimento do aluno como indivíduo e o desenvolvimento de sua capacidade para contribuir à transformação da sociedade. Esta é uma simples declaração com numerosas ramificações. As leituras que se seguem trazem nova luz, cada uma a seu próprio modo, ao significado e implicações desta declaração.

(FUNDAEC, 1998, p. 1)
[De Leitura 3]

O estímulo ao entendimento é uma das metas mais fundamentais do processo educacional do qual você está participando. As duas próximas leituras foram tiradas de uma série de conferências sobre desenvolvimento de currículos feitas por um dos fundadores da FUNDAEC. Contêm muitas idéias -algumas mais ou menos evidentes - que serão úteis a você ao considerar por si mesmo a importância de sua educação, mesmo que a educação secundária que você recebeu não tenha sido através da FUNDAEC.

O verbo "entender" obviamente tem que ter um sujeito e um objeto. O assunto tratado pelo verbo é a mente e o coração, que têm de cumprir certas condições para chegar às praias da verdadeira compreensão. "Objetos do entendimento" são essas coisas que a mente e o coração entendem; são extremamente variados e se situam em muitas categorias aparentemente sem conexões entre si.

Um exame superficial de algumas declarações feitas em conversação informal aponta para algumas dessas categorias:

"Não entendo por que você age deste modo."

"Não entendo por que existe tanto sofrimento no mundo."

"Ele não entende nossa amizade."
"Eu gostaria de poder entender química."
"Você entende como este dispositivo funciona?"
"Entendo o que você está dizendo."
"Não entendo aonde você quer chegar."

"Você deveria se esforçar mais para entender os sentimentos dele."

"Entendo completamente os pontos de vistas dele".

"Precisamos alcançar maior compreensão da dinâmica de crise e vitória."

"Precisamos entender a verdadeira natureza do homem."

Destes poucos exemplos é fácil ver que os "objetos" do entendimento situam-se em categorias como: assunto, relações, sentimentos, visões, interações, a origem das coisas, a razão das coisas, o significado das coisas, o propósito das coisas, a forma de funcionar das coisas e a realidade ou essência das coisas. A isto você pode adicionar visões, contextos, enfoques, atitudes, resultados, convenções e indubitavelmente uma miríade de outras coisas - e você chegará a uma lista enorme de categorias de coisas a serem entendidas. O que é importante para você perceber é que no transcorrer de sua educação, cuidamos muito para tratar de um número suficiente de objetos (assuntos) de várias categorias, para despertar suas faculdades e equipá-lo com as ferramentas mentais necessárias para alcançar um entendimento realista sobre você mesmo e sobre o mundo que o cerca.

Duas destas ferramentas mentais, ambas extremamente poderosas no processo de investigação da realidade, são merecedoras de menção. Uma é a análise, quer dizer, dividir as coisas em partes menores e examinar as relações e interações entre elas. A outra é colocar as coisas em contextos maiores para alcançar discernimentos sobre as causas e razões de sua existência e comportamento....

(FUNDAEC 1998, pp. 15-16)
[Da Leitura 5]

O processo educacional do qual você está participando é caracterizado por sua ênfase na moral e em considerações éticas. A preocupação com moralidade, porém, não é expressa em forma de sermões sobre bom comportamento; conversações sobre assuntos éticos e morais são incorporados em um novo tópico do currículo. As próximas duas leituras consistem de alguns parágrafos de um documento que explora as bases necessárias para um modelo de educação moral apropriado para este período da história humana, um período ao qual o documento se refere como a idade de transição da infância da humanidade para a sua maturidade. Foram feitas leves modificações para tornar as leituras adequadas a esta unidade.

Para agir efetivamente durante o período atual de transição na sociedade humana, devem os indivíduos, acima de tudo, estar imbuídos de um forte senso de propósito que os leve a transformar seus próprios egos e contribuir à transformação da sociedade. Em um nível pessoal, este propósito é dirigido para o desenvolvimento das enormes potencialidades da pessoa, incluindo tanto essas virtudes e qualidades, que devem adornar todo ser humano, como os talentos e características que são dons singulares das pessoas. Em um nível social, é expresso por dedicação à promoção do bem-estar da raça humana. Estes aspectos da consciência do duplo propósito são fundamentalmente inseparáveis, pois são os padrões de comportamento dos indivíduos que formam o ambiente onde vivem, o qual, em contrapartida, é moldado por estruturas e processos sociais. A menos que a transformação do caráter individual e do ambiente seja considerada simultaneamente, o pleno potencial da idade de maturidade da humanidade não poderá ser alcançado.

Uma consciência profunda da relação recíproca entre crescimento pessoal e mudança orgânica nas estruturas sociais é, então, essencial à educação moral. A pessoa não pode desenvolver virtudes e talentos em isolamento, mas só por esforço e com ações em benefício dos outros. Adoração passiva e isolada e um afastamento prolongado da convivência social, defendidos por algumas filosofias do passado, não podem nem promover desenvolvimento individual, nem ajudar no progresso da humanidade. Focalizar o senso de propósito somente no desenvolvimento do próprio potencial da pessoa é perder objetividade e perspectiva. Sem interações externas e metas sociais, a pessoa não tem nenhum padrão pelo qual julgar seu progresso pessoal e nenhum resultado concreto pelo qual medir seu desenvolvimento. Uma pessoa que desconsidera a dimensão social do propósito moral é propensa a formas sutis de egocentrismo - combinações de culpa, farisaísmo e presunção.

Reciprocamente, um senso de propósito impulsionado somente pelo desejo de transformar a sociedade, sem dar atenção às necessidades de crescimento e transformação pessoais, é facilmente desviado de sua finalidade. A pessoa que culpa a sociedade por toda injustiça e ignora a importância da responsabilidade individual perde o senso de respeito e compaixão pelos outros e torna-se propenso a cometer atos de crueldade e opressão. A transformação social, se divorciada do desejo de transformar o próprio caráter da pessoa, é um empreendimento extremamente frágil.

(FUNDAEC, 1998, p.35)
[De Leitura 7]

Pelo termo "capacidade" queremos dizer capacidade desenvolvida para pensar e agir numa esfera bem definida de atividade e de acordo com um propósito bem definido também. Usamos a palavra para nos referirmos não a habilidades individuais, mas a esferas complexas de pensamento e ação, cada uma delas exigindo um parceiro com habilidades e destrezas correlatas. Além disso, damos grande importância à noção de que a aquisição gradual de uma determinada capacidade, além do domínio de habilidades, depende da assimilação de informações pertinentes, da compreensão de um conjunto de conceitos, do desenvolvimento de certas atitudes e do progresso em várias qualidades espirituais.

Por exemplo, classificação é uma capacidade, neste caso matemática, que um indivíduo pode adquirir em diferentes níveis de competência. No nível mais elementar, digamos, no início da escola secundária, envolve a aquisição de uma compreensão de conceitos de grupo, de componente de um grupo e de pertencer a um grupo. Também requer uma compreensão do conceito que as coisas podem ser divididas em grupos, de acordo com propriedades comuns. Mas, até mesmo a este nível, tal compreensão não é suficiente. A habilidade de reconhecer as propriedades de acordo com as quais os elementos em questão serão classificados, como também um pouco de informação pertinente sobre esses elementos, é necessária também. Por exemplo, se alguém for classificar objetos de acordo com o tamanho, é fundamental que tenha a habilidade de calcular ou medir o tamanho dos objetos. Atitudes, cuidado e gosto pela ordem, são aspectos altamente desejáveis. A um nível mais fundamental, a veracidade é uma qualidade espiritual que ajuda na geração de recompensas pelas atitudes positivas de precisão e atenção.

Para citar outro exemplo, as mecânicas que ensinam a ler e escrever são habilidades, mas ler com um certo nível de compreensão é uma capacidade bastante complexa. Outra capacidade relacionada a idioma é descrever o que observamos no mundo à nossa volta em contextos maiores. Descrever o mundo quantitativamente é uma capacidade matemática. Exemplos de capacidades científicas altamente desejáveis são aquelas que produzem observações organizadas de fenômenos e experiências definidas para testar uma hipótese. Participando efetivamente em uma consulta é uma capacidade necessária na vida social, como é a capacidade de participar em empreendimentos coletivos. Administrar os assuntos e as responsabilidades da pessoa, com retidão de conduta, é uma capacidade moral. Outra capacidade moral essencial é a de criar ambientes de unidade, com base em um reconhecimento da diversidade.

(FUNDAEC, 1998, pp. 60-61)
[Da Leitura 8]

O enfoque que adotamos para a formação de um currículo, organizado em torno de capacidades em vez de em assuntos, ajudou nossos estudantes a aprenderem com rapidez extraordinária. Que todas as capacidades que tentávamos desenvolver tinham o mesmo propósito explícito de integração social, foi uma realidade que nos permitiu enfrentar e resolver um dos desafios básicos de integração curricular: como superar a dicotomia entre conhecimento teórico e prático. A maioria dos sistemas educacionais atuais tende a ensinar habilidades práticas e manuais a alguns e o aprendizado através de livros a outros. Em alguns, é desenvolvida a capacidade de participar no planejamento e na tomada de decisão, enquanto que a maioria é treinada apenas para obedecer e fazer. O que tentamos alcançar é manter o interesse dos estudantes simultaneamente em atividades concretas e abstratas. Por exemplo, foram reunidas as habilidades de criação de animais com o estudo da fisiologia animal e definidos os passos para estabelecer uma loja rural com a análise de abstratas teorias sociais e econômicas. No grau em que formos bem sucedidos na integração do conhecimento teórico com a aplicação prática, vimos preconceitos e falsas escalas de prestígio gradualmente desaparecer e ser substituídos por uma atitude propositada de aprender e mudar.

Mas o desafio mais difícil de nossa inovação educacional provou não ser a fusão de elementos de conhecimento do universo físico e da sociedade. Uma tarefa bem maior era a integração dos conceitos materiais e espirituais em um sistema de conhecimento que permitisse aos indivíduos e populações inteiras contribuir à criação de uma civilização mundial para a qual, é nossa convicção, a humanidade está se movendo inexoravelmente. Para enfrentar este desafio, não desenvolvemos cursos específicos sobre religião; nem nos engajamos em estudos humanísticos de ética e comportamento social. A espiritualidade foi tratada como um estado, uma condição interna que deveria se manifestar em ação nas opções do dia-a-dia, num entendimento profundo da natureza humana e em contribuições significativas para a vida da comunidade e da sociedade em geral. Seguindo esta interpretação, tentamos integrar espiritualidade em toda atividade educacional: todo ato tinha de ser um meio para a clarificação e aplicação de princípios espirituais.

Procedendo desta forma, achamos que vários assuntos precisavam ser considerados. A espiritualidade tinha de ser incluída nos currículos sem negar o bem-estar material ou relegar a prosperidade para outra vida. O que tinha de ser feito era elevar o grau das atividades cotidianas a um estado mais sublime, imbuindo-as com o espírito de serviço. Porém, identificar a espiritualidade exclusivamente com serviço cria o risco de se entender que a espiritualidade surge de ações que levam ao bem-estar. Para contrabalançar este efeito, as manifestações dos anseios mais profundos da alma humana, como a busca pela proximidade de Deus através da oração e da meditação, devem também ser consideradas devidamente. "Ser" e "fazer" estão intimamente ligados e não deveriam ser separados artificialmente.

Além disso, esta integração do espiritual com o material exige um entendimento crescente do equilíbrio delicado que deve existir entre as muitas forças em operação na mente e no coração do ser humano: equilíbrio entre liberdade pessoal e obrigação social, entre ser o senhor da natureza e viver em harmonia com ela, entre humanismo e ciência, entre o racional e o emocional. Para alcançar tal equilíbrio a pessoa precisa ir além dos atributos da mente e chegar àquelas qualidades da alma que são a base do caráter humano. Um requisito essencial para alcançar um equilíbrio entre as forças em operação na mente e no coração seria, então, o desenvolvimento de qualidades espirituais, como justiça, amor, generosidade, compaixão, humildade e veracidade. Além disso, se estas qualidades devem dar origem a atitudes e comportamentos que sejam um reflexo autêntico da espiritualidade, devem ser desenvolvidas de tal modo que moderam um ao outro. Caso contrário, tudo aquilo que for alcançado em nome da espiritualidade é farisaísmo e fanatismo. Ainda mais, é somente através do entendimento da interação das qualidades espirituais que aprendemos a distinguir moderação de mediocridade - justiça moderada por compaixão, não meia-justiça; generosidade pródiga com humildade, não doação precavida; veracidade absoluta agindo através do amor, não a mistura de verdade com mentiras.

(FUNDAEC, 1998, pp. 71-72)
Referências

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1977. O Kitáb-i-Íqán: O Livro da Certeza. EBB, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 172 pp.

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Parte III
A Visão do Brasil
Affonso Camargo
Carlos Alberto Emediato
Claudia Costin
Euclides Marchi
Guacira Cesar de Oliveira
Joaquim de Almeida Mendes
Maria de Lourdes Siqueira
Mônica de Oliveira Nunes
Roberto Crema
Rosângela Azevedo Corrêa
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Affonso Camargo

A grande descoberta do século XXI será a percepção de que a questão religiosa é uma questão energética, que todos somos de uma ou de outra forma iluminados e chegaremos cedo ou tarde, à "hiperconsciência". Através desse postulado podemos ter a expectativa de que a ciência e religião irão convergir. O enfoque precisa ser redirecionado: a ciência e a religião não são dois pilares paralelos, mas dois pilares convergentes que apontam em direção à frutificação dos maiores ideais humanos. Alimentar a estéril discussão de que são temas antípodas, antagônicos é negar uma visão totalizadora da natureza do ser humano.

Se considerarmos a sabedoria contida na máxima Bahá'í de que "a verdade é um ponto, os ignorantes o multiplicaram", concluiremos que esteja onde estiver, a verdade é uma só, podendo ser vista tanto pela luneta que a ciência nos oferece através de uma infinidade de instrumentais quanto pela rica percepção espiritual entesourada nos livros sagrados das grandes religiões a que temos acesso. É uma armadilha perversa continuar cultivando uma percepção excludente da Verdade e as suas conseqüências serão sempre danosas uma vez que todos os movimentos da História apontam para uma unidade ampliada, maior, abarcadora da realidade.

Um desafio a que não podemos nos furtar a enfrentar é exatamente a percepção de como e em que escala de tempo poderemos apreciar essas forças convergentes. Se ocorrerá a médio prazo, dentro de alguns anos ou algumas décadas ou dentro de um prazo mais longo, que envolve séculos ou milênios, dependerá em grande parte de como os principais artífices dessas duas grandes forças, os representantes da Ciência - aqui incluídos desde os cientistas até os filósofos - e os líderes espirituais ou representantes das grandes vertentes religiosas - aqui incluídos os Fundadores das Religiões e os representantes máximos de suas estruturas administrativas, avaliam esta questão.

Os caminhos da ciência e religião são a busca de nossas origens. Se o desenvolvimento é para todos, este deve ocorrer na ótica da justiça, onde a cada um é dado o que lhe é devido: bem-estar, paz, necessidades mínimas satisfeitas. Somente com a ciência não se alcança isso, pois só a religião traz a percepção dos valores. Não é demais observar que em qualquer campo da atuação humana, encontraremos uma gênese espiritual, um ponto focal que ordena os afazeres humanos. Um exemplo pertinente é o de que muito antes do advento dos códigos de leis - que podem ser tão remotos quanto o Código de Hamurabi e tão atuais quanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos - existiam os princípios de justiça trazidos à emergência da consciência humana por Moisés, fundador da religião judaica e bem representada pela Tábua das Leis ou, como mais comumente o conhecemos, os Dez Mandamentos. Nesta mesma reflexão podemos inferir que muitos artigos inseridos na Declaração Universal dos Direitos Humanos são na realidade um conjunto, bem ordenado e em uma linguagem atualizada, dos principais ensinamentos contidos nos livros sagrados como o Bhagavad-Gita, o Alcorão. Ainda no século XIX, Bahá'u'lláh mesmo já sinalizava para a necessidade de um novo ordenamento mundial ao declarar ser a Terra um único país e os seres humanos, seus cidadãos. Hoje, nesta alvorada do século XXI, nos defrontamos pelos telejornais, pela internet e pelos demais meios de comunicação de massa com o advento e os desdobramentos inerentes a um Tribunal Penal Internacional e a uma Organização Mundial do Comércio, ao mesmo tempo em que vemos o lento, porém, irreversível surgimento de blocos econômicos em nível continental, como o são os processos conhecidos como "Europa Unida", "Nafta", "Alca", "Mercosul", isto apenas para brevemente ilustrar este ponto.

A questão econômica necessita ter um foco. Afinal, a má distribuição de renda não é um flagelo que enferma uma ou outra nação, mas antes, é algo que bem pode ser visualizado como um horror econômico, afinal mais da metade da humanidade se encontra abaixo da linha da pobreza enquanto menos que uma dúzia de nações usufruem de todo o conhecimento e bens materiais oriundos de uma contumaz perpetuação da ausência de uma justiça econômica planetária.

Na percepção política da democracia cristã, o verdadeiro desenvolvimento ocorre com a economia das necessidades. Sendo o Brasil um país de cultura paternalista, há uma dificuldade em se exercitar a plena cidadania, havendo sempre uma busca eterna do "salvador da pátria". Nesta percepção, o político não é o servidor do povo, mas sim o protetor do povo. É um modelo que tem sido danoso, uma vez que o líder tem sido visto como aquele a quem as populações devem servir, obedecer, hipotecar apoio quando não solidariedade.

O desafio pode ser então identificado como aquele que resulte na incorporação de uma perspectiva espiritual à intervenção política que transforme essa visão paternalista e conceda um sentido mais amplo de justiça. Uma análise desapaixonada nos levará a perceber que isso somente ocorrerá através da formação, num processo de multiplicação de pessoas que pensem e ajam no sentido da incorporação do espiritual na vivência diária.

Numa analogia "fermento, massa, pão", podemos perceber a importância do seguinte diagrama:

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IMAGEM
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A era da modernidade tem extensas ligações com o advento, a consolidação e o uso dos meios de comunicação em massa. O papel dos mídias merece uma maior centralidade quando o tema em discussão é um discurso sobre ciência, religião e desenvolvimento. Afinal, se por um lado temos uma avalanche de informações, algo absolutamente inédito na história da humanidade, temos também um ser humano fragilizado, com baixa formação cultural e pouco apto a saber extrair benefício de tamanha carga de informação. Esta situação torna-se paralizante quando vemos que o ser humano luta também contra uma escassez de tempo físico suficiente para digerir uma informação, para refletir sobre a mesma e para tomar uma decisão quanto ao caráter ético, moral ou espiritual que tal informação encerra.

Feita esta consideração, há que se diferenciar o ato de informar do ato de formar uma opinião. Surge então com crescente importância a existência dos chamados formadores de opinião que, em tese, seriam aqueles que apreendem a informação, a contextualiza e então, incorporando suas opiniões sobre o tema, volta a apresentá-la através dos meios de comunicação como algo depurado, avaliado, ou melhor, digerível. Um outro exemplo seria a proliferação dos ditos comentaristas políticos, comentaristas econômicos, dos porta-vozes do Capital e também do Trabalho. Para estes, existe um público receptivo, nem sempre com uma boa dose de auto-confiança e de auto-estima, sequioso para abraçar esta ou aquela interpretação de um fato, de uma notícia.

Uma constatação que podemos fazer é o de que a grande maioria da sociedade não percebe nosso discurso de ciência e religião trabalhando juntos na direção do desenvolvimento. Mas há na sociedade um anseio por mudanças. Afinal, como foi afirmado "a única coisa que não muda é a própria mudança". Se conseguirmos mostrar que há benefício da interação entre ciência e religião, que esse discurso traz em seu âmago percepções do que pode ser usufruído como fruto da interação entre ciência e religião, de fato entraremos num processo de mudanças. Pois, as mudanças mais aguardadas e que podem ter efeitos duradouros são aquelas que nos fazem alterar padrões de comportamentos, que nos fazem tomar esta ou aquela atitude ante uma situação de nosso cotidiano. Devemos encontrar exemplos claros de como a interação de ciência e religião resulta em transformações na nossa vida diária. Um exemplo seria o uso da meditação para resolver problemas no escritório, na fábrica, na empresa etc. É a interação do espiritual com o material. Não há apenas que se possuir um automóvel, há que saber como guiá-lo.

Para que tudo isso ocorra necessitamos de uma revolução cultural e não somente educacional. Voltando à percepção de que o Brasil é um país de cultura paternalista, como romper tal cultura sem ignorá-la? A sociedade quer distribuição de renda, emprego, assistência médica, educação e temos que encontrar o caminho para mostrar que ciência e religião associados para o benefício do desenvolvimento podem gerar isto. Sem um firme reconhecimento de que todo ser humano tem um projeto de felicidade a realizar, sem a compreensão de que temos um destino comum a compartilhar, é extremamente difícil agregar valores como o da solidariedade, a compaixão, as atitudes inegoístas nas relações humanas.

Um outro exemplo de ação transformadora seria incluir nos centros de ensino tecnológico o ensino da espiritualidade. A conquista da percepção da transcendência humana é uma base suficientemente vigorosa de onde se poderá construir um novo ordenamento da sociedade humana. Amar a paz pressupõe o reconhecimento das potencialidades que a paz entesoura, o estado de espírito que a paz enseja. Uma estratégia factível para realizar tal "convencimento" junto à sociedade seria a de se explicitar a nossa verdade: a proposta de que a satisfação pessoal, de realização interior é o que poderá fazer um ser humano feliz. A felicidade, então, é uma das maneiras como poderemos chamar aquele estágio em que uma pessoa realiza, de forma plena, o seu potencial.

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Carlos Alberto Emediato
Conhecimento e Prosperidade
Ciência e Multidimensionalidade

Conhecer é talvez a experiência mais instigadora e fascinante do ser humano. É através do conhecimento que o ser no mundo expande seus limites e abre espaços inusitados. Seu caráter de desafio e aventura soma-se à necessidade de cada ser humano, e da humanidade como um todo, de equacionar questões vitais que só se resolvem com o avançar do conhecimento. Seja diante de doenças, da produção, do desvendar a natureza e o cosmos, ou seja, avançando através da expansão da nossa imaginação, intuição e capacidade de sentir e ordenar nossas sensações.

À medida que podemos não somente ter ciência, mas viver com ciência, incorporada nas nossas relações com o espectro externo-interno de nossa experiência, podemos ordenar de forma mais efetiva e satisfatória nossa vivência cotidiana. Ao penetrarmos as teias mais complexas e sutis da materialidade, ao desvendarmos as tramas que dão suporte à vida, e abrirmos para entender as formas culturais que ordenam a diversidade das relações no mundo avançamos nossa capacidade de organizar tanto a vida pessoal como social. Podemos, assim, criar visões e valores que dão conta de uma dinâmica surpreendente de descobertas e de inovações potencialmente úteis para todos que compartilharem os frutos do conhecimento gerado.

Todo conhecimento é auto-conhecimento. Ao conhecer estamos mergulhando no entendimento de nossas relações constituintes. Mesmo nas ciências físicas a superação da divisão sujeito-objeto vem indicar a insuficiência de modelos explicativos ou descritivos que desconsiderem a ação do conhecedor como elemento constitutivo do conhecimento. Não somente nossa posição no tempo e no espaço, mas nossas percepções, sentimentos e aparato sensório são componentes do processo. Isto não invalida, pelo contrário complementa a utilidade de conhecimentos que têm feito avançar, de forma acelerada, a capacidade criativa , de entendimento e de invenção da humanidade.

Todo conhecimento se refere a causas e condições de diversas naturezas que influem no resultado, que é por sua vez parte de um processo onde descobertas são recriadas ou enfraquecidas à luz de outras condições e de outros insights. Ao conhecer vamos não somente ampliando nossa intimidade com o mundo mas desvelando como nos constituímos e aprendemos no bojo destas relações.

O compromisso da ciência em ler a natureza com os olhos da razão, de uma forma sistemática, encontrou outras formas de conhecimento prévios com as quais dialogava ou confrontava. As explicações míticas que atribuem significado a fenômenos da natureza, a formas, e a acontecimentos fundantes como nas estórias de semideuses, heróis e monstros. As explicações anímicas onde o universo é todo povoado de espírito, portanto atuante, carregado de forças não somente as que a matéria condensa. Uma ciência objetivista e materialista, como foi se tornando a ciência moderna de até poucas décadas, tinha com certeza dificuldade de dialogar com estas narrativas, explicações e visões de mundo.

Ao confronto da teologia, especialmente fundada na palavra revelada e seus intérpretes, com as formas míticas de explicação do mundo, sucedem-se as disputas entre teologia e filosofia e subseqüentemente da ciência com as formas anteriores de conhecimento. Se as explicações míticas, animistas e teológicas apontavam para a natureza espiritual ou transcendente da humanidade e do universo, justamente aí se acirravam as disputas em busca de uma hegemonia e reconhecimento da validade de um corpo de conhecimento em detrimento do outro. Filosofia e teologia começam a se defrontar também por partirem de supostos e procedimentos distintos, onde a teologia busca fazer sentido de crenças e revelações enquanto a filosofia trabalha a partir do pensamento humano.

O novo estágio de conhecimento inaugurado pela ciência agregava a necessidade de verificabilidade e comprovação que ia além do observar e pensar da filosofia. A proximidade destes dois projetos de conhecimento que supõem uma racionalidade, mesmo na explicação de fenômenos naturais e de natureza não-racional, leva-os a disputas históricas a respeito do conhecimento válido. Em cada projeto de conhecimento constroem-se, sustentados pelos resultados que produzem, visões de mundo e sistemas de valores que configuram grupos sociais, nações e épocas civilizatórias.

Uma arqueologia do conhecimento poderia indicar que cada tipo de conhecimento como os acima mencionados, e que predominam em certas épocas e culturas, correspondem a camadas distintas da experiência humana, e muitas vezes a linguagens e métodos de conhecer próprios. Há com certeza na experiência de cada ser humano uma convivência com a dimensão mágica, com a relação com um deus ou deuses, com os processos intuitivos, racionais e reflexivos que ordenam o pensamento sobre o mundo exterior ou interior, e com as tentativas de conhecer as leis e procedimentos que regem o mundo exterior ou interior e habilitam seus detentores de certa previsibilidade e controle sobre o mundo e os comportamentos.

Uma característica comum entre estes sistemas de conhecimento é que mesmo referindo-se a experiências humanas que tem sentido em si mesmas, visões e valores que conformam ordenações distintas do mundo e dos comportamentos, cada um exclui os demais como caminhos de conhecimento e de certa forma desqualificam a realidade das dimensões a que se referem. Encurtam-se os campos da experiência humana ou as possibilidades de leitura e entendimento à medida que as questões precisam ser respondidas dentro do marco de seus sistemas de conhecimento.

À medida que um corpo de conhecimento se institucionaliza ele começa a conviver com a necessidade de validação das formas e procedimentos que ele mesmo criou. Busca manter a estrutura de autoridade que corresponde àqueles que zelam pelo conhecimento, o produzem, ou incorporam os poderes que o sistema específico confere àqueles que performam os ritos da instituição criada. A relação direta entre conhecimento e poder, ou entre posições de autoridade a que se atribui conhecimento ou exclusividades rituais e poder é presente em todas as instituições, sejam xamânicas, religiosas, filosóficas ou científicas.

Como o conhecimento permeia todas as demais formas de instituições mesmo laicas e não acadêmicas, esta relação de conhecimento e poder está sempre presente nas estruturas sociais de autoridade reconhecidas como legítimas ou não. Argüi-se em nome do conhecimento quando muitas vezes o que se faz é repetir e preservar cristalizações perceptivas e valorativas em nome das instituições que as criaram, na tentativa de mantê-las e suas correspondentes posições de poder, sejam nas igrejas, famílias, locais de trabalho ou de lazer.

É interessante notar que determinadas tradições de sabedoria confluem com a ciência ao enfatizar a importância da experiência como validador. Não redutível ao experimento controlado em laboratório que não dialoga com a tecitura ampliada do fenômeno examinado. Ver através de microscópios, telescópios ou obter retornos de radares ultra-sônicos que perscrutam o universo não nos deixa em dúvida ao confrontar afirmações dogmáticas a respeito da matéria, do cosmos ou da criação. Quando disciplinas espirituais nos fornecem ferramentas para entrar no laboratório interno de nossas mentes e descobrir dimensões inusitadas de nosso ser não cabe ficarmos parados nos limites da ortodoxia objetivista e materialista da ciência moderna. A ciência não pode parar em crenças, mesmo que departa delas ou tenha a própria ciência as criado. O compromisso do conhecimento requer a mesma radicalidade que todas as outras apostas que cada um faz na sua vida.

Teologia e Filosofia buscaram historicamente diálogo e integração em diversos momentos, fazendo que o sistema novo, ou externo ao pensamento hegemônico funcione, muitas vezes, como o desafiador e vivificador do pensamento predominante. É o caso dos padres da Igreja Católica que buscaram integrar o Platonismo, ou a escolástica integrando Aristóteles à teologia cristã. Há um emergir da tradição judaico cristã com a civilização grega, que já dava sinais com apóstolos como Paulo, mais se prolonga até nossos dias, passando pelo forte impacto da renascença via, especialmente, as artes e o humanismo. Estes confrontos e confluências não acontecem de forma repentina e nem sem conflitos de poder, e muitos deles físicos.

Com a filosofia e ciência moderna foram muitos séculos de confrontos com as religiões e tentativas que vão sendo feitas de quebrar os muros das ortodoxias. Não somente Giordano Bruno e Galileu, mas, mesmo o hoje criticado Descartes sofreu perseguições, outros publicaram suas obras postumamente. No entanto, com o tempo foram algumas das dificuldades sendo superadas pela evidência e pelo alargar das visões e valores que aromatizam os corpos pesados do conhecimento institucionalizado. Há a contribuição de Teilhard du Chardin incorporando Darwin em uma teologia multidimensional ou mesmo teólogos que incorporam Karl Marx e Freud tão execrados pela ortodoxia. Einstein, de forma bem interessante, não recebe tanto contestação militante, não obstante não ser integrado pelos que dizem, de forma ironicamente desafiadora, que falta comprovação a suas teorias para justificar mudanças nas visões religiosas ou filosóficas que sustentam sem comprovação, se é este o critério que prezam.

Entende-se que o diálogo de saberes é tão importante hoje em dia como o diálogo de tradições dos diversos povos. Um requisito é o admitir que cada tradição de sabedoria merece fazer parte do diálogo. É fundamental considerar que a experiência humana - da corporalidade, das emoções e afetos, da razão e da vastidão do espírito - guarda, felizmente, dimensões inusitadas, não ainda tocadas pelo saber, seja no universo micro e macro no qual habitamos ou nas dimensões manifestas do ser. O compromisso com o conhecimento, como dito acima, precisa ser uma aventura radical, pois ele é um convite a uma contínua abertura e investigação, e ao desfrute saboroso das descobertas.

Tomar a racionalidade e os critérios de validação racional gerados pela ciência como único caminho de conhecimento limita o projeto humano, habilitado que está à incorporação de sabedoria, de ampliação de sua inteligência e revelações de um universo vivo e multidimensional. Não se trata de se abdicar de sua especificidade e rigor, antes pelo contrário é utilizando-se de suas ferramentas mais potentes, neste caso a racionalidade humana, que o diálogo com outras funções e corpos de conhecimento pode enriquecer a todos. Não podemos negar os fenômenos e experiências que não cabem em nossos modelos, nem querer limitar o mundo àquilo que conseguimos explicar. Quando colocamos a razão a serviço de um entendimento maior, quando a incorporamos na tecitura concreta do universo que a gerou, diminui-se a ansiedade e o descolamento entre inteligência e vivência.

As luzes recentes da ciência apontam em direção a um universo tecido junto, complexo, interdependente, onde todos os elementos atuam sobre os demais em graus variados. O reconhecimento do seu caráter vivo, onde matéria e energia se intercambiam e formam padrões distintos na dinâmica do tempo e do espaço. O reconhecimento de vivências que transcendem tempo e espaço, de realidades que antes eram apontadas como pertencentes a um mundo irreal, de formas e imagens que habitavam nosso inconsciente como que fantasmas, sendo parte de nosso psiquismo. Isto demanda outras leituras, outras linguagens e ferramentas de conhecimento. O aceitar a existência de estados diversos de consciência que apontam para uma realidade aberta e multidimensional - onde fontes sensoriais, de sentimentos, perceptuais, imagéticas, intuicionais, simbólicas como os sonhos, transauditivas ou transvisuais requerem ser incorporadas na nossa aventura de conhecer - indica que a ciência pode se alargar para contribuir com projetos mais arrojados de conhecimento. Sua contribuição específica será cada vez mais eficiente e valiosa à medida que for maior o rigor e a simplicidade.

Outros princípios além da interdependência e da multidimensionalidade ajudam a configurar o papel do conhecimento racional e científico no diálogo de saberes, e mesmo internamente, no diálogo entre as diversas ciências e leituras científicas dentro de disciplinas. O mencionado princípio da evolução, que pode ser equacionado com o princípio da impermanência, pode ser útil para entendermos que a própria racionalidade humana é fruto de um processo anterior e complexo, que ela se exerce em dadas circunstâncias e condições, e que, ao longo do tempo, o que era verdade e evidente ganha outros olhares e elementos que recriam o conhecimento. Isto quer dizer que a beleza do empreendimento científico, por mais que ele consolide conhecimentos, é uma construção coletiva, histórica, mutável e cheia de surpreendentes descobertas.

As importantes descobertas não impedem outras mais profundas e reveladoras. Quem sabe tem um jeito mais fácil de ir a lua ou marte, ou visitar outras galáxias? Se não descobrirmos vamos continuar achando que nosso limite é aqui para sempre. Se não descobrirmos outras formas de equacionar nossas relações e de organizar o mundo vamos continuar imaginando que o mundo é refém da violência e gerador de miséria e sofrimento.

Religião e Espiritualidade

As religiões vão se constituindo historicamente como grandes corpos de conhecimento e organizações que influenciam diretamente o comportamento humano e as relações institucionais e de poder. Haja visto os estados confessionais e as teocracias até hoje existentes. O peso da religião em diversas culturas é tão grande que confundem-se com as definições de povos e nações. Civilizações antigas têm na religião seu sistema predominante de conhecimento. A maioria das tradições de sabedoria se apresentam como interpretações e normatizações de caráter religioso que não somente explicam como também regem os grupos ou sociedade que as professam. Mobilizam uma enorme quantidade de poder e recursos à medida que se constituem como forças sociais capazes de orientar a construção de visões de mundo, de sistemas de valores e de congregarem grande quantidade de pessoas para atuarem de acordo com seus ensinamentos e recomendações.

Com a expansão da consciência humana ganha relevância a necessidade de investigar dimensões mais profundas de nossa experiência, bem como dar sentido a forças consideradas superiores capazes de criar ou interferir no mundo. Este avançar permite que conhecimentos mais sofisticados comecem a ganhar corpo e que mestres, avatares e profetas surjam em diversas culturas ajudando a revelar conhecimentos da esfera do divino na natureza e no homem, bem como, da relação dos homens com suas divindades. Há tradições que acreditam que inclusive o reino animal e a natureza física são depositários de tesouros de conhecimento.

Podemos reconhecer que ao longo do tempo e em diversas regiões do mundo vão surgindo corpos de conhecimento que consolidam visões de mundo e valores que ganham a configuração de religiões, inicialmente como fenômenos bem locais, regionais e inseridos numa cultura particular. Aquelas dotadas de força e universalidade vão se constituindo como tradições sólidas de conhecimento e ganhando, algumas delas, características de religiões institucionalmente identificáveis.

Uma forma de ver o surgimento destas tradições de sabedoria e religiões é tomá-las como respostas a necessidades e aspirações de cada tempo e a vocações específicas de cada cultura, o que compõe um caminho de revelações sucessivas. Isto porque, cada corpo de conhecimento tem seu ciclo de ascensão e descenso, bem como, há necessidades específicas a serem respondidas a cada configuração dos grupos humanos e da humanidade como um todo.Também, porque as vocações específicas de cada povo ou cultura onde esta revelação se desenvolve contribui com aspectos próprios, ao mesmo tempo que particularizam dimensões universais contidas na visão, valores e métodos oferecidos à humanidade através daquele povo ou cultura.

Sete Selos são tomados como representação dos momentos de revelação das religiões ou tradições espirituais que foram se configurando mundialmente. O primeiro diz respeito às tradições que se desenvolveram no extremo oriente: o taoismo, as tradições védicas, o hinduismo, o budismo. Este selo consagra a relação do manifesto com o imanifesto, do divino em todas as coisas, do constante movimento do mundo fenomênico, da relação do homem com princípios básicos do cosmos, das leis, e das qualidades fundamentais do ser. O homem e todas as demais manifestações como realidades inseparáveis do divino. O símbolo do I Ching contém os princípios do feminino e do masculino, no núcleo do feminino uma fonte masculina, no núcleo do masculino uma fonte do feminino. No hinduismo o símbolo da Suástica representando a lei, o carma, a justiça divina. No budismo a Lótus símbolo da compaixão, da abertura das energias espirituais.

Seguem-se os selos correspondentes às religiões abrâmicas, ou do oriente médio, que incluem o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. E com elas a Estrela de Davi, a Cruz e a Lua Crescente com a Estrela, e a importância de se trazer o espiritual para o nível da matéria, para a cultura, para a forma; a importância do amor e do serviço ao próximo; a importância da entrega sem restrição. Neste modelo a Fé Bahá'í representaria o quinto selo que afirma a unidade de tudo que existe, a unidade da humanidade, a igualdade entre gênero, raças, povos, sem distinção. Unidade não restrita à esfera humana, nem mesmo aos limites do planeta, inclui tudo que existe. Está representada nesta iconografia da revelação pela Estrela de Nove Pontas.

O sexto selo não tem uma configuração institucional clara, mas se refere a movimentos espirituais de caráter universalista com origem nas tradições da Índia. Está representado pelo Sol Nascente, que simboliza o oriente e uma pequena Suástica que nos relembra da lei. Talvez um convite para um entendimento mais profundo de como funcionam o universo e suas incontáveis dimensões. Indica que a unidade não é somente do mundo externo, mas que há uma unidade interna no tudo que existe. A lei nos sugere talvez ações de reparação e religamento, um conhecimento do sagrado capaz de ressintonizar cada um com a fluidez e vastidão do ser. O sol tem sido visto por muitos como símbolo de um tempo da oferta generosa de energia, diferente de períodos lunares onde se absorve energia. Um dos objetivos desta nova espiritualidade é o conhecimento experiencial do sagrado.

E o sétimo selo, como fica neste grande signo?, Tema de diversos trabalhos e criações artísticas como no filme de Igmar Bergman onde a morte joga xadrez com o cavaleiro, o sétimo selo é a síntese dos passos anteriores que permitiria beber de todas estas fontes ao mesmo tempo, naquilo que elas têm de mais cristalino, puro e potente. Um confluir de sabedorias tornadas disponíveis para a humanidade como fontes inesgotáveis de paz e felicidade. A compatibilidade destas diversas revelações estaria nas raízes profundas de cada manifestação específica que passam a ser, porque já são, comuns, compartilham as mesmas dimensões e os mesmos mistérios.

Como empreendimentos humanos a caminhada destas tradições de sabedoria demandam hoje um grande diálogo, um novo entendimento, uma nova criação com base nos princípios e valores comuns, conciliação com o cotidiano, o direto, o corriqueiro de cada ser humano, e a identificação de uma fonte além das culturas, dos povos, de gênero, raça ou idade. É o desafio de se encontrar a unidade subjacente a tudo que existe. É uma oportunidade extraordinária para o reconhecimento.

Estou me valendo deste modelo para indicar como as religiões e tradições de sabedoria detêm chaves importantes para a construção de uma nova civilização fundada numa cultura de paz e de unidade humana, sustentada na solidariedade e numa forma generosa de construir parcerias, gestões coletivas e sustentação mútua diante de necessidades e aspirações humanas. Por outro lado, elas podem continuar, como hoje, a ser fonte do maior número de guerras e conflitos, e mesmo fonte de confusão para espíritos humanos que não conseguem distinguir a sabedoria que inspira estas instituições do jogo de poder, das interpretações unilaterais, da perda de conexão com a sacralidade de cada existente.

O que está proposto neste modelo é que as diversas religiões têm uma contribuição específica e complementar. O desafio está na construção conjunta de uma visão, valores e comportamentos que alarguem, integrem e reconciliem suas situações históricas particulares com um projeto de humanidade do qual elas podem ser garantidoras e artífices. Também está sugerido que há um movimento circular de volta aos fundamentos, não fundamentalismos, mas às fontes puras, límpidas e potentes da energia espiritual esquecida em meio a muitas recomendações, normas, mimetismos e distorções. Há uma sinalização que as tradições antigas podem contribuir como base desta construção à medida que elas apontam para a experiência do divino em cada um, de uma espiritualidade sem compromisso com as igrejas, instituições ou equações circunstanciais. Que os mestres, doutrina e práticas podem ser importantes como caminhos para o contato de cada um com sua fonte divina. Daí decorrem visão de mundo e ética, aí elas se sustentam em chão firme.

Sem uma espiritualidade profunda que floresça em cada indivíduo e faça dele o seu próprio templo, as instituições religiosas continuarão a deslocar o sagrado para fora de sua fonte e raiz. O aparente individualismo espiritual que esta postura parece indicar na verdade é o garantidor último da universalidade, que além de pautas prévias de conduta, ancora a vida espiritual na experiência do divino em nós, o qual nos revela radicalmente iguais, em natureza e dignidade, a todas as demais manifestações deste divino na humanidade e nos diversos reinos da existência.

Ao ensinar e ajudar a despertar a divindade em cada um e a conexão pessoal com a sacralidade de cada existente as religiões desenvolvem uma ação pacificadora e construtora de relações saudáveis, respeitosas e fraternas. Mesmo em situações mais adversas cada um tem chance de contatar sua fonte de força e buscar caminhos de afirmação de sua inteireza. Hoje mesmo tive o exemplo de um jovem que diante de dificuldades que diziam respeito à saúde de seu pai, e que vive em região onde muitos estão envolvidos com atos de violência e contravenção, buscou apoio deixando claro suas opções conscientes por uma vida correta, sustentado pela religião que ele decidiu seguir. A religião e a comunidade de praticante é para ele rumo e apoio. E nestas situações limites, é também o sinal que ele usa para afirmar sua opção de vida no meio da violência e contravenção buscando a cada momento preservar o que ele preza e encontrar soluções para suas dificuldades.

São muitos os que não professam nenhuma religião e se desenvolvem através do autoconhecimento e do serviço generoso à humanidade. Poderíamos dizer que há uma espiritualidade vivida sem credos formais ou vínculos institucionais. Há pessoas de grande bondade e vigor ético que seguem suas fontes internas de sabedoria e estão dispostas a aprender e contribuir. Muitos se livram da arrogância e do dogmatismo se distanciando de crenças fechadas, de sistemas que não aprendem, de verdades que não reverberam na vivência interna de uma espiritualidade viva. Muitos nem mesmo equacionam como sendo espiritualidade sua ação de refinar o espirito humano através de avançar o conhecimento, criar pelo trabalho e servir a comunidade.

Há uma dimensão de conectividade na vivência espiritual que ao incorporar qualidades básicas liga pessoas e mecanismos da convivência coletiva na fluidez da energia seja do amor, da alegria, da compaixão, do serviço generoso. Estas energias operam sem estatutos, preceitos ou prescrições. No entanto, as relações humanas, mesmo as institucionais e normatizadas, podem e devem expressá-las como condição para a harmonia, vitalidade e deleite. Esta possibilidade está disponível para todos em todos os momentos, ao mesmo tempo em que a engenharia de sua fluidez se apresenta como desafio central para aqueles que buscam construir relações justas e saudáveis.

Temos senhores da guerra e da destruição que se dizem religiosos, temos predadores, colonizadores e especuladores que defendem os valores espirituais de uma civilização que no concreto mostra sua crueldade e desafeto. O desafio de se construir uma civilização planetária convida ao aprendizado conjunto aos membros das diversas tradições de sabedoria na busca de tecer juntos, de forma prática, cotidiana, o novo que alimenta, conecta, responde às necessidades básicas e às aspirações humanas profundas. Este também é o desafio de se desenvolver a engenharia de novos processos sociais e culturais capazes de fazer confluir os níveis mais profundos da nossa experiência com os avanços da racionalidade humana e a concretização de novas relações econômicas, políticas e culturais que dão corpo a vida de todos nós.

Prosperidade e Governança

A construção de uma civilização planetária requer uma outra corporalidade, ou seja, novas formas culturais que permitam e promovam a diversidade, o colorido, a especificidade de cada pessoa no espaço comum da convivência. Espaço este das relações pessoais, das famílias - ou unidades básicas de convivência, das comunidades, das esferas locais, nacionais, regionais e mundial. Requer a ampliação do conceito de cidadania que integre cada pessoa, e que seja capaz de garantir direitos fundados em valores humanos universais desde a concepção e suas condições até após a morte.

As questões comuns que afetam a todos e a cada um nos oferece o chão para uma conversa em todas as línguas e para além das linguagens convencionais. Desta forma a conversa se funda neste chão compartilhado que não decorre de preceitos morais prévios, mas sim do reconhecimento da nossa comunalidade. Somos herdeiros e co-partícipes de uma herança física, material, genética, e cultural que nos envolve a todos.

A conectividade exercitada nos tempos atuais, que produz entusiasmo ou apreensão causada pela ampliação dos espaços de interação, é na verdade, mais o resultado de um reconhecimento do que uma invenção. Se as ferramentas são novas o chão onde elas proliferam sempre existiu. Compartilhamos situações comuns, somos afetados e afetamos a todos, desde a água que bebemos, ao ar que respiramos, aos alimentos que produzimos, à paz e segurança que todos buscam, às condições cósmicas que geram a configuração astronômica da qual participa o nosso planeta.

Com populações menores, isoladas geográfica e culturalmente, a comunalidade parecia não existir. As próprias tramas cotidianas atuais, no entanto, a torna concreta desde os artigos que consumimos, às informações compartilhadas, às ondas de impacto geradas com os movimentos financeiros, militares, vírus biológicos ou virtuais ou pela mobilização de interesses coletivos.

Está se criando uma nova cultura, uma nova corporalidade social que reexamina visões e valores e que desenvolve uma nova arquitetura de relações e ambiências mentais. O homem liberal visto como um indivíduo isolado que toma decisões racionais em função do mercado, das opções políticas, começa a ser reinserido na corporalidade de suas relações, nas causas e condições de sua situação e na universalidade das necessidades e aspirações compartilhadas.

Não se trata de devolver ao homem sua identidade clânica ou estamental dos períodos anteriores, mas incorporar em todas suas esferas de participação a individuação, intensificada no período moderno, que nos leva a assumir responsabilidades por nossas ações e sermos ativos criadores de cultura, reinseridos na tecitura complexa e multidimensional que nos constitui.

Se o indivíduo isolado é uma abstração, sua identidade social também é uma construção pobre e limitadora. Uma cidadania planetária, exercida desde o local ao mundial, deve nutrir-se da fonte de presença e mistério que cada um é, e se desenvolver numa arquitetura de relações constituintes onde o arcabouço institucional garanta a definição participativa das agendas, das prioridades e das alocações de recursos nos diversos elos de células de convivência, interagindo com redes solidárias, onde a mobilidade dirigida por afinidades e fluição não venha em prejuízo das questões concretas de cada esfera de gestão.

A Sociedade do Conhecimento não somente requer e se utiliza de conhecimento para seu funcionamento, mas gera conhecimento em todas suas unidades. Se isto sempre aconteceu, pois cada indivíduo gera conhecimento de alguma forma, a capacidade de receber e elaborar de uma forma continuada uma grande quantidade de informações é um fenômeno relativamente recente. Da prensa de Gutemberg à produção editorial, do rádio à televisão, e na seqüência, os computadores, os computadores pessoais e as redes mundiais acontecem em alguns séculos, mas com uma clara aceleração do processo de informação e elaboração de conhecimento nas últimas décadas.

Os processos de divulgação e articulação, transposição de barreiras, ajudado também pelos transportes, viagens e aberturas institucionais de organizações fechadas ou secretas, cria uma outra dinâmica do conhecimento desafiando formatos como o das nossas escolas e outras organizações tradicionais que ainda não conseguiram se reconceber para este novo tempo. Métodos de transmissão de informação lentos e antiquados sustentam-se na suposição de que alguém detém o conhecimento e o afere conforme o relativamente pequeno estoque de informações que dispõe, comparado à vastidão de fontes já disponíveis. Se os profissionais dos diversos campos de atuação privada e pública se apoiam naquilo que as instituições codificam como sendo o conhecimento, passam a depender da dinâmica e velocidade com que as instituições aprendem para serem capazes de gerar conhecimento atualizado. Dependem do livro didático, da cartilha, do manual de procedimentos, dos textos selecionados, da consultoria da moda.

Entretanto, o diálogo, a convergência, a elaboração de cada um a partir da sua própria incorporação de conhecimento não faz parte desta metodologia. Muitas organizações continuam a falar e não ouvem nem perguntam. O conhecimento ainda é tido como algo externo, apropriável e credenciável sem a interação e a diversidade. A questão não está em deixar de se formatar o ensino e os corpos de conhecimento das organizações, mas de comprimí-lo em dinâmicas e estruturas que não dão conta da experiência dos seus usuários, porque não as inclui como fonte de um processo dialogal e de sínteses sucessivas, gerador de novos insights. Onde o aprender de forma constante é um critério em si mesmo, e os espaços de compartilhar podem e devem se beneficiar com a dinâmica criativa de cada um.

Democracia e participação têm a ver com as micro-dinâmicas do gerar e elaborar conhecimento, da capacidade de contínuo aprendizado das próprias organizações em coexistência com mundos - percepções, valores e pautas de comportamento - distintos, girando em suas próprias esferas. Podemos imaginar dinâmicas diferenciadas se articulando em um espaço comum de interações que garanta a corporalidade, a sustentabilidade destas diversas dinâmicas, nas múltiplas dimensões que operam. Desde o nível das unidades básicas de convivência - sejam famílias tradicionalmente constituídas ou unidades domiciliares com composições múltiplas ou uniparentais - onde supõe-se um grau mais alto de afinidade, até os níveis de atuação com maior componente contratual como em relações de trabalho menos duradouras, este processo de gerar e elaborar conhecimento requer interações contínuas, diálogo, mecanismos de resolução pacífica de conflitos e capacidade de gerar serviços ou bens úteis para serem compartilhados.

A sociedade emergente possibilita e requer para sua saúde associativa uma grande quantidade de relações que não passam necessariamente pelas clivagens tradicionais de consangüinidade, de raça, de sexo, idade e mesmo de nacionalidade. Necessidades e interesses comuns sinalizam de forma mais eficiente as composições dos grupos e dinâmicas organizativas. Um mercado de trabalho cada vez menos centrado na fixidez de cargos e posições, com percentagens cada vez menores de pessoas na agricultura e na indústria, gera uma maior volatilidade nas relações produtivas no dinâmico setor dos serviços com suas modas, sazonalidades, e com as mudanças tecnológicas incorporadas por um maior número de indivíduos ou pequenos grupos.

A formação de redes industriais, comerciais e de serviços públicos e privados, ao mesmo tempo que possibilita uma maior autonomia e adaptabilidade de seus componentes, tem gerado uma maior concentração de capital, uniformidade de produtos, sistemas de gestão e padrões de comportamento em escala ampliada.

O aumento de poder que a humanidade experimenta nos últimos séculos, e especialmente nas últimas décadas, tem se caracterizado pela separação de seus referentes e pela concentração. A volatilidade do dinheiro, sua alta velocidade de circulação tem vindo junto com o controle de poucos atores na cena mundial. Mesmo que tenha um alto componente de pequenas poupanças o capital financeiro é gerido em grandes blocos, sejam fundos de pensão, grandes complexos financeiros ou mega investidores.

A comunicação amplamente desconcentrada pelos mecanismos interativos dos últimos anos, como a internet, ainda guarda nas grandes redes de informação as características da separação de quem vive e de quem fala em seu nome. A comunicação de massa não somente noticia o que interessa às suas agendas editoriais como também as interpretam. Geram padrões de comportamento, definem tipo de beleza e modelos a serem seguidos.

Na esfera do poder político as democracias representativas distanciam representantes de seus representados, mediados pela comunicação de massa ou distanciados pelos mecanismos de concentração de poder pelo processo de eleições que delegam por longos períodos o direito de representatividade, deslocam o poder dos indivíduos para políticos, despolitizando assim a vida das unidades elementares da sociedade e criando uma dinâmica decisória própria vinculada aos interesses dos decisores, distinta daqueles que teoricamente são a fonte de poder, mas que não tem ferramentas efetivas para atuar e decidir.

Uma nova visão de organização social e política requer que cada individuo exercite o poder desde o nível das suas interações diretas até os representantes mundiais. Uma arquitetura mais orgânica de governança mundial implica em um conceito de cidadania que não exclua ninguém, cada ser humano é um componente vivo da vida mundial. Que as condições do exercício político não se restrinjam aos critérios produtivistas, do mundo dos adultos empregados ou incluídos na força de trabalho. Que uma variada cesta de remunerações ou retribuições sociais incorporem valores que o mundo moderno e seus antecessores históricos da chamada civilização excluíam.

Deliberadamente uma sociedade comprometida com a saúde do planeta, com a preservação da vida, com a produção de conhecimento como direitos de cada um, criará sistemas de remuneração para as funções da maternidade, do estudar, do preservar os recursos coletivos, do criar obras culturais, do transmitir sabedoria para as novas gerações, do criar contribuições à ciência e à tecnologia que elevem a qualidade de vida de todos, do criar mecanismos de gestão e equalização dos recursos básicos que respondam às pautas que materializem nossa comunalidade apontada acima. Uma sociedade que operacionalize o princípio da interdependência e celebre a originalidade, o colorido de cada indivíduo ou grupo na associação dinâmica de seus membros, em seus diversos momentos e descobertas, demanda formas de governança baseadas nas interações diretas nos níveis básicos da organização social - as unidades básicas de convivência, ou sejam famílias ou similares e as comunidades de base territorial.

Se a experiência das ecovilas, hoje já uma rede de 15 mil em todo mundo, nos dá o exemplo destas células comunitárias da sociedade, onde cada uma, de forma original, incorpora princípios universais e busca respeitar os direitos decorrentes da consciência da interdependência, outras formas de gestão de comunidades indicam caminhos de recriação do mercado funcionando em bases não territoriais, mas sim como mecanismos de troca. Exemplo destes últimos são os grupos de troca que operam em diversos países e que foram, creio que ainda são, importantes na transição da Argentina. Muitos outros experimentos do que se chama economia solidária existem no mundo cozinhando com bom tempero formas e fórmulas capazes de materializar outros critérios de valor e incorporar mecanismos de governança, de gestão compartilhada das dinâmicas cotidianas. Reinserir o poder na vida de cada cidadão, em suas dinâmicas interativas diárias é um requisito da cidadania planetária.

Se por um lado o princípio da interdependência nos dá a consciência de nosso pertencimento e o mútuo afetar de todos, por outro lado ele nos demanda um cuidado carinhoso e contínuo com cada elemento da vida presente em nosso corpo e na materialidade de nossas relações. A responsabilidade pelo todo deixa de ser um mero preceito moral para ser a incorporação contínua da minha universalidade vivida em cada gesto, serviço, criação, interação. E todo o universo pode ser celebrado em cada flor que nasce, em cada criança que se alimenta, em cada aprendizado silencioso.

Neste cenário, cada unidade individual ou coletiva é aberta e se toca na materialidade das condições compartilhadas que caracterizam a esfera pública. Necessidades básicas dão o tom do chão comum onde cada um precisa se nutrir e ajudar a prover as condições para que todos se nutram, participem e criem.O próprio indivíduo é uma construção dinâmica que se recria constantemente - inclusive suas células e órgãos - nas relações com a natureza e com os demais seres vivos com os quais interage. A sustentabilidade individual depende da sustentabilidade das comunidades da qual a pessoa participa.

O princípio da interdependência chama o princípio completar da autonomia. Se somos partes da teia da vida, somos também seus agentes, afetamos e somos afetados. Quanto maior o conhecimento das causas e condições que constituem o mundo interdependente, maior consciência das possibilidades de atuação e dos efeitos de nossas decisões e atos sobre esta teia. Uma maior autonomia das formas comunitárias em relação aos aparatos de estado pode gerar uma dinâmica mais viva e saudável para a esfera pública, onde a verificação, avaliação e recriação de processos possam se incorporar na dinâmica diária de aprendizagem e gestão compartilhada.

A governança é condição para a prosperidade. Uma prosperidade sustentada depende da governança das unidades da sociedade. Isto implica ver o poder público como uma construção da sociedade, que nasce na sociedade e que suas ações ou omissões afetam a sociedade. Governo é governar alguma coisa. Governar a sociedade é função das instituições políticas onde se inserem os aparatos estatais, que no presente aparecem como estruturas descoladas da cidadania, dos seus referentes. Reinserir o poder na sociedade começa por diminuir a extração de recursos, poderes e competências das unidades básicas da sociedade para os aparatos impessoais, burocráticos e centralizados, dotando estas unidades de condições de governança local.

Isto não significa mera municipalização, que transfere para a esfera dos municípios, e de forma quase sempre impositiva, funções e atribuições dos aparatos estatais centrais, que funcionam sobre a sociedade como se a fonte de poder estivesse neles. Comunidades com maior grau de autonomia poderiam ir se tornando mais responsáveis e introduzir seus membros a uma prática de cidadania ativa. Os corpos gestores em escala mais ampla se constituiriam da articulação destas unidades comunitárias de convivência onde a participação física possa se dar sem constrangimentos ou exigências difíceis de serem cumpridas. As unidades comunitárias funcionariam com constantes negociações, trocas, interações com as demais comunidades em redes de suprimentos, de serviços e de aprendizagem coletiva.

Já se sabe que a humanidade produz há décadas o suficiente para alimentar cada ser humano com três mil calorias/dia advinda somente da produção de grãos, frutas e vegetais. Sabe-se também que podemos produzir por períodos maiores que aqueles nos quais conseguimos estar formalmente empregados. Sabe-se também que existem diversos bens e serviços que não estão monetarizados e são fundamentais para a vida social, como a educação familiar das crianças e outras mais. Ainda, sabemos que os critérios e indicadores que orientam nossos planos estatais e as prioridades de política econômica são tão insuficientes e distorcidos por uma visão financeira economicista, quanto nossos modelos explicativos de uma variável independente para explicar fenômenos complexos e multidimensionais. Quando o poder é intrínseco às relações sobre as quais as decisões se referem ele pode ser exercido de forma mais orgânica, dizendo respeito a pautas mais compreensivas e dinâmicas de acordo com as necessidades, aspirações e descobertas daqueles envolvidos com as questões.

Muitas das comunidades hoje são, na verdade, comunidades de afinidade e não locais. É o exercício de uma outra espacialidade fundamental para a construção de uma cidadania planetária. As comunidades de afinidade perpassam os vínculos tradicionais de família, raça, religião, sexo, nacionalidade. Como estruturadores de uma ordem política mundial as redes que se formam a partir de interesses comuns atuam como articuladores de poder sem serem parte por natureza das estruturas estritamente políticas. Acrescem-se como instrumentos de cidadania e de interação não institucional que podem oferecer aos corpos comunitários e seus articuladores mecanismos de aprendizagem conjunta, potencialização de cooperação e geração de intercâmbios e trocas.

Na esfera das instituições a reinserção do poder na sociedade e na dinâmica dos cidadãos requer uma nova arquitetura de relações de decisão e gestão. Protocolos equalizadores de direitos e regulamentadores de recursos comuns à humanidade devem ser discutidos e aprovados por conselhos/parlamentos que se formarem organicamente a partir da ampliação dos espaços comunitários e seus níveis de gestão desde o local até o mundial. As questões comuns da paz e segurança, sustentabilidade da vida no planeta, direitos econômicos, políticos e culturais básicos, devem ser discutidas em todos os níveis de decisão e gestão e articuladas de forma a garantir as condições essenciais a todos do planeta.

Garantir os padrões de justiça distributiva mínima é uma das condições e objetivos destes corpos de governança ampliados. Também garantir os protocolos que regulamentem as trocas e os empreendimentos individuais e coletivos. A fluidez e comunicação entre unidades devem permitir e garantir a espacialidade ampliada como ambiente legítimo de exercício da cidadania onde se efetivam os direitos básicos, universais, de cada ser humano, não restritivos à idade ou outros atributos separadores acima mencionados. Isto significa ter o planeta como território e as comunidades de diversas abrangências como as unidades estruturadoras das relações cotidianas com seus protocolos próprios, diversos, desde que não inflijam os direitos e garantias universais.

Um fluxo contínuo de conhecer e criar pode se estabelecer nos processos de geração de bens e serviços e nas dinâmicas, nem sempre simples, de resolução de conflitos. Um rico aprendizado, no entanto, pode se estabelecer aí. A ciência, como um corpo de descobertas validadas e testadas na sua trajetória histórica, disponibilizando ferramentas de conhecimento que integrem a racionalidade nos múltiplos processos de conhecimento, ou assimilando estas dimensões transracionais nos seus procedimentos, pode estar a serviço de um grande avanço da prosperidade para todos. A apropriação coletiva do saber gerado pela humanidade é um estágio necessário neste caminho.

As tradições de sabedoria com suas revelações, rituais e celebrações podem oferecer disciplinas potentes de aprendizado multidimensional e de recriação de laços profundos entre os seres viventes e suas origens espirituais. Para tal as religiões e tradições fechadas em si mesmas precisam passar pelo teste da ética universal e não infringirem os preceitos que quase todas elas pregam e prezam. Uma fraternidade além dos rótulos e separações pode se nutrir de uma espiritualidade viva, que mediada ou não por religiões ou instituições similares, mora no coração dos seres viventes como também no pulsar invisível no interior da matéria. O pulsar do mundo manifesto é contíguo com o mistério, talvez pleno de não-movimento, do imanifesto. Reconciliar a vivência ou mesmo a aspiração desta ligação, deste emergir, é uma condição para o passo civilizatório que estamos prestes a dar.

Conhecimento é a chave para que as novas formas de organização e gestão planetária emerjam e se sustentem como dinâmicas criativas e colaborativas. Onde visão correta sustente valores integradores e prazerosos da convivência e da vida. Governança compartilhada e articulada dos processos geradores de paz e prosperidade dependem deste conhecimento incorporado nas instituições e mecanismos operativos do cotidiano da sociedade. As ferramentas para a prosperidade a humanidade já criou e continuará a criar, precisamos construir as novas relações humanas capazes de torná-las propícias e efetivas à dignidade e deleite de todos.

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Cláudia Costin

Tenho uma visão otimista do curso da história. A humanidade vem, ao longo de sua trajetória, refinando sua percepção sobre seu papel no mundo e sobre o universo natural e social que a cerca.O Iluminismo, neste sentido, aparece como um avanço.Permitiu uma valorização do indivíduo como protagonista e portador da possibilidade de transformação do mundo e da razão com atributo humano fundamental para melhor compreensão do seu contexto e de seu vir-a-ser. Sabemos que há abordagens religiosas que trazem como visão central o resgate de um passado dourado que deve ser recuperado. É o saudosismo de uma época áurea, em termos de poder terreno, de uma expressão religiosa particular. O Iluminismo veio, de certa forma, romper com esse ciclo, ainda que tenha trazido consigo sérias perdas na relação entre o indivíduo e a comunidade. Por exemplo, se considerarmos a Idade Média como período de fragmentação do poder político, onde a Igreja passava reinar soberana, reviver-se hoje esse período através de percepções teológicas que levam à valorização do que é pequeno e fragmentado, rouba do indivíduo a possibilidade da sua plena realização. A expressão religiosa deve abrir um espaço para a realização do indivíduo como o bem mais precioso da sociedade e não da sociedade como fim em si, o objeto final de proteção.

A humanidade se caracteriza por suas diferenças. Para se construir uma sociedade harmônica e vitalizada, devemos valorizar e não massacrar as diferenças, as múltiplas formas de "ser no mundo", na religião, nas opções políticas, identidades étnicas. O massacre do diferente com certeza leva a uma perda das qualidades do que é diverso e de sua contribuição para o desenvolvimento humano. Se a religião for oprimida, no mesmo sentido, perde-se a contribuição que ela pode dar ao somatório social.

É importante, porém, estarmos atentos para o fato de que a vida ritualizada preconizada pelas várias religiões pode, se for valorizada só como forma, acabar por ter uma tênue relação com a essência dos valores trazidos por elas: as qualidades como "compaixão, tolerância, confiabilidade, generosidade, humildade, coragem e disposição de sacrificar-se pelo bem comum que formam as bases essenciais, embora ainda invisíveis de uma vida comunitária em evolução", valores esses tão presentes em expressões religiosas como a do judaísmo, perdem-se quando a prática religiosa se torna um conjunto de ritos, sem que haja a percepção de uma força motriz, a força da espiritualidade que lhes dá sustentação.

Se considerarmos que o progresso, conforme Carlos Mattus, é passar de problemas mais simples para problemas mais complexos, o Iluminismo ao desconstruir uma relação de dominação entre a fé cega e a razão libertadora, trouxe novas questões e desafios. Feuerbach chegou a dizer que, com o progresso material haveria de chegar um momento em que o homem não necessitaria da religião.Ora, ocorreu o contrário. Hoje, numa sociedade aparentemente dominada pelo racionalismo materialista, vemos, a exemplo do Brasil, movimentos pentecostais, movimentos esotéricos e outros que ganham espaço na busca incessante pelo transcendente, numa ansiedade humana que não foi sossegada pelo progresso científico alcançado.

Além disso, as instituições religiosas, cristãs ou judaicas tentaram num certo momento colocar a questão política como central, como o elemento mais importante do "estabelecimento do Reino de Deus na Terra". A realização deste paraíso na sociedade humana deveria ser alcançada pela igualdade social a partir de regimes políticos que a promovessem. Mas os próprios "rebanhos" não se satisfizeram com essa colocação e impulsionaram as suas institucionalidades religiosas para uma retomada da dimensão espiritual da religião. Fica aqui a percepção de que o progresso se fez incorporando a dimensão racional, a reflexão crítica e o "ser na história" às práticas religiosas sem, no entanto, ofuscar a Revelação, o elemento essencial da fé, que a define como tal.

No judaísmo, temos um valor forte na ajuda ao próximo, concretizado através da "Tsedaka", que significa justiça, envolve dar ao próximo a sua parte, a caridade como preceito ligado à realização dos planos de Deus na Terra e não como generosidade e grandeza de quem a faz.. Ela é parte de um código de orientações e mandamentos a serem observados por um judeu, uma das 613 Mitsvot, o código de ordenação da religião que, em síntese, coloca cada pessoa com a responsabilidade de aperfeiçoar-se ao melhorar seu entorno, seu mundo (tikun olam).Mas muitos se esquecem e aí entra o rito. Há, por exemplo, períodos festivos em que a "Tsedaka" ou a forma de praticá-la é enfatizada.

Teria o Iluminismo influenciado, logo no seu despontar, outras sociedades e outros pensamentos e práticas religiosas que não só o cristianismo e o judaísmo? Pode-se dizer que sim, já que a globalização não é um fenômeno recente. As visões de mundo interagiam antes da sociedade moderna, embora a ritmo mais lento. É fato que hoje as culturas ao interagirem forjam quase que imediatamente novas culturas, num movimento de integração que pode, como no caso brasileiro tornar-se um cadinho cultural (este sim o verdadeiro "melting-pot" ao contrário do caso americano, muito mais próximo de um mosaico!), num movimento incessante de fusão, onde se, por um lado, há beleza na integração, perde-se, por outro a identidade, a especificidade de cada uma e cria-se o risco da homogeneização. O mundo moderno, em distintas dinâmicas e velocidades, promoveu a crença na ameaça do diferente em escala global, na ameaça de tudo que não se baseie na racionalidade explícita e concreta, como anteriormente faziam certas visões xenófobas e racistas.

O medo do diferente não é novo: o pensamento teocrático e a vida nas aldeias já o continham. Mas o que o mundo moderno faz é estabelecer padrões universais do que é aceitável em todos os campos de conduta. Assim, diferenças regionais no trajar, comer, portar-se em sociedade são eliminadas e substituídas por um jeito Mac Donalds de ser. O preconceito xenófobo e racista que excluía determinadas crenças e raças da possibilidade de acesso a determinadas profissões, a não ser que houvesse uma assimilação que muitas vezes resultava em conversão involuntária, acaba sendo como se substituído pelo monolitismo cultural. Assim, seguidores de algumas religiões sentem vergonha de ser diferentes numa sociedade que formalmente os aceita mas que lhes demanda tais alterações de conduta que os leva a rejeitar sua prática religiosa e, por conseguinte os seus valores. O fiel, ao perder a possibilidade de vivenciar suas emoções, torna-se fragmentado frente à onipotência da razão. Tira-se, então, do ser humano o direito de ser feliz, pois as emoções, vistas num conjunto de percepções psicológicas e espirituais são na verdade o complemento da razão e não sua adversária. Não conseguimos apreender a realidade de forma completa apenas com a razão.

A motivação religiosa torna-se uma expressão do compromisso de cada um com a espiritualidade. Somos, hoje, fruto de uma geração cética que, ainda que cultue seus heróis do passado, a exemplo do povo judeu, não é capaz de identificar a "força" que manteve a determinação de sacrificar-se por eles.

Esta "força" nos é trazida pela religião, religião esta compreendida como algo mais sublime que os meros ritos congregacionais, mas a expressão coletiva de uma força motriz que nos dá sentido e direção na vida. A espiritualidade passa então a ser a compreensão da religião como uma força viva.

Para entendermos o caráter universal que tem a religião, aquela expressão que se concretiza nos Livros Sagrados de todas as tradições, devemos fazer um esforço de exegese, uma vez que a expressão contida nestes Livros é fruto de um processo social em evolução. Não há somente alegorias nos Livros, mas sim a expressão de uma verdade universal que se adapta aos grupos e à época em que aparecem.

O desafio é traduzir estas expressões universais em nossa vida diária. No judaísmo há uma oração, a Shema, que os judeus fazem toda manhã e noite. Nela expressamos que "O Senhor é Um". É único, é eterno, é a totalidade. Parte desta oração está inscrita na Mezuza colocada junto às portas das casas e também em paramentos usados nas orações e colocados junto ao braço, coração e cabeça (simbolizando que a Shema inspira nossas ações, emoções e pensamentos). Este simbolismo é o da busca de inspirarmos nossa vida exterior (casa) e nossa vida interior (paramentos) com as qualidades da compaixão, tolerância, confiabilidade, generosidade, humildade, coragem e disposição de sacrificar-se pelo bem comum. Os rituais religiosos nos servem como a lembrança deste nosso compromisso.

Se o Iluminismo de um lado representou um avanço na nossa libertação da fé cega e do dogmatismo religioso, temos agora, de outro lado, o desafio de aplicar o instrumental da razão para ressignificar o papel da religiosidade, trazendo para nós, seres contemporâneos um sentido mais profundo para estes ritos.

Vejo, como já disse, o desenvolvimento com um sentido positivo. A humanidade, apesar de todo o sofrimento que vemos nos dias de hoje, tem avançado mais do que retrocedido. Eliminamos inúmeras escravidões, emancipamos a mulher, ao menos em alguns aspectos, em vastas áreas do planeta e criminalizamos o preconceito racial em vários países. A universalização do ensino fundamental, se ainda não é realidade generalizada, está incluída nas chamadas Metas do Milênio e um número crescente de meninas anteriormente excluídas do acesso à educação hoje se sentam nos bancos escolares junto com seus irmãos. Vivemos, porém hoje outra natureza de problemas e o interessante é que o ser humano vai desenvolvendo metodologias para resolvê-los.Em outros termos, à medida que o tempo passa vamos criando novas necessidades, a sociedade vai se tornando mais complexa e problemas solucionados são substituídos por novos, próprios desta nova fase de desenvolvimento humano. Para uma tribo indígena talvez a agressão à natureza não é um problema e, entre esquimós já foi usual se matar deficientes porque não haveria condições de sobrevivência. Hoje isso é inaceitável para a maior parte da humanidade.

Esta evolução pode ser percebida ao se analisar o que ocorreu com o nazi-fascismo.Hitler, de certa maneira, encarnava todas idiossincrasias da velha Europa. Quando empreende toda a insanidade que foi a II Guerra Mundial e transforma a xenofobia em projeto de genocídio, constrói o caminho para que, com sua derrota, nunca mais o racismo se torne política oficial de governo nestes países. E a derrota não foi somente a dele, pessoa, ou do Nazismo. Nunca mais a xenofobia e o anti-semitismo se tornaram política oficial de governo nestes países... Existe xenofobia na Europa? Sem dúvida. Existe anti-semitismo? Existe, mas não é mais a visão predominante e nenhum jornal sério terá a coragem de colocar como manchete uma visão racista, coisa que não acontecia antes dessa derrota.

Este é um avanço. Vamos ter retrocessos? Claro, pois, o avanço nunca é linear. Retrocessos acontecem e a guerra do Iraque é exemplo vergonhoso desta possibilidade.Mas, ao se acompanhar os indicadores de desenvolvimento humano, constatamos uma melhoria sistemática das condições de vida da população do planeta (exceção feita aos países africanos) que caminha passo a passo com a evolução nos direitos democráticos e afirmação das mulheres e minorias. Há um aprendizado em curso, o aprender a viver juntos, a respeitar o outro como portador de direitos e beleza.

O poder público também tem um importante papel nesse contexto. Jacques Delors, ex-comissário da União Européia para a Educação, escreveu um relatório preconizando que os europeus ensinassem às crianças a aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a ser (desenvolver todas as suas potencialidades) e, destaco, aprender a conviver, que passa pelo valor da tolerância e respeito ao outro.

O desenvolvimento da humanidade e o desenvolvimento individual não são coisas separadas. O desenvolvimento da humanidade cria condições favoráveis, como que um caldo de cultura favorável para o desenvolvimento individual. Mas eles não são sinônimos, um é o campo onde se semeia e o outro é o que resulta. Já compartilhei no passado da versão de que, para o indivíduo se realizar plenamente, basta desenvolver a humanidade, a partir de uma revolução que mude as relações de produção e implante o socialismo.Com isso, acreditava, a justiça estaria estabelecida. Já não penso mais assim. É fundamental transformar o coletivo, é difícil alguém com fome, com um sofrimento extremo, sem condições de criar os filhos, ficar voltado para seu autodesenvolvimento. No entanto, não me tranqüiliza pensar que vou lutar pela revolução e quando chegar lá se analisa como me torno um ser humano melhor. A ética é um valor para a sociedade, mas também é um valor individual.

É importante entender que o desenvolvimento individual não se faz sem sofrimento. Aprendo que o outro é portador de direitos; a criança pequenina quer brincar com um brinquedo que está na mão de outra e tenta arrancar o brinquedo. O outro não permite. A mãe interfere e explica "olha ele também pode brincar", "mas eu quero também brincar agora e eu quero já". "Não, vai brincar um pouco ele, vai brincar um pouquinho você" e isso é sofrido, não é uma coisa tranqüila, que a criança vai falar "ai que bom". Quando o adolescente está explorando limites e possibilidades e ele descobre que se ele tem novos direitos, os demais também são portadores dos seus. Assim o som alto que lhe agrada perturba o direito ao silêncio do vizinho e a velocidade do seu carro põe em risco a vida de pessoas.

O autodesenvolvimento, acredito, é uma das principais contribuições de uma perspectiva religiosa não simplista. No judaísmo, isso se relaciona com a elevação da matéria. O papel do ser humano não é negar a matéria, mas elevá-la. Não que a carne seja apresentada como negativa ou que o mundo material seja apresentado como algo de que se deve fugir. Nosso papel é fazer com que o mundo se eleve, melhore e isso passa por um profundo trabalho de elevação individual, condição necessária para elevação da matéria. Devemos cotidianamente, para nos desenvolver como seres humanos, fazendo nossa alma animal crescer em diálogo com a alma divina, a centelha que nos dá vida e sentido.. O mesmo ocorre no mundo da matéria: o mundo não é ruim, a matéria não é ruim, a riqueza não é ruim. Não precisamos necessariamente desenvolver um ascetismo; pelo contrário, precisamos conviver com a riqueza sem sermos engolidos por ela. Temos que colocar este lado material a serviço do desenvolvimento da humanidade. O eremita que vai para um deserto, num certo sentido tem uma vida mais simples. Difícil é viver no mundo e colocá-lo a serviço do desenvolvimento pessoal e social. Se me isolo não sou tentado por nada, não tenho inveja de ninguém. Não é que seja errado optar por este tipo de vida, mas é muito mais difícil estar nesse nosso mundo cheio de desafios que nos remetem ao egoísmo, ao hedonismo e, neste espaço, trabalhar para que a humanidade também se desenvolva.

Uma das questões centrais que o pensador francês Edgard Morin levanta é que, os saberes são apresentados de uma forma muito compartimentada e a criança ou o jovem não percebe que o mesmo homem que está submetido às leis da natureza é o que se questiona sobre as leis da natureza. Essas coisas se interligam, não são coisas separadas. A matemática e o francês são duas linguagens: a matemática pode ser aprendida como se aprende uma língua estrangeira, que dizer, uma linguagem.

Seria a religião capaz de ser um desses impulsionadores desse questionamento? Sim, se ela for perseguida de uma forma mais elevada, porque durante muito tempo as religiões funcionaram como caladores de vozes. O questionar-se não era aceitável. Você recebe a revelação, recebe as verdades, apresentadas como axiomas, dogmas e não se tem o direito de questionar. Nesse processo, muita gente vira agnóstico ou ateu. Isso porque a religião tal como muitos de nós a aprendemos não fornece as respostas que uma pessoa com maior profundidade de reflexão faz. As respostas da religião soam como algo impossível de ter acontecido, porque a razão diz que seria impossível. Quando você consegue fazer perguntas e entender, percebe que a religião dá um outro nível de explicações e que se consegue alcançar algo dificílimo, o aprendizado da humildade. Não aquela falsa humildade, resultante de baixa auto-estima. Trata-se da humildade que vem com o conhecimento, condição para uma relação mais profunda com a religião. Trata-se de saber que a razão dá algumas respostas, mas não todas e que nem por isso precisa parar de estar permanentemente se questionando.

A falta de humildade certamente nos leva a uma postura que não permite o aprendizado, aí nos tornamos um velho precoce por não sermos capazes de incorporar idéias novas. George Orwell afirma que uma pessoa se torna velha quando fecha a mente para idéias novas.

Como harmonizar estas idéias para promover o desenvolvimento? Há duas questões que muitas vezes são apresentadas como contraditórias e que têm de ser equacionadas. Uma é o combate à pobreza e a outra o desenvolvimento econômico. O nó todo que estamos vivendo no país hoje é, como lidar com o equilíbrio monetário, quer dizer, evitar a volta da inflação, promover sustentabilidade econômica para o nosso desenvolvimento e ao mesmo tempo combater a pobreza. Há contradições, quando a taxa de juros fica extremamente elevada para proteger a nossa moeda. E num certo sentido isto é importante, porque se nós tivermos inflação, quem mais paga a conta na inflação são os pobres. Por outro lado os juros altos implicam menos dinheiro para o investimento e tendo menos dinheiro para o investimento, há menos empregos, a sociedade se desenvolve menos e, portanto, há mais pobreza.

Não tenho uma receita para resolver esta equação, mas tenho algumas intuições. Primeiro, temos que ter coragem de fazer com que o gasto social não seja voltado para a classe média. Isso significa repensar o papel do Estado. O Estado no Brasil não foi desenhado, não foi concebido para prestar serviços públicos e para melhorar a situação da população mais pobre. Sua origem está ligada à geração de emprego e renda, especialmente por meio da marca registrada de nosso sistema político que é o clientelismo e para baratear o custo de produção de capital, fazendo uma série de investimentos em infra-estrutura. Neste sentido, precisamos dotar a máquina de regras e processos de trabalho mais adequados para implementar políticas sociais competentes e combater a pobreza. Precisamos acabar de redesenhar o Estado para fazer com que o gasto social seja um gasto voltado para os mais necessitados. Pensar em mecanismos mais corajosos de política monetária que não impactem de forma tão perversa a geração de emprego. Para tanto é necessária uma boa dose de coragem.

A coragem é, no entanto, um valor elevado desde que não seja marcado por uma visão messiânica. Uma coragem não arrogante e que tem que estar caminhando com duas coisas: a capacidade de ouvir e a competência para fazer. A idéia totalmente original pode ser rica, mas é fundamental consultar a população beneficiária, especialmente quando se trata de políticas públicas. Da mesma forma, não basta idealizar um caminho original, mesmo que respaldado pelo apoio popular, é importante saber trilhá-lo.

Mas tenho um pouco de medo da palavra "coragem" dado o risco da sua identificação com a onipotência. O fascismo reforçou um estereótipo ligado à virilidade, à capacidade de decisão rápida e ação. Em contrapartida, a democracia é percebida muitas vezes como lenta.Mas nada mais seguro que o processo de formar consensos demandado pelos regimes democráticos. Pode não soar viril. Pode parecer moroso e não conclusivo. Mas permite que o outro seja ouvido, que as múltiplas leituras sobre uma mesma realidade sejam postas na mesa. Isto para a juventude pode parecer uma loucura. "Se você já sabe o que tem que ser feito porque já não sai fazendo?" Ora, o que sei que tem que ser feito pode ser diferente do que o outro sabe que tem que ser feito. Aí está o problema das ditaduras. Elas têm uma aparência de velocidade, de coragem, mas se constroem com base apenas na visão limitada (por humana) do líder.

O importante é cidadania. Acredito em cidadãos que saibam cobrar, porque não existe um líder perfeito. Os dirigentes públicos são seres humanos, têm suas limitações e, neste sentido são frágeis, têm seus interesses egoístas e não adianta esperar que sejam uma super pessoa.. Agora, se são confrontados constantemente com a imprensa livre, que vai exigir uma explicação para seus atos, aumentam as chances de se ter um bom governo. Se os parlamentares que estão no Congresso recebem constantemente cartas dos eleitores protestando porque eles votaram numa lei que contraria o interesse público, porque fizeram concessões não aceitáveis, temos muito mais chance de ter bom governo. O que faz bons governos é uma população bem formada e preparada para cobrar os governantes. Neste sentido, o bom governante é aquele que deixa a população bem informada, podendo crescer e se desenvolver. O líder que tem medo do desenvolvimento do seu povo é, certamente, um péssimo governante.

O governante pode se pautar numa visão religiosa do mundo? Ora, tudo depende de como nós definimos religião. Há uma oração que fazemos duas vezes por dia, antes de dormir e quando acordamos. Ela fala que essas verdades que regem a nossa vida têm que estar nos umbrais da porta, perto do coração e na cabeça, e que ensinemos nossos filhos a fazê-lo.Isto significa que a casa se rege pelos valores da Torá, o meu fazer e o meu coração serão regidos pelos princípios da Torá e minhas idéias também assim se pautarão. O que é isso? É teocracia? Não, é dizer que aqueles valores, a ética judaica regerão as suas ações. Eu não vou ajudar uma instituição de caridade e depois no meu dia a dia no trabalho agir de forma corrupta, não solidária, em desacordo com os valores que aprendi. Toda a prática, o fazer, o sentir e o pensar estarão associados a essa ética e a esse esforço por auto-elevação e elevação da matéria.

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Euclides Marchi

A leitura do texto Ciência, Religião e Desenvolvimento suscitou-me algumas reflexões sobre os diferentes papéis da ciência e da religião no debate sobre o tema do desenvolvimento e sobre os antagonismos que marcaram o uso destes conceitos na explicação da realidade social e científica.

Freqüentemente as duas foram consideradas como conceitos excludentes. A ciência empenhava-se em negar pressupostos da religião nas explicações do mundo físico e das realidades sociais e a religião opunha-se e dificultava os avanços científicos, sobretudo quando estes negavam os princípios da espiritualidade e construíam suas explicações a partir de fundamentos materiais.

Hoje, ciência e religião conseguem manter um diálogo que não é apenas complementar. É uma somatória de contribuições que podem ressignificar o conceito de desenvolvimento e contribuir para novos encaminhamentos em relação aos processos de superação das dificuldades enfrentadas pela sociedade contemporânea. Dessa maneira, as suas especificidades não são entendidas como mecanismos de exclusão, mas como características próprias de cada conceito.

As contribuições da ciência para o desenvolvimento sócio-econômico fundamentam-se em metodologias de pesquisas que visam a melhorar tanto os processos produtivos quanto o bem-estar da sociedade. Em larga escala, superou os preconceitos contra a religião e passou a valorizar também os aspectos culturais, sociais e antropológicos presentes no homem e na sociedade. Por sua vez, a religião ao construir suas explicações, fundamenta-se nas questões propostas pela teologia e pela moral, entre outras, evitando contrapor-se às conclusões das descobertas científicas. Ambas, ciência e religião, ao incorporarem os valores humanos, a cultura e a ética, buscam tratar o homem na sua globalidade e na sua totalidade.

As históricas disputas e o jogo de forças que marcaram os embates entre ciência e religião sobretudo quando tratadas sob o ponto de vista institucional ou quando dependiam das pessoas que nelas militavam, mais do que progressos na descobertas científicas ou teológicas, refletiam os processos de apropriação e institucionalização desses conceitos. Desse modo, ciência e religião no seu estado conceitual, nas suas metodologias de pesquisa, nas suas descobertas e reflexões, no conjunto dos seus rituais e procedimentos específicos não podem ser confundidas com os usos ideológicos que delas fazem os seus especialistas.

Cabe então ressaltar que ciência e religião "de per si" não se opõem, nem se amordaçam. E, se considerarmos que elas são a expressão das diferentes modalidades de apropriação e de uso, os possíveis antagonismos e embates refletem os posicionamentos ideológicos e os interesses dos que delas se apropriaram. Assim, tanto os mecanismos de amordaçamento das manifestações científicas, quanto as tentativas de exclusão de toda e qualquer manifestação religiosa na compreensão do mundo refletem, a meu ver, a luta pelo controle das idéias e do comportamento dos homens. Por isso, em respeito à história, há que se dizer que esse processo reflete o comportamento daqueles que delas se apropriaram e as utilizaram ideologicamente em benefício próprio ou para se sobrepor e controlar o surgimento das novas idéias.

As tentativas de se impor à sociedade uma única forma de explicação da realidade ou de manifestação da religiosidade, como se fosse a única verdadeira, não passa de mero reducionismo. Vejo, sobretudo com muito cuidado, o que as instituições religiosas fazem, especialmente quando querem institucionalizar práticas religiosas ou voltar aos tempos em que se buscava impô-las como únicas e verdadeiras. É muito difícil admitir-se que alguém que pratique uma religiosidade sadia possa comportar-se dessa maneira.

Outro aspecto que gostaria de ressaltar é que no interior das corporações religiosas há pessoas que detém o monopólio do conhecimento, transformando-o em instrumento de poder, seja ele do ponto de vista religioso, seja do ponto de vista científico. Talvez, ao se tratar da ciência isso não tenha ocorrido com tanto vigor como no interior das instituições religiosas. Em que pesem as dúvidas, acredito que o controle da ciência percorreu um caminho mais linear e com maior aceitabilidade. Todavia, uma coisa é certa: ela também se constitui como um mecanismo de poder. Tem sua própria moral, sua ética, tem todo um domínio próprio. Ela não é amoral e também se constitui num objeto de apropriação.

Tomemos como exemplo os procedimentos para se chegar à produção de um medicamento. Ele é propriedade de um laboratório, de um grupo de investidores ou de um país, converte-se numa patente e fica sob controle de interesses específicos em que pese sua relevância para a saúde da população.

Quando a ciência avança em determinadas esferas do saber que eram dominadas pelo poder religioso, consegue com certa facilidade "desbancar", o domínio de determinadas "verdades", provocando a descrença sobre valores religiosos utilizados para explicar a realidade. Nesse sentido a ciência contribui para a perda do controle das "verdades" impostas e permite que outros grupos e outras tendências religiosas, apresentem novos caminhos. Ao apresentar novas alternativas para a compreensão do mundo e da realidade, ao atacar dogmas e verdades historicamente estabelecidas provoca reações sobretudo de determinadas organizações. Hoje, salvo engano, observa-se que há maior facilidade de diálogo entre posicionamentos religiosos e científicos, especialmente se não prevalecer o fanatismo de ambas as partes.

Isso ocorre porque a ciência já não se julga tão detentora da verdade como ocorreu em outras épocas e porque a neutralidade cientifica já não é tão neutra para que se permita fazer qualquer coisa em seu nome e se considere que o seu único objetivo é buscar benefícios para a humanidade. Se isso fosse realmente verdade, estaríamos diante do surgimento de um novo paradigma de homem. Ou seja, ao invés de simplesmente tentar impedir o avanço da ciência, far-se-ia uma discussão sobre o sentido da ciência. Porque também a ciência, da mesma forma que a religião, em determinados momentos, teve uma posição salvacionista da humanidade. Tomemos o exemplo da energia nuclear: quando a humanidade se deu conta da sua verdadeira dimensão? No dia em que ela foi transformada numa bomba atômica e matou centenas de milhares de pessoas em poucos instantes. A idéia de se substituir o Deus das religiões pela divindade da ciência ou de se trocar o salvacionismo religioso pelo científico, de repente, caiu por terra. Tanto quanto a religião, a ciência se mostrou vingativa e atacou o homem e o desenvolvimento científico utilizado de maneira distorcida, de repente, apavorou a todos. O uso equivocado é tão pernicioso quanto o fanatismo religioso.

Outro aspecto que merece atenção é a tentativa de se explicar o desenvolvimento apenas sob o ponto de vista científico. Esse pseudo "paradigma de desenvolvimento" que prometia bem estar a todos, levou milhares de pessoas à miséria e à desgraça. Defendiam-se teses de que o modelo de desenvolvimento adotado salvaria a humanidade, que a sociedade seria liberta da fome e das doenças e teria uma vida de bem-estar. Essas teses são questionáveis, sobretudo porque, proporcionalmente, há mais gente passando fome hoje do que havia há um século ou há algumas décadas atrás. Portanto, esse modelo também representa uma forma de apropriação dos bens econômicos e pode provocar tantas desgraças quanto qualquer outro quando for apropriado de maneira inadequada.

A essas considerações soma-se a necessidade de diagnosticar o conjunto dos valores que uma sociedade elege como elementos que a identifica e preserva seus costumes e práticas cotidianas. A meu ver, os valores estabelecidos e aceitos coletivamente definem as formas de comportamento, as políticas sociais e o modelo de desenvolvimento. Os valores, as crenças e o significado dado à produção do conhecimento contribuem para evitar equívocos nas opções feitas pela sociedade e pelo estado. Não se pode pressupor uma ciência cujos efeitos não contribuam para melhorar as condições de vida da sociedade. O cientista também é cidadão e tem responsabilidade social, participa da cultura e tem valores. Além disso, o progresso científico tem uma historicidade, é produzido num determinado momento, com um determinado objetivo. Portanto, seria totalmente inadequado admitir que o cientista é um ser despido de qualquer perspectiva social; isto é, um cidadão absolutamente esterilizado, imune a tudo o que ocorre ao se redor.

Por esta e por outras razões, entendo a ciência e a religião como manifestações sociais específicas de momentos históricos determinados e, portanto, porque não é pertinente colocá-las em trilhos opostos, mas entendê-las como formas diferentes de manifestação da sociedade.

Assim, se hoje as religiões se abrem para novos diálogos, o mesmo ocorre com a ciência e por meio dele abre-se um caminho para ultrapassar o exclusivismo de um determinado saber.

A leitura do texto Ciência, Religião e Desenvolvimento também levou-me a pensar sobre o dilema do atual modelo capitalista de desenvolvimento. Mais do que nunca prevalece a idéia de que o valor das pessoas reside na quantidade de bens que elas conseguem acumular. Esse dilema se defronta com duas realidades: a inclusão e a exclusão. Ou seja, estabeleceu-se um paradigma de homem que serve apenas para alguns. Esta talvez seja a maior dificuldade que o atual modelo interpôs no seu próprio caminho e que inviabiliza os avanços na direção da equidade e igualdade entre os homens. Isto é, ao colocar o desenvolvimento sob o foco da apropriação de bens, construiu a idéia de que o homem feliz é aquele que tudo tem. No entanto, esta não é a realidade das sociedades contemporâneas. O grito dos excluídos, além do medo, angustia a todos.

Esse grito impõe uma nova tarefa a toda a humanidade na luta pela construção de um novo modelo de desenvolvimento: mudar o paradigma de homem. Tanto a ciência, quanto a religião, são instadas a definir as condições mínimas de vida de uma sociedade para que seus habitantes possam viver com dignidade E, se é possível estabelecer o mínimo, esse novo paradigma poderá prever também o máximo, contribuindo para que o conceito de apropriação deixe de ser individual e assuma sua condição de coletivo.

A partir do momento em que as diferenças sociais de um grupo geram perdas ao outro ou que a condição de vida de uma parcela da sociedade começa a bater à porta da outra, creio que o modelo chegou ao seu limite e é preciso rever os valores. Se o conceito de cidadania é um conceito coletivo e deve ser visto como um bem disponível a todos, então é chegado o momento de mudar de paradigma. O sucesso desse empreendimento requer que tanto a ciência, quanto a religião não se coloquem em campos opostos.

A necessidade de mudar de paradigma fundamenta-se em duas situações extremas: a primeira se caracteriza pelo medo que uma parcela da sociedade tem de perder sua atual condição de vida; a segunda pela solidariedade, ou seja, quando se percebe que a condição de vida de alguns prejudica a dos demais, resta apenas o caminho da solidariedade. Portanto, ou a sociedade assume a solidariedade como um valor social ou viverá dominada pelo medo. Ambos podem ser considerados valores, só que enquanto o medo é expresso em termos materiais, a solidariedade é um bem social, é a valorização da cidadania e do imponderável.

O caminho do medo talvez seja o pior dos caminhos, porque não basta blindar o carro, contratar guarda-costas e armá-los, imaginando estar protegido. Quanto maior o arsenal de proteção, maior o risco, porque todo esse arsenal é um indicador que algo está sendo protegido. Por esta razão a alternativa possível é repensar a dignidade do cidadão, rever a distribuição da renda e os processos de inclusão social, reconceituar a cidadania, redefinir o paradigma do desenvolvimento.

Essa redefinição sustenta-se em diversos pilares, os quais, juntos, definirão o processo de transformação social.

Um dos pilares mais representativos para um novo paradigma de desenvolvimento é a educação, considerada como um dos mais importantes mecanismos de socialização do conhecimento. Educação entendida não somente como escolaridade, mas como algo maior, como produção, apropriação e transmissão do saber e, portanto, como um caminho para o desenvolvimento e como possibilidade para que as pessoas cultivem as diferentes formas de convivência. Nesse contexto a escola desempenha um papel fundamental como local que facilita a apropriação do conhecimento disponível. Ela se constitui numa instituição essencial na transmissão dos valores, na construção da ética e da cidadania; portanto, uma instituição capaz de ajudar a alavancar o desenvolvimento econômico e social, contribuindo para o acesso da população aos bens materiais e morais rumo à igualdade. Ela se torna o local privilegiado para se trocar, para se adquirir e para se criar novos valores. É um espaço de convivência, de contato com o diferente, do pensar diversificado. Ou seja, pode ser uma excelente oportunidade para a construção da cidadania.

Todavia, há que ver a escola também como um local onde afloram interesses e orientações diversificados. Nela, tanto se pode trabalhar com o conceito de cidadania, como promover e valorizar a desigualdade ou promover a asfixia ou negação de valores, caso se omita na tarefa de criar as condições para a discussão da sociedade e de seus procedimentos. Mesmo assim, caso isso ocorra, não há como negar que a simples convivência entre os alunos já é um fator de troca de valores. Ela se constitui de espaços públicos nos quais as pessoas trocam as suas experiências, falam de suas crenças, de sua religião, de suas superstições e daquilo que lhes é mais caro. O pernicioso seria se a escola dissesse: "só há uma única verdade", se filtrasse valores, se impusesse uma religião ou desqualificasse a religiosidade.

Dito de outra forma, seria absolutamente maléfico um sistema educacional que impedisse a discussão de valores em sala de aula, inclusive aqueles defendidos pelas diversas organizações religiosas. Ao contrário, será benéfico quando instigar a realização de debates sobre as formas ecléticas de manifestação do pensamento, das crenças, das vivências e das práticas quotidianas. Quando valorizar o diferente, aquele que não é o da exclusão, da apropriação dos bens materiais, mas o da valorização das múltiplas possibilidades de se pensar o diverso que se soma. O diferente como percepção da alteridade, como forma de existir e de se realizar.

Outro pilar que se constitui como paradigma do Desenvolvimento é a justiça. A ela cabe estabelecer as normas de convivência de uma sociedade para que todos tenham dignidade e liberdade para agir. Uma justiça construída coletivamente e aceita como instrumento de equilíbrio na convivência das pessoas. Caso contrário, se ela se limitar às individualidades, perderá seu caráter social e transformar-se-á numa instituição defensora do interesse individual. Nos seus diversos níveis, isto se refere tanto à comunidade internacional, quanto ao cidadão individualmente. Por isso, também a justiça deve ser historicizada, para poder ser conceituada e entendida e para que se possa estabelecer os parâmetros de comportamento de uma determinada sociedade. Comportar-se diferente, significa estabelecer outros padrões e eleger outros referenciais.

Para que esses referenciais tenham validade não podem nascer de um simples acordo entre partes. Devem estar acima e além delas e devem precedê-las. Sem isso, o que seria "fazer justiça"?

Fazendo uma fusão destes questionamentos com aquilo que apontam as organizações religiosas, parece haver uma certa precedência dos valores religiosos sobre os padrões de comportamento definidos pelas normas da justiça. Exemplo disso é a máxima: "todos são iguais perante Deus". Se na prática isso ocorre não sei, mas é uma tentativa de estabelecer um plano de igualdade entre as pessoas. As religiões colocam essa igualdade como meta a ser atingida. A maioria das religiões não tem um objetivo terreno e material; elas nos remetem a outra esfera de perfeição, fora do mundo da materialidade.

É interessante observar como os formuladores das políticas sociais, às vezes, negam-se a aceitar que as pessoas são portadoras de valores que se geram comportamentos distintos do conjunto dos comportamentos sociais. São os valores espirituais e essa espiritualidade é entendida como um indicador da capacidade de se colocar em prática a solidariedade, a generosidade, a justiça. Indicador que não é entendido como instrumento, mas como meta.

Finalmente, cabe ressaltar que essas são apenas algumas reflexões, passíveis de muitos questionamentos, até porque, a humanidade está sendo colocada em xeque, está sendo instada a optar por um ou por outro caminho. Por isso, embora se questionem os procedimentos adotados pelas instituições religiosas no trato do tema da religião, há que se reconhecer que a religiosidade permeia os atos e comportamentos dos homens e que as instituições religiosas buscam apropriar-se deles, institucionalizá-los e submetê-los a controles. Quando nos atemos aos livros sagrados, como por exemplo a Bíblia, Alcorão e outros, percebemos que afloram as semelhanças, enquanto as diferenças ficam por conta dos mecanismos criados para se apropriar e institucionalizar as experiências históricas da vivência religiosa.

Desta forma, ciência e religião, consideradas como componentes estimuladores do desenvolvimento, significam a possibilidade de ousar ou de construir novas ordens sociais e as mais significativas são aquelas não institucionalizadas. As instituições, muitas vezes, cumprem outro papel, o do controle e apropriação da religiosidade e do conhecimento, da institucionalização das práticas e rituais, da fé e das descobertas científicas.

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Guacira Oliveira

Podemos afirmar que os valores e a ética encontram-se apenas na religião e o conhecimento racional na ciência? Seria a ciência orientada por valores e por uma ética própria? Entendo que existem valores nas ciências, que existe uma ética nas ciências. Faço esta reflexão no plural, por não aceitar as coisas no singular, uma vez que nós somos por demais reducionistas, nos afastando muito da realidade.

Também creio que não devamos utilizar o termo religião no singular e sim no plural, num conceito que agregue as várias religiões, retirando destas os rituais e o fundamentalismo.

Assim, é possível conciliar religiões e ciências. A ciência por um lado, cada vez mais admite suas próprias impossibilidades, cada vez mais reconhece seus limites para analisar determinadas questões e com isso abre um espaço maior para outras "ciências", para outras interpretações do mundo, valorizando tais interpretações de uma maneira diferente de uma verdade dita cientifica, soberana. Existe atualmente um movimento da própria ciência visando reconhecer e valorizar outras visões do mundo. Assim, a convivência dessas duas visões de mundo é perfeitamente viável, possível, porque a ciência está se abrindo para isso. De outro lado, o conflito religioso nos dias atuais tem uma capacidade destrutiva tão grande quanto às disputas e à concorrência de mercado. Então, como discorrer sobre os meios de se conciliar estes dois temas? Há que se trabalhar muito para se desconstruir uma percepção ultrapassada e encontrar o espaço para a conciliação, o espaço da aceitação das diferentes visões e interpretações do mundo, o espaço onde sejam aceitáveis diferentes formas de viver. É esse espaço que estamos construindo.

Se é inegável que as ciências têm valores e parte dessas ciências não estão dedicadas ao ser humano, não têm nele o seu centro, o seu objetivo maior, a sua meta, às vezes, por outro lado, os valores são completamente alienados da religiosidade. Por mais transformadoras que sejam e apesar de promoverem muito mais a justiça e a paz, em vários momentos, as religiões agiram com violência para manter o seu poder. Essa é a história da civilização. Os poderes são mantidos a força e as religiões se mantiveram através do uso da força. A religião engessou-se como forma institucionalizada da espiritualidade.

Harmonizar a religião com a ciência e tratar da sua influência no desenvolvimento torna-se, então, algo desafiador, se não impossível. Há que se discorrer sobre o conceito de desenvolvimento, onde ele foi engendrado, qual o seu objetivo e o que queremos com o desenvolvimento.

Para as Nações Unidas, o que importa é o desenvolvimento humano. Existe toda uma definição calcada no respeito aos direitos humanos. Falamos muito em desenvolvimento econômico e social e terminamos por esquecer o humano. Continuamente qualificamos o desenvolvimento gerando-lhe diretivas de maneira a torná-lo razoável, aceitável, palatável, vendável. Mas, no fundo, mantemos aquela idéia primeira de desenvolvimento que é da modernidade, do desenvolvimento tecnológico, urbano. Nessa visão, um Ianomâmi não será considerado desenvolvido jamais. Esse termo não é aplicável para um Ianomâmi. No seu caso, o termo adequado seria o da prosperidade. Entendo que prosperidade para um povo é viver respeitando a sua cultura, as suas tradições, é ter a solidariedade para com o próximo, seja este oriundo de outras facções, de outras culturas, de outras religiões. Trata-se de reconhecer as verdades da raça humana, assegurando-se a cada um o seu espaço. Se um cidadão não garantir o direito do outro, se um povo não garantir o direito de outro povo, então, não teremos prosperidade no sentido da harmonia, da justiça. Irá prevalecer a concorrência, a violência, a disputa e principalmente a dominação de um sobre outro. Há que se ser solidário com o outro, reconhecer o outro e lutar pelos direitos do outro. Ser solidário é lutar por um direito que não é o seu. Há que se construir culturas solidárias, pois esta é a possibilidade que temos para ensejar a justiça, a eqüidade, e também a solidariedade.

Quando um ser humano se anula perante outro, existe então uma relação que não se processa de maneira pacífica. É uma violência, que pode ser de cunho psicológico, uma violência muito sutil que permite o comando da sujeição. A relação mais elementar de dominação que existe é a relação de dominação do homem sobre a mulher. Observamos que mesmo na base da sociedade, na célula mais simples que é a família, a marca da violência ali está assentada. Essa dominação não acontece de maneira consentida, de forma simples e pacífica. É evidente que não se trata apenas da responsabilidade de cada pessoa, mas é inegável que esta pesa sobre as nossas pequeninas, íntimas e insignificantes histórias individuais, que terminam por validar algo que vem de milênios, fazendo parte da própria história da humanidade. Outras submissões, outros sistemas de dominação foram se sobrepondo ao longo da história da civilização, mas entendo que a dominação patriarcal é a mais antiga dentro do processo civilizatório. O desafio é as pessoas se empoderarem, porque não acredito na possibilidade de alguém transmitir, de dar poder ao outro. O empoderamento das mulheres mudou muito a sociedade em todo o planeta. É a própria pessoa que conquista o seu poder e que o exercita. Uma vez estando empoderado o indivíduo pode agir pela justiça, com a solidariedade que abordamos acima, respeitando os outros e não se submetendo aos outros. O empoderamento poderia ser análogo à autonomia, uma vez que isso implica a possibilidade de relações pacíficas, respeitosas, educativas, igualitárias, solidárias.

Estamos passando por uma crise global de valores. Se não avançarmos no sentido da prosperidade, poderemos resvalar para o da barbárie. Temos um senso de humanidade, de cooperação, de colaboração, de todos aqueles valores que estão impregnados em cada um de nós. É por essa razão que temos conseguido evitar a barbárie. Creio que estes valores podem ter sido adquiridos através da religião.

O feminismo problematiza essa questão. De um lado falamos em produção de riquezas no setor produtivo, que depende dos meios de produção, que assegura o lucro para si mesmo; e de outro discorremos sobre a classe trabalhadora que coloca a sua força de trabalho para produzir e gerar essas riquezas que, em alguma medida, oferece as condições mínimas de sobrevivência de muitos e o lucro de poucos. O feminismo problematiza aspectos que a economia hoje não trata, relegadas a um plano absolutamente irrelevante das relações econômicas. Qualquer trabalho não remunerado não é visibilizado. É desvalorizado do ponto de vista econômico e do ponto de vista social é desqualificado. Um trabalho honesto que a mulher em geral faz dentro da casa, não gera lucro, não produz riqueza, caindo então na desvalorização e desqualificação total. Ao contrário, quando se faz uma guerra, se fala de todo o aquecimento da economia gerada pela guerra, pela venda de armas e tudo o que se destrói tem como contra-partida a capacidade de sua reconstrução. O feminismo ao analisar o mundo busca um novo significado para as relações na sociedade. A economia é um instrumento que tem que estar a serviço da felicidade humana. Se ela não servir para isso, do ponto de vista dos nossos valores, não está servindo para nada. Empoderar as mulheres, dar-lhes autonomia significa também abrir horizontes, criar possibilidades para uma transformação inclusive do ponto de vista econômico, para que a economia de fato esteja a serviço desse bem estar humano.

No mundo político a situação da mulher não é diferente. Ainda hoje, mesmo com a presença da sociedade civil nos mecanismos de gestão, de distribuição dos direitos do Estado, as mulheres ainda são as grandes ausentes. Produzir justiça nessas esferas de governança significa ter a capacidade de distribuir direitos até para quem não está dentro do aparelho do Estado.

Essa participação profunda da mulher transforma toda a existência humana e a educação é uma parte fundamental dessa transformação. Seja a educação no sentido formal ou a educação no da vida social de cada pessoa, de cada comunidade, de cada povo. A educação formal hoje está, como não poderia deixar de ser, a serviço dos valores que são hegemônicos na sociedade. Infelizmente estamos vivendo um momento de crise, mas felizmente existem possibilidades e está em desenvolvimento a transformação do processo educativo, do processo de socialização das pessoas dentro da nossa sociedade. A educação reúne o fundamental para a transformação da sociedade e para a manutenção dos valores que são nela inseridos. Ser capaz de desenvolver uma educação transformadora, seja no âmbito da família, seja na escola ou na comunidade, de alguma maneira é também uma possibilidade de transformação. As subjetividades se constroem a partir de um lugar objetivo que se ocupa no mundo. É possível que uma pessoa do sexo masculino tenha condições de ter uma vivência mais feminina. Uma nova forma de agir no mundo poderá torná-lo mais pacífico.

Na minha experiência pessoal, valores como justiça, solidariedade, igualdade, foram construídos no materialismo, de militante comunista. Portanto, penso que eles podem vir de qualquer lugar. Certamente que a religião pode oferecer a justiça, como também outros valores importantes, que levam cada um a buscar a felicidade para si e para os outros. Esses valores podem estar despidos de religiosidade ou mesmo de espiritualidade. Existem pessoas que admiro profundamente, como Apolônio de Carvalho, um militante comunista, ainda vivo, tendo aproximadamente 90 anos de idade. Apolônio participou da resistência na II Guerra Mundial, veio para o Brasil, foi companheiro de Luis Carlos Prestes na criação do Partido Comunista e depois foi para a Europa. Era um comunista convicto, mas um ser humano de uma beleza, de valores fortes em seus pensamentos. O comunismo na forma como ele ou Martin e essencialmente Engels definiram, é muito lindo: igualdade para todo mundo, de uma sociedade onde todos se respeitariam, a utopia comunista. Talvez naquele momento histórico, poucas religiões fossem capazes de verdadeiramente promover essa utopia, de lutar por eles. Se temos de um lado um Dalai Lama completamente orientado numa concepção de religião, por uma prática religiosa, de outro vejo o Apolônio de Carvalho, sem a liderança do Dalai Lama, mas ambos homens valorosos por sua luta para tornar todos os seres humanos um só. De ambos os lados, podem vir as piores desgraças. A minha experiência individual foi assim. Hoje eu acho que sou uma pessoa espiritualista, não sou mais comunista, mas reconheço que a minha militância política, os valores que construí, essa idéia de humanidade, foi muito construída nessa militância política.

No caso do materialismo você tem que responder por si próprio em um dado momento e essa é toda a sua possibilidade. Você nasce, leva sua luta como um comunista, como um Apolônio de Carvalho, um dia você morre, fez o que tinha que ser feito e então acabou. Não existe nenhum desdobramento. Numa concepção religiosa, o sentido está muito além da sua própria vida. O materialismo traz onipotência, que foi o motor da história durante determinado momento. Esses ideais acabaram com essas pessoas e a justiça ficou numa concepção espiritualista, dentro de uma realidade que ultrapassa a sua própria existência, que ultrapassa a nossa própria racionalidade. Havia muito do racional na onipotência materialista. Então se racionalizava a sua possibilidade de transformar o mundo. Numa concepção mais espiritualista, o futuro a Deus pertence.

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Joaquim de Almeida Mendes

Não sou favorável ao desenvolvimento, em algum dos aspectos, como está sendo implementado. Imagino não ser esse o desenvolvimento da humanidade que nós queremos. Será o desenvolvimento exógeno ou endógeno ou será algo mesclado que possa vir a atender as perspectivas do ser humano sem lhe descaracterizar? A globalização tem fatores positivos para o desenvolvimento, mas ainda tropeça. A globalização não atende, por exemplo, ao preceito religioso dos povos. Querem impor ao islamismo um desenvolvimento ocidental; querem impor ao Japão valores de desenvolvimento ocidental etc. Dentro dessa perspectiva, as pessoas irão se conter até um certo ponto-limite e desse ponto em diante paradigmas serão quebrados. Muitos se sentirão sem referenciais e o processo desenvolvimentista será retardado por milênios, ocorrendo um imenso retrocesso na Civilização.

À medida que o ser humano começa a trabalhar a sua vida interior, a sua ligação com o divino, ele começa a ficar mais harmônico. Porque o divino é simples, é essência. A harmonia com o divino tem que ser resgatada lentamente para o ser humano. Onde é que está ocorrendo o distanciamento dessa harmonia nesse momento? Por exemplo: o brasileiro está, por assim dizer, se televisionando. Ele é guiado hoje por valores televisivos. Se entendo que o ser humano é harmônico, então para os valores que interessam, sinto que estão querendo iludi-lo, gerando um medo ilusório, gerando o desejo do consumismo, transformando-o por fim em um ser realmente teleguiado. Mas há também um pouco de harmonia nesse caos. Se alguém tem um valor harmônico ainda que seja um teleguiado, este valor pode ser trabalhado também dentro de aspectos psicológicos junto com a ciência para que ele seja um sujeito mais ainda. Harmônico com a mãe terra, harmônico com a Natureza.

Mas ele tem que imaginar que vive aqui, onde, como disse São Francisco de Assis, está a minha mãe terra que aos pés dá segurança de chegar. Isto posto, entendo que ele deve imaginar o pisar na terra, com aquela reação normal que o recebe. Entra aí a ciência mostrando a ele a física. O atrito no calcanhar que lhe faz ir para frente, ao caminhar, não é algo que possa ser despercebido: trata-se de uma harmonia, uma dança que ele está tendo com a terra. O caminhar dele sobre a terra é um gesto de amor. A partir do momento que se começa a cobrar esse tipo de amor do ser humano, ele começa a se aperceber de como seria o seu dia se o sol não nascesse de manhã. Como seria a sua vida se imaginasse que não existe mais o sol? Iremos compreender que iremos morrer, fenecer, porque quebramos a harmonia. Podemos deixar de ter sol na medida em que se jogam bilhões de toneladas de poluentes na atmosfera criando nuvens que irão acabar impedindo o sol de brilhar ou, então, esburacando a camada de ozônio e pondo tudo a perder.

Um dos caminhos é harmonizar o homem e a natureza em seu processo de desenvolvimento. Não podemos descartar que as próximas guerras poderão, por exemplo, ser travadas por falta de água. Ao compreender essa verdade, como poderemos, então, poluir os mananciais? Será que o desenvolvimento da soja pode acontecer com a extinção de um rio, de um manancial que existiu? E quando o agricultor for fazer outra irrigação no futuro, como ele terá acesso a água? Ele sabe que está acabando aquela fonte de água e sabe que de um certo ponto para baixo não tem mais água... e as pessoas que estão abaixo da represa que ele fez, como irão viver? Temos um ser humano que não está se harmonizando absolutamente com nada.

É aqui que começamos a tratar de alguns valores morais. Precisamos reunir os valores de respeito ao semelhante. Bem o sabemos: tanto nós quanto os nossos semelhantes têm o mesmo direito de ter água limpa. Imagino a terra como um ser vivo, não a imagino como um ser inerte. Desejo respeitar também esse ser como um ser vivo, depositário que é da possibilidade dessa experiência maravilhosa chamada vida. Tenho que respeitar, como fiéis depositários da divindade, o que Deus colocou aqui, mesmo sabendo que estamos aqui de passagem. Essa experiência, que pode durar 70, 80, 100 anos, devemos fazê-la da melhor forma possível.

O início de uma nova caminhada começa com o respeito ao próximo. A energia para a caminhada poderá ser extraída, obviamente, dos ensinamentos ancestrais que encontramos em nosso próprio cérebro, que são dádivas e potencialidades do Espírito Santo, do divino. Acredito que esses valores existem no ser humano em estado latente. O trabalho das religiões e da ciência é desenvolver a psique, as capacidades, as potencialidades de cada um e buscar em cada alma, em cada coração essa potencialidade. No exemplo dos sábios, no exemplo dos santos, no exemplo daqueles que souberam guiar as civilizações, o ser humano irá buscar valores e começar a sua transformação.

O grande diferencial do mundo de hoje para o mundo de 100 anos atrás é que hoje sabemos que estamos aqui como transmutadores energéticos e na verdade somos transformadores de energia. A energia existe, sabemos que ela não nasceu e que não vai se perder, ao contrário, irá sempre se transformar. Qual será então o nosso papel? É o de aglutinar essas forças de respeito principalmente pelo ser humano e de respeito à mãe-terra. Não são forças simples de trabalhar e nem são forças que sejam dominadas com facilidade, porque são forças de caráter transcendental, forças pouco conhecidas. Alguns líderes das grandes religiões chegaram a esta transformação e alguns chegaram até a deter a capacidade da transmutação. Surge então o aspecto milagreiro das coisas: será que o sujeito do século XXI irá promover o desenvolvimento sustentável gerando um milagre e fazendo redomas em volta de determinadas fontes de água ou de determinadas fontes de ar puro? Então, nesse contexto, sustentabilidade seria um milagre no mundo atual, porque seria um gasto adicional em um mundo que tem grande parte de sua população passando fome.

Acredito que o ser humano não deveria mais esperar pelo aparecimento de milagres. O tempo da espera dos milagres findou. Temos que olhar para a mãe África e ver seu povo morrendo, sendo dizimado de forma planejada, inclusive por potências maiores que querem aquele continente, talvez, para servir como um celeiro ecológico ou, na pior hipótese, para ser depósito de lixo no futuro. Podemos constatar que o que menos se precisa na África é de gente. Tais pensamentos representam valores perigosíssimos porque se a vaidade toma essas valores que são transcendentais, as pessoas que detiverem o poder do desenvolvimento associado a uma base científica sólida e uma religião de base exacerbada podem recuar rapidamente aos tempos da Inquisição.

Retornemos ao valor original da harmonia. Entendo que se tivermos o respeito ao ser humano, o respeito à mãe-terra-natureza e a harmonia dos valores intrínsecos e extrínsecos que tenhamos em função desse respeito dos valores que desenvolvemos, sejam estes morais, éticos, filosóficos, educacionais, transcendentais, religiosos, percebo que começaremos a desfrutar de uma visão mais real e começaremos então um novo desenvolvimento.

A devastação da mata é preocupante. No entanto, a pergunta ainda é: a natureza ou o homem? Se tenho que optar por derrubar uma árvore para salvar um homem, uma árvore de 900 anos, que dilema terrível. Uma árvore que conta a história do Brasil: derrubaria essa árvore ou deixaria morrer o homem? Finalmente, qual é o limite da ética e da ciência? A ética teria um limite nesse caso? Não ouso abordar esse dilema específico com tanta segurança. Prefiro nem responder se é a árvore ou o homem, tal a dúvida que me inquieta.

Qual seria, então, o limite da ética? No caso em destaque, provavelmente os ecologistas queiram ficar com a árvore, mas os ecologistas pugnam pela conservação da natureza para o homem. Sem homem não vai haver absolutamente ninguém - humano que contemple a natureza. Então há que se começar a trabalhar a mente de uma forma muito tranqüila e retornar à origem através dos exemplos dos sábios e dos nossos ancestrais. Perceberemos que foram os mestres e guias espirituais da humanidade, os fundadores de grandes religiões e líderes espirituais, que nos deixaram legados não para serem copiados, mas para exemplificarem, de forma educativa, a validade desses valores. Nem queremos dar aos valores um caráter epistemológico, mas também não podemos resvalar na simploriedade.

Ousaria afirmar que a sociedade padece de credibilidade em si mesma porque os seres humanos ficaram impróprios. Sempre aguardando as oportunidades, os momentos mais fáceis. Acho que grandes decisões deverão ser tomadas. A humanidade precisa delas porque sabemos, por exemplo, que um dia a terra será engolida pelo sol. Como o homem definiria seu próximo passo sabendo que amanhã era o fim de sua odisséia sobre a terra? Nessa hora, sem dúvida, ele saberia tomar decisões. A única certeza moral do homem é a morte. Temos certeza que vamos morrer (a morte física, humana), vamos acabar essa experiência maravilhosa na Terra e vamos morrer. Ora, se nós vamos morrer, sempre imaginamos uma morte indolor, sempre imaginamos a melhor morte possível. Mas temos de tomar decisões. Eu tenho que saber agora se devo ir ao local do sacrifício para que o meu semelhante continue vendo a água correr. Mas, por ter amor à minha vida, chego no meio termo e compreendo que em mim está a responsabilidade igual àquela do beija-flor da famosa fábula que tentava apagar um incêndio na floresta. Tenho que fazer a minha parte.

Não se deve mais ter medo de se falar da religião como uma parceira da ciência, do desenvolvimento, da educação. Temos que falar isso de forma muito aberta, muito contundente e responsável. O primeiro ponto é não colocar na mente das pessoas coisas que as distanciem ainda mais do processo de desenvolvimento educacional. Entendo que a religião deve exercer sua influência através dos valores do direito, da cidadania, da oratória, da linguagem.

A nova educação não será, inicialmente, massiva; será, infelizmente seletiva. Existe uma dificuldade, um temor nas pessoas, de se quebrar paradigmas e valores. Esses paradigmas que estamos buscando são difíceis de serem realizados pelo ser humano. É muito difícil pensar em expandir e contrair os movimentos normais em harmonia com o universo. Geralmente, o ser humano que tenta sempre se expandir, não pensa em ouvir o irmão, silenciar; o ser humano gosta da expressão, da fala. Ele pensa sempre nas disputas, nos espaços, nos valores, no poder e isso concorre para tornar a educação cada vez mais seletiva.

Há que se ter coragem de primeiro fazer esse processo, começando desde o início, com poucas pessoas, buscando um efeito multiplicador. Uma base extremamente sólida é buscar a parceria da escola e através de serviços de extensão, de trabalhos com a comunidade ir inoculando valores no cotidiano. Temos que transmitir a ciência com os valores da religião, da espiritualidade, da vida intrínseca do ser humano, da harmonia com Deus. É urgente passar isso como exemplo de vida dentro de vivências inspiradoras próprias.

O professorado necessita primeiramente ser bem preparado, numa direção de reconquista dos valores do ser humano que estão represados. Um homem novo tem que florescer dentro da gente. Então, para que esse homem novo vingue, surja, é preciso que ele seja tocado com a pedra filosofal para virar a fonte da eterna juventude. Talvez seja essa a grande alquimia que tanto se fala através dos milênios. Existe ouro dentro dele, mas ele precisa saber como tocá-lo. Precisamos ter a coragem de tocar, mesmo que erremos na abordagem inicial. Mas, algo é certo: temos que começar com a pedagogia do fazer. Essa pedagogia do fazer tem que começar pelo trabalho cotidiano do "ensina-me a viver". As pessoas estão querendo novamente que lhes ensinemos valores mais simples, resumamos para elas como é o seu dia-a-dia, porque elas estão num processo tão alucinante que não sabem mais como abordar e vivenciar o dia e dormir. Elas precisam de métodos e disciplinas, precisam saber que todos esses valores que elas aprendem poderão amanhã ser derrubados pela ciência, pela novidade da ciência, por uma fusão nuclear, por uma fissão nuclear, por um novo código genético do DNA, por uma clonagem. Isso feito compreenderão que não podem se apegar a esses valores como sendo a única verdade. Se assim fizermos, as escolas que pensarmos, juntando-se às grandes filosofias, às grandes religiões, darão início a um diálogo produtivo nessa direção.

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Maria de Lourdes Siqueira

Há que se destacar a importância da comunidade negra no pensar da temática da ciência, religião e desenvolvimento. Considerando o caso brasileiro, onde a cor da pobreza é negra, assim como em muitos outros países, buscar novos eixos de referência face à percepção eurocêntrica da relação entre ciência, religião e desenvolvimento é, certamente, algo bastante desafiador.

Precisamos ir além da perspectiva histórica do desenvolvimento e da relação entre ciência e religião dentro do escopo das diferentes resultantes do Iluminismo. O Iluminismo representa um paradigma incompleto de percepção da humanidade. Neste caso, podemos antever que a crítica completa aos sistemas de idéias anteriores surgirá ao se incluir as percepções das diferentes etnias e populações que compõem a diversidade e a ética da sociedade humana.

Considerando-se os aspectos hereditários que caracterizam o comportamento humano e os processos históricos marcados por dominações e desigualdades, somos impelidos a concordar com a negação de um legado à humanidade que vem se desenvolvendo ao longo de gerações em termos de contribuição das populações hoje racialmente discriminadas. Este "legado da cor da pele" não pode ser negado ou desconsiderado quando tentamos propor uma reconsideração dos elementos centrais do paradigma do desenvolvimento humano.

Para a vasta maioria da humanidade a natureza tem uma dimensão espiritual. É fundamental a compreensão que dentro do ser humano existe um anseio fundamental que clama pela transcendência, algo que nos leva ao entendimento de que há que se aprimorar a qualidade das relações humanas, sejam elas raciais, interétnicas, entre pessoas, povos e nações.

Nunca antes, podemos afirmar com segurança, o advento de novos modelos de vida, resultantes das profundas mudanças que redimensionam os temas relacionados aos seres humanos estão ao alcance de uma comunidade global. Esta constatação nos impele a questionar o lugar do negro nesta comunidade e a reformularmos a nossa visão de que os diferentes segmentos da sociedade considerados socialmente minoritários da humanidade, ao estarem aptos a articular "suas aspirações e necessidades", possam ser asseguradas de sua inclusão, o que significaria um passo importante para o término de um processo de exclusão secular que tanto sofrimento tem causado ao longo da história humana.

Como existe uma grande distância entre as organizações da sociedade civil e as raízes da sociedade, torna-se difícil ter uma percepção mais abrangente das relações e interações entre a população e os atores sociais engajados.

Partindo da assertiva de que as iniciativas sociais e econômicas têm negligenciado as culturas, os valores, tradições e percepções dos principais interessados - as próprias pessoas no processo de desenvolvimento é imperativo desenvolver em sua completude este conceito, tendo-se em conta a centralidade espiritual de cada indivíduo.

A própria multiplicidade da humanidade enseja uma percepção múltipla das formas como esta espiritualidade se manifesta, se torna palpável. Surge então o desafio de se estudar uma dimensão diferenciada da espiritualidade vivida pelo negro que, por sua vez, é bastante distinta da espiritualidade que emerge de uma sociedade hegemônica sem levar em conta que, onde o negro é histórico e culturalmente um dos povos constituintes dessa sociedade.

A inclusão dos não hegemônicos num processo de discussão de desenvolvimento e espiritualidade ou de ciência e religião é parte essencial do desafio. Certamente, a inclusão da transcendência de outras tradições religiosas é um imperativo impostergável.

Ao nos referirmos ao papel do conhecimento, é igualmente de fundamental importância que o mesmo tenha como postulado básico o reconhecimento da nobreza essencial de todos os seres humanos. Mas, para não sucumbirmos às tentações de trilharmos o caminho do abstracionismo, que sempre é diversionista, essa nobreza deve ser reconhecida no cotidiano de todas as pessoas.

Há que se ter um novo olhar sobre essas três vertentes do discurso. É este olhar que gera respeito e consideração e que eleva a auto-estima das populações durante longo tempo subjugadas e no mais das vezes, oprimidas. Uma vez reconhecida a nobreza essencial de todo ser humano, estaremos promovendo a igualdade entre as pessoas, o reconhecimento do valor da alteridade, das culturas diversas, bem como a aceitação de cada povo com suas culturas, crenças, costumes, linguagem, religiões, etnicidades, raízes, cores, configurações corpóreas ou corporais próprias e diversas.

Este novo olhar e suas conseqüentes novas atitudes de ver e sentir o outro reforça o papel da educação na promoção de valores e atitudes para o desenvolvimento sistemático e deve encontrar espaço nas redefinições de currículos e nas políticas educacionais. Tal compreensão mais alargada da natureza humana pressupõe uma mudança de método nos processos de produção social do conhecimento, sendo possível assim iniciar uma nova discussão de ciência e religião, a partir do conhecimento de seus processos para educar e formar a alma das pessoas. Este olhar, portanto, deve ser um livre do preconceito e do sectarismo. Assim, propõe-se o resgate da espiritualidade a serviço da construção da igualdade. Isto posto, podemos estar seguros de que o progresso material, a saúde, o trabalho, a moradia, somente têm sentido se resultarem em uma maior percepção e vivência da felicidade que reconhece os níveis social e individual. Alcançada tal percepção da realidade, teremos abertura para reconhecer um novo paradigma de desenvolvimento. Se a aplicação de princípios espirituais integrados nas atividades de desenvolvimento resulta em práticas que promovem a autoconfiança das populações, é importante destacar que o surgimento da autoconfiança entre populações discriminadas é mais difícil de ser adquirida num contexto de desvalorização. Não sendo a sociedade um todo monolítico, a transformação que o desenvolvimento promove nas estruturas sociais em um dado momento resulta em novas estruturas que ainda incidem mais fortemente contra o progresso de outros segmentos sociais. Para que tais transformações possam de fato permear todos os aspectos do relacionamento e da atividade humana, há a necessidade que se tenha um novo olhar sobre a própria sociedade, uma vez que tais relacionamentos são ditados pelas percepções espirituais e práticas religiosas de cada um. Este olhar, portanto, deve ser um livre do preconceito da discriminação e do sectarismo. Assim, propõe-se o resgate da espiritualidade a serviço da construção da igualdade.

O modelo de modernidade apresentado pelo Ocidente quanto ao desenvolvimento, requer uma ampla reflexão. O corrente paradigma de modernização, a favor das hegemonias ocidentais, leva a uma uniformização do conceito do que é desenvolver-se. Suas conseqüências têm sido por demais desastrosas.

Em um certo sentido, podemos ver nas diferentes fases e tentativas de se promover o desenvolvimento, centrado na necessidade dos pobres, a apreensão de definições equivocadas do que seriam "as necessidades humanas básicas" pois os pobres não foram os recipientes do desenvolvimento que as definiram. Os estimuladores do desenvolvimento, sejam governo, agentes internacionais ou organizações não-governamentais não foram capazes de efetivamente promover esse diálogo. Um erro de origem está na constatação de que a própria representatividade das populações alvo, o processo de escolha dos seus representantes e lideranças, ocorreu de forma tal que estes também se distanciaram de suas próprias raízes. Ocorreu que essas lideranças e representações acabaram por buscar uma identidade com aqueles que vinham lhes trazer a possibilidade de desenvolvimento, reforçando novamente modelos eurocêntricos, não se chegando a uma compreensão adequada do que constitui as raízes da sociedade, que no caso brasileiro inclui os negros, indígenas e europeus. A própria diversidade de constituição da população negra-brasileira, com as etnias Geges, Nagôs, Minas, Cabindas, Angolas, Moçambique, a indígena com Tupis, Guaranis, Pataxós, Terênas, Ticunas; e européia, com alemães, italianos, holandeses, franceses, portugueses, dentre outros, mostra a importância do resgate das raízes que constituem esta sociedade. No aspecto da organização econômica, essas iniciativas devem estar voltadas para servir as necessidades das pessoas e é de real importância ter clareza quando se busca identificar as verdadeiras necessidades de cada população. Aqui cabe um papel preponderante à governança.

Três fatores determinam a condição de governança: a qualidade de liderança, a qualidade dos governados e a qualidade das estruturas dos processos existentes. Quanto à qualidade dos governados, há que se notar que no caso do Brasil, representações sociais para construir a democracia nascem das próprias diferenças civilizatórias de um país gerado no âmbito da colonização e da escravidão, de mestiçagem não negociada, de desigualdades, contradições e conflitos e indefinições quanto a questões fundamentais. Tais indefinições incluem o papel do negro na sociedade, bem como o lugar do índio, a contribuição de outras culturas, o que leva a uma necessidade de redefinição da própria representação do país no exterior. Outra qualidade de liderança diz respeito às questões vitais que não são respondidas por uma liderança que demonstra ser inconsciente de quem são os seus governados, quais são as reais estruturas do país, a quem devem servir, como foram historicamente construídas e também quais os critérios de participação em tais estruturas.

Essa multiplicidade, no entanto, é negado, quando mais uma vez se centra o diálogo entre ciência e religião, espiritualidade e materialidade, no rompimento do dogmatismo, superstição e facções teológicas que ocorrem com o advento do Iluminismo.

A afirmação de que "o Iluminismo, na verdade, marcou uma guinada crucial de despertar da consciência humana das garras do dogmatismo e fanatismos religiosos" refere-se apenas a uma percepção hegemônica do homem branco, europeu e cristão. Há que se explicitar como se manifesta esse despertar da consciência humana entre povos da África, Ásia e das Américas, que não participaram e até hoje não participam dessa era pós-Iluminista. A centralidade da discussão no iluminismo reforça o risco de perder-se a dimensão sagrada das outras civilizações e de outras tradições religiosas.

Os valores humanos que constituem a base de um processo de transformação, onde haja a promoção da igualdade, da responsabilidade cidadã, a convivência com as diferenças e o desenvolvimento, que são qualidades necessárias a uma vida comunitária. Na perspectiva do desenvolvimento humano e social emergem igualmente das populações indígenas e negras no continente americano e nas diferentes tradições e percepções na África, Ásia e Australásia. Nosso desafio é também aprendermos com essas populações os valores que trazem como contribuição a esse processo.

Feitas estas considerações, podemos asseverar que nosso maior desafio é o encontro com o âmago da verdade dos outros. É esse encontro que ajudará a superar as dicotomias históricas entre ciência e religião.

Há, também, a necessidade de repensar o que é a justiça e bem-comum, o papel do núcleo familiar nesse processo, o próprio conceito de família extensa a exemplo das famílias africanas, o entendimento de como é operada a justiça, o papel dos mais velhos e sábios no processo e a percepção de como se vê a justiça e com que olhar ela ocorre uma vez que com a justiça poderemos ver com nossos próprios olhos. O papel da justiça como requisito do desenvolvimento, está intimamente ligado a um processo de desenvolvimento moral e espiritual. Assim, há que se questionar as próprias definições morais da nação brasileira: o quanto é visto como imoral tratar o outro desigualmente ou quanto é imoral discriminar?

O mesmo se coloca na questão da "aplicação do conhecimento no centro do planejamento da atividade desenvolvimentista", também nos leva a questionar quem define este conhecimento e a serviço de quem e para que ele é aplicado. É possível que o distanciamento que se dá entre os estimuladores do pensamento do desenvolvimento e a população alvo desse processo é de não se reconhecer a visão de quem são os materialmente pobres, onde se situam, o que pensam para se organizar para sair da pobreza, com quem querem se organizar, que formas de conhecimentos possuem, por quê esses não pertencem às organizações, não se vinculam a elas para transformação de suas vidas, em torno de quem se reúnem, por quê se reúnem e por quê não participam do processo que constrói socialmente o conhecimento oficial hegemônico.

Quanto ao elo que une ciência e religião, enquanto as civilizações dependeram dessas duas forças como dois principais sistemas do conhecimento que guiaram o seu desenvolvimento, temos que considerar a história de toda civilização independentemente de terem a sua história e suas culturas legitimadas socialmente por civilizações dominantes. A herança espiritual brasileira é constituída de três civilizações reelaboradas, reinventadas e recriadas em meio a um processo histórico construído entre colonização e escravidão, no que tange ao Brasil e de dominação em suas formas contemporâneas, no que tange ao mundo.

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Mônica de Oliveira Nunes

Há várias perspectivas nas quais a religião e a ciência contribuem, como forças motrizes, no alavancamento do desenvolvimento das relações entre os integrantes de um mesmo grupo social e entre este e outros grupos sociais de uma mesma comunidade.

Começando com a religião, a sua contribuição depende muito de como ela está presente nos vários tipos de comunidades conhecidas. É preciso saber que religião é essa, como ela se estrutura e se relaciona com os costumes, perfis e padrões dos integrantes desta sociedade/comunidade; de que época histórica se está falando - na contemporaneidade, por exemplo, o que é diferente para cada comunidade. Todos estes aspectos, juntamente com outros, devem ser esmiuçados, dissecados e relacionados ao cotidiano da comunidade em estudo.

A título de exemplo, posso citar um trabalho de pesquisa que fiz em uma cidade baiana que vive em pleno declínio econômico. Na pequena cidade de Cachoeira, Bahia, perto da capital Salvador, observa-se que a religião afro-brasileira realmente tem um papel econômico - se falarmos apenas do aspecto financeiro, deixando ainda de lado o social. É impressionante como em Cachoeira a religião funciona como uma rede de redistribuição de renda. Por exemplo, como as pessoas lá não têm trabalho e renda fixa, a cidade está a cada dia com o nível de desemprego mais elevado. No entanto, elas buscam alternativas a este problema através do candomblé, que atrai os doentes e moradores de outras localidades da Bahia e do Brasil em busca de tratamentos, de consultas, ajuda espiritual, entre outros serviços do gênero. Constatou-se que muitas famílias dessa comunidade se organizam de modo a colocar vários de seus membros participando dessas atividades religiosas. Tais pessoas conseguem uma ampliação de renda através da cobrança da consulta religiosa. O que ocorre então nessa cidade é que imediatamente essa renda é redistribuída àqueles indivíduos que naquela comunidade estão desempregados e que, às vezes, a única fonte de subsistência passa a ser esta.

Esse movimento de redistribuição de renda é algo que abrange essa comunidade e que as pessoas de fora nem avaliam nesta perspectiva! Isso toca no econômico, propriamente dito, de uma forma muito menos capitalista, pois nessa experiência não havia uma perspectiva de lucro, não havia enriquecimento de um desses membros e nem das pessoas que estavam numa posição de liderança, mas uma distribuição ligeiramente equivalente aos membros participantes - perfil bem mais próximo do socialismo que capitalismo. Isso, então, é uma coisa que fascina o pesquisador, pois ele presencia uma maneira real das pessoas tentarem resolver situações de sobrevivência.

Num outro nível, interno e comunitário, se percebe uma rede de solidariedade que se estabelece muitas vezes entre as pessoas que moram naquele lugar pelo simples fato de existir lá uma "Casa de Santo", no centro de um bairro popular que tem um cotidiano miserável.

Via-se uma coisa fora do comum naquela "Casa de Santo", enquanto local sagrado. Ela passa também a ter um papel de um lugar onde as pessoas poderiam vir para se alimentar (falo principalmente durante as cerimônias, mas também em momentos mais cotidianos) e as crianças ficarem lá, brincando, como se fosse uma creche. Era uma "Casa de Santo", de religião, mas um local que também se prestava a outras atividades. Lá se via que as mães se organizavam para trabalhar e deixavam as crianças reunidas dentro da "Casa de Santo". Uma das filhas de santo mais novas, de doze ou treze anos de idade, tomava conta daquela criançada toda. Mesmo dando-se o desconto em relação às devidas proporções geográficas e culturais, essa postura e comportamento é algo inovador para qualquer comunidade. Claro que Cachoeira é uma cidade pequena e, portanto, tem uma outra estrutura. Teríamos mais dificuldade em ver algo parecido com isso em Salvador, uma grande metrópole globalizada.

Partindo desse modelo descentralizador, se cada bairro tivesse a sua "casa de santo" e ela funcionasse como um eixo central de atividades e de religiosidade, certamente se estaria unindo a vida prática à vida espiritual, beneficiando assim as necessidades práticas. Evidentemente, que nem todas as pessoas dessa comunidade são de religião afro-brasileira. Isso também torna este exemplo mais interessante já que as crianças, que não necessariamente eram de tal religião, acabavam também participando, acabaram entrando naquele lugar para brincar ou assistir os rituais. A "Casa de Santo" funciona como um pólo. Ali se vê mulheres usufruindo de um espaço feminino, isso num mundo onde se sabe de tantos conflitos, da violência doméstica, violência de gênero. Algo estritamente feminino é revolucionário. Esse lugar era onde eventualmente uma mulher podia, estando ameaçada pelo marido, se esconder. Havia casos da mulher ficar escondida naquele lugar por um tempo até diminuir a ira, a fúria de seu companheiro. Evidentemente, que às vezes, ali mesmo, o que permeava era um discurso machista. Isso também necessariamente não significa que aquelas pessoas, que dão vazão aos anseios feministas, estão questionando aquela situação machista. Percebe-se que as contradições também fazem parte dessa vivência religiosa.

A religião e a religiosidade podem ajudar a concretizar a expressão da vontade de mudança na sociedade. A religião pode permitir forças transformadoras ou não. Ela pode ser uma forma de amarrar no mais tradicional, arcaico, retrógrado - tive essa experiência em Cachoeira, como também pode apontar para mudanças. Percebia-se que em "Casas de Santo" da cidade havia rituais nos quais fizemos uma análise mais de cunho antropológico, percebíamos que eram rituais que faziam certos questionamentos da realidade. Questionamento sobre situações que qualquer pessoa com alguma criticidade faz em relação à desigualdade, violência de homem contra mulher, a questões às vezes da própria marginalidade social. Ao se estudar o ritual, observa-se que há uma crítica, uma perspectiva. O candomblé historicamente foi fonte de resistência - foi uma das únicas formas de se manter uma tradição sem a qual a população negra teria sido completamente subjugada pela dominação branca. Então, esses são pontos importantes observados neste caso em particular.

Durante a realização de um documentário em uma favela do Rio de Janeiro, João Sales, o cineasta, observava grupos pentecostais. Nestes grupos, sobre os quais se tem muita denúncia em relação ao uso indevido do dinheiro dos seus fiéis, se podia observar outro tipo de ação de suas igrejas. Segundo ele, muitas delas ficavam muito "escondidas" em bairros periféricos e favelas, sem nenhuma expressividade maior, mas era ali que se fazia, por exemplo, negociação com traficante para se conseguir liberar um menino que estaria "perdido" pelo tráfico. A rigor, aquele jovem estaria com a vida ameaçada e a igreja era a única força que havia para possibilitar a reabilitação dele. Mas por que isso? Por que é igreja em si? Não, é porque se acha que, de um lado, ela toca em algo que realmente as pessoas têm enquanto valor e depende muito da força que possui aquela espiritualidade, aquela prática em uma comunidade ou em outra e do seu reconhecimento social. Pode ser que, em certas comunidades, isso não tenha nenhuma expressão. Em outras, pelo nível de organização que ela proporciona de crença, de fé, passa a ter uma representatividade até política mesmo, uma força social.

Que quer dizer, então, que forças sociais existem também em bases periféricas. As agências religiosas podem ser essas forças também. Exemplo disso é o movimento católico e cristão em geral que se vê em certos espaços. Essa postura tem sido algo até muito registrada e seu papel social, teorizado. Em Montreal, no Canadá, quando trabalhei estudando migrantes africanos e caribenhos, percebi que eram muito fortes, por exemplo, momentos nos quais certas crises irrompiam na família, no indivíduo. O que víamos, é que um dos espaços que eles recorriam para tentar dar solução em primeiro lugar era o espaço religioso. Então, eram as igrejas, principalmente as evangélicas, que tinham esse papel. No caso dos hindus, havia mais os centros de meditação. Esses eram os passos primeiros antes de procurar o médico psiquiatra ou até mesmo o policial, o responsável pela questão da migração. Tenho inúmeros registros de entrevistas que consegui fazer com pastores, com pessoas que eram altos gurus indianos e que moravam no Canadá ou que iam àquele país de tempos em tempos e que formavam essa base. Nessa perspectiva, era muito comum essa busca e a religião estava realmente nesse tecido social.

Em relação à consciência social, no sentido de que existem coisas que são cuidadas pelo espaço, mas que as pessoas não desenvolvem necessariamente uma conscientização social como, por exemplo, a violência de homens contra mulheres, e que às vezes o espaço da "Casa de Santo" vai dar guarita a essas mulheres, mas não desenvolve a consciência do machismo que está ali. O próprio espaço é machista e a própria mulher que vem buscar guarita no espaço não se dá conta disso. Mas como é que ela pode transformar o espaço e o espaço transformá-la?

A centralidade do espaço depende, por exemplo, do valor social atribuído, que é um valor que não só aquelas pessoas que estão ali atribuem, mas que a própria sociedade contribuiria para com ele. O candomblé, por exemplo, no momento em que é marginalizado, por mais que aquelas pessoas que participem dele tenham até um sentimento do valor que aquele espaço social opera na vida delas, não há, às vezes, entre eles a coragem de assumir a importância desse espaço socialmente. Porque socialmente ele é marginalizado. Esse é um ponto.

O outro, de como transformar práticas que são feitas de modo inconsciente em algo que seja aprendido de forma consciente, que se transforme em consciência, é uma questão também importante. Sobre esta questão, há vários estudos que também tentam inclusive fazer essa distinção - mas isso é algo mais complexo. A título de exemplo, é válido citar a Igreja Católica, que tem os "teólogos da libertação", que são pessoas que param para refletir sobre as questões sociais, entre outras relacionadas. Quando esses religiosos vão a uma comunidade, eles já têm isso como intenção mesmo. Então, a intenção é que, além da questão religiosa, se consiga trabalhar questões mesmo de cunho social, político, justiça etc.

A Igreja Católica, em alguns dos seus setores progressistas, é completamente distinta das demais, em relação a essa questão. No entanto, em outras religiões há grupos que vão trabalhar com a questão social, mas não têm essa consciência. Então, eles não têm como objetivo estar informando pessoas, construindo consciências críticas. São, então, duas coisas diferentes. Claro que não necessariamente se pode afirmar, que as pessoas da comunidade possam se aproximar mais dessas questões sociais de maneira crítica, dessa consciência e outros podem até se alienar mais participando da vida religiosa. Podem até fazer pactos com grupos que sejam mais de dominação, exploração, em vez de "libertários".

O desafio é saber como é que se encontra o equilíbrio entre os dois, como é que se utiliza a consciência que se tem, que se assume. Claro que não se pode esquecer que as religiões estão inseridas num contexto social, histórico, político. Ainda quando elas têm esses valores e princípios, exercitá-los não é sempre tão simples.

É importante, também, fazer a leitura dos direitos humanos à luz de cada cosmologia que as próprias religiões propõem. Sem dúvida, chega-se a uma perspectiva universal - aquelas coisas a que todos teriam direito. Aí se vê até que ponto uma certa religião favorece ou não os direitos humanos no que prega. Pode estar privilegiando o exercício de certos direitos e deixando outros de lado.

É preciso ir fundo na compreensão do que está sendo proposto por cada religião e, sobretudo, pelas práticas religiosas de pessoas e grupos concretos. Isso é um espaço importante que, sem sombra de dúvida, pode conduzir aos direitos humanos, pensados dessa forma universal. Assim, se vê como cada religião pode contribuir ao desenvolvimento humano e também até sair da posição de aceitação das opressões.

Esse é um ponto que remete à necessidade de que não haja a imposição de valores ocidentais sobre todos os outros e, mesmo, a concepção de homem. Quais são as concepções de homem? Há religiões que o homem tem uma forte ligação com a natureza, quase de mimetismo com a natureza, o que se aproxima, de certa forma, da própria questão da ecologia, da defesa do meio ambiente. Ao analisar certas cosmologias religiosas, chegamos mais perto de uma relação menos conflituosa entre seres humanos e natureza. Podemos também pensar que o universo religioso facilita a expressão de valores culturais mais autênticos de certos grupos sociais.

A título de exemplo, volto um pouco até Cachoeira, onde uma menininha, minha afilhada, não aprendia, não conseguia estudar. Ela não gostava de estudar. Eu sabia que não era uma criança com problemas, ela tinha todas as capacidades mentais e cognitivas para aprender. Comecei a usar certas coisas que ela fazia, que ela gostava de ver no candomblé, que ela gostava de desenvolver, para educá-la. Usava aquilo para que ela começasse a escrever - coisa que ela detestava. Com pouco tempo, começou a desenvolver a escrita e a fazer articulações entre coisas que a escola não permitia que ela fizesse. Primeiro, porque era proibido falar de candomblé na escola - a professora era evangélica e não se podia falar em tal religião.

Neste exemplo, aspectos do Candomblé, como o contato da criança com objetos e animais, estavam favorecendo uma apreensão de conhecimento e isso não era utilizado no espaço formal da escola. Nem me refiro a uma força maior, transcendental, da religião supra-material, que para muitos é algo fundamental na educação. Prefiro citar, neste caso, a auto-estima que permite pessoas a acreditar em si mesmas, bem como da construção de uma identidade coletiva positiva. Muitas vezes, isso passa dentro da religião e é facilitado por ela, porque a pessoa acredita que existem seres, outros, que estão lá presentes, cuidam delas, acreditam nelas. Isso quer dizer que há uma valorização outra que transcende essa valorização ou a desvalorização do social.

Claro que há outros valores que a religião pode contribuir para o desenvolvimento das pessoas. Como falei, a auto-estima é fundamental - se não se tem auto-estima não se consegue nem começar a fazer alguma coisa interessante e transformar o seu redor. Que outros valores então a religião trazia como elemento de transformação do indivíduo para a transformação do grupo maior?

Uma delas é o descentramento, algo menos egóico, menos individualista. Valores de partilha, de solidariedade são percebidos em muitos casos.

Por outro lado, há coisas que são contraditórias na religião. Fala-se do perdão, da capacidade de ter compaixão, entre outras coisas. Mas se sabe que isso não acontece necessariamente com todos. Às vezes há muita vaidade nas pessoas que estão dentro de uma religião. Há também jogos de poder. Disputas até para saber quem vai ficar mais próximo daquele que é considerado o líder. Dentro desse espaço se pode ver que essa "fogueira das vaidades" está lá, viva. Então, na verdade, existem situações nas quais se busca questionar, transcender, observar se realmente há algo divino nas religiões.

Isso é um processo de aprendizado. Na verdade, se houver a consciência de que se está em um espaço religioso, dentro de um processo de aprendizagem, mesmo em uma "fogueira das vaidades", é possível crescer em conhecimentos. Mas, neste bojo de informações surge uma pergunta: como o espaço religioso pode ajudar nisso? Porque ele, por essência, parece ser um bom laboratório desse aprendizado da transformação. Se não consigo auto-estima, se não consigo desenvolver a solidariedade, se não consigo desenvolver partilha, se não passo a ter uma característica menos egóica, se não aprendo a trabalhar em grupo, não vou ter desenvolvimento. Claro que não se está falando, nesse caso, do desenvolvimento tecnológico e material, como ter microondas, nem geladeira, carro, dinheiro, nem nada neste nível. Mas desenvolver o intelecto, os valores.

Se os ensinamentos religiosos, por natureza e essência, levam à idéia da transcendência, surge mais um questionamento: será que isso não é algo que em si reduz a percepção do homem, trazendo-lhe ilusão? Essa transcendência é interessante, porque ela é dialética. Ela é paradoxal - por um lado nos reduz apenas a algo pequeno em relação ao "transcendental". Já por outro, nos dá força e poder para lidar e tentar entender o transcendente. Esse é um movimento que pode levar ao crescimento cultural e intelectual. Um exemplo desta dialética paradoxal é a humildade que Cristo diz que devemos ter. Mas ao mesmo tempo todos podem ser iguais a Ele. Como é que tenho que ser um nada, mas ao mesmo tempo posso ser o tudo. Esse é um movimento fantástico.

O conhecimento dialético, de contradições se dá também no espaço que a religião promove em termos do autoconhecimento através do outro. Ao se ver as dificuldades do outro e se percebendo como um grupo, esse integrante cria uma potencialidade que raros espaços dão. O espaço terapêutico pode dar, mas ele acontece uma vez por semana. Enquanto o espaço religioso pode ser o dia inteiro, a vida toda. Se não se vir a religião como sendo aquilo que se participa uma vez por semana, claro. No candomblé, por exemplo, a Casa de Santo tem uma centralidade da vida das pessoas. As pessoas vão à Casa de Santo a qualquer momento. Não é uma igreja que tem uma placa dizendo: "missa às 18h". Então, só posso entrar às 18h. Mas a Mãe de Santo e o Pai de Santo estão lá à disposição o dia todo, a toda hora. As Casas de Santo são locais onde há uma verdadeira harmonização do material e espiritual. As vidas dos integrantes estão relacionadas. Todo mundo funciona, todo mundo existe, todos têm suas necessidades, mas existe esta centralidade espiritual.

Uma pergunta que atualmente se faz é se podemos ter uma sociedade em que essa centralidade possa ser resgatada, porque ela existiu no passado. Com o nosso cartesianismo de separar as coisas - a religião para um lado e a vida real para outro -, perdemos isso. Pergunta-se, então: será que se pode voltar a ter essa confluência de religião e ciência, nesse aspecto? Será que no futuro poderemos visualizar, retomar isso? Esse é um desafio que a humanidade tem que voltar a enfrentar? Infelizmente, ao que parece, no momento, ainda não há resposta para tais questionamentos. É necessário desenvolver elementos e investigações para se aproximar de respostas no mínimo satisfatórias.

Já em relação a um sistema econômico que resulta da religião, essa redistribuição de renda aos moradores de comunidades religiosas no candomblé, há uma relativa consciência dos seus benefícios. Há quase que uma intencionalidade. Por exemplo, uma "mãe de santo", que tem vários filhos de santo, ela pede e recebe mais ofertas (animais, dinheiro, objetos) dos que têm mais condições financeiras. Em seguida, ela divide, distribui as ofertas para aqueles que não podem pagar ou ofertar tantos bens. Evidentemente que essa distribuição é velada, não é revelada a ninguém do grupo. O filho que tem mais sabe que está dando além dos outros e até suspeita que há distribuição. É como se fosse um pacto, mas não dito. A impressão que dá é que, se essa distribuição fosse normatizada, estragaria tudo, não funcionaria. A Mãe de Santo tem uma capacidade administrativa e de gestão de fazer inveja a muitos gestores e acadêmicos mundo a fora. Ao se falar para um público qualquer que a religião cobra para fazer as consultas - embora todo mundo saiba que ela cobra para jogar os búzios e fazer outros trabalhos - todos vão achar um absurdo! Vão achar que é gente querendo explorar, que é charlatanismo, é enganação. Essa questão econômica relacionada à religião é cheia de subterfúgios. Também se sabe que há os desvios. A Igreja Católica, por exemplo, enriqueceu e Roma é fruto disso. Pelo fato do Estado e da Igreja estarem separados, isso funciona no plano da informalidade. Ao formalizar-se isso, corre-se o risco de voltar do equívoco de antes, a confundir estado com religião.

As qualidades que se vê na Mãe de Santo, que os gestores precisavam aprender, estão relacionadas com o perfil de governância, a capacidade de ser uma pessoa carismática, ter confiabilidade e confiança atribuída - as pessoas saberem que é uma pessoa que não está desviando dinheiro, que não está enganando os fiéis.

Mas, então, o que leva a mãe de santo a ter este perfil? Ela representa aquele grupo porque é escolhida como a mãe de todos. Para tanto, ela precisa ter, enquanto líder, os valores morais aceitos como necessários para o cargo. Às vezes as pessoas até sabem dos defeitos dela enquanto pessoa, porque isso não está mascarado. A Mãe de Santo é uma pessoa que tem também os seus defeitos. O interessante, nesse caso, é que nem sempre o que ela é enquanto pessoa, é o que é enquanto líder. Todos sabem que o bem estar coletivo é uma preocupação dela. O sucesso dela só é importante, isso é muito claro para todos, se o terreiro funciona. Porque a religião para ela é fundamental, a comunhão com todos. Essa é uma coisa diferente do desvirtuamento que se percebe muito na política. As pessoas vão à política para se realizarem individualmente ou conseguir benefícios para um grupo que está próximo na linha de interesse. Uma coisa que é extraordinária de se perceber é que os grandes líderes religiosos não estão na religião para se beneficiar. Claro que há os que vão abrir as suas casas de santo para se dar bem. É diferente daqueles que têm uma legitimidade pelo fato de perceber que o grupo que participa está em questão. Alguém com tal perfil é uma pessoa com inteligência. Tem capacidade de projetar coisas no futuro e fazer articulações, de educar a comunidade.

A educação, enquanto um conjunto de procedimentos, de metodologias que a ciência desenvolveu, a ciência do educar, tem em muitas comunidades pobres uma relação com a espiritualidade e a religiosidade nesse sentido mais elevado, mais puro, não egóico - não da pessoa que abriu uma igreja para se dar bem, mas aquele que vê a legitimidade no fato de reintroduzir valores éticos.

De maneira geral, há dois grandes aspectos que interrelacionam educação e religião. Num primeiro momento, a religião educa, dá valores e, então, projeta o indivíduo para a vida. O outro lado é a educação necessária para que o indivíduo tenha maior acesso a certas religiões. Se alguém quer ter acesso à "Palavra", no caso principalmente das religiões que se fundamentam sobre a palavra escrita, ele precisa antes de uma construção, precisa aprender a ler. Esses dois funcionam juntos. Há pessoas, por exemplo, que simplesmente memorizam, repetem frases, informações. São capazes de repetir, repetir, repetir sem internalizar, sem produzir algo seu, se diluindo no grupo.

O excesso de cada um dos dois aspectos tem grande influência na construção do ser humano. Se ficar só na construção do seu ser, só na educação individual, se vai para um lado. Se ficar só na diluição que a religião proporciona, vai ficar fora da realidade. É preciso ver como é que você constrói o seu ser e também se dilui ao mesmo tempo com todos.

É, então, o extremismo da religião que faz com que ela se torne um espaço massacrante onde perco a minha potencialidade, onde sou enquadrado e sou até meio mortificado. O extremo da educação entendida como a construção do seu próprio ser leva a um individualismo supervalorizado.

A religião vai muitas vezes na contramão do individualismo, pois ela é autenticamente relativa. É pensar que ela tem algo de uma autenticidade, é quase que primordial esse lado de você ser, antes de individual, algo coletivo, ser algo que transcende esse corpo. Na espiritualidade africana, tudo está pautado nesta idéia de que, se algo acontece com o avô, aquilo pode estar repercutindo no neto. Na indiana, há a idéia de se integrar ao cosmos, ao próprio espaço e de podermos também nos abrir enquanto seres numa dimensão muito mais ampla.

Religião e espiritualidade podem, por vezes, ter conotações diferenciadas. A espiritualidade virou individual, porque está sendo ressignificada pelo homem ocidental. Ela é a forma que o homem ocidental encontrou de não entrar em contradição com ele mesmo. Foi de dizer: "eu não sou religioso; eu sou espiritualista". É a forma que ele tem de conter essa religiosidade no plano individual.

Quando se fala na religião, está-se falando de um grupo ou instituição. Minha espiritualidade por outro lado, pode estar no meu quarto, numa atividade que pratico de forma individual. A religião, não. Ela precisa de um grupo para se desenvolver. Não existe religião de uma única pessoa.

Com respeito ao caráter epistemológico da religião e da ciência: não acredito em ciência neutra e puramente racional. Porque a ciência, apesar de ter um método, está permeada de valores, não só no destino que alguém dá àquilo que conhece, mas na própria produção científica. Que dizer, no momento em que você está produzindo sua pesquisa, seus preconceitos, seus valores, também estão construindo um saber. Embora de naturezas diferentes, posso dizer que as religiões também estão permeadas por valores, relações sociais e guardam uma racionalidade consigo.

Se a ciência está aberta para ser contestada por outros grupos, a religião também deve estar aberta ao escrutínio externo. Isso cria o diálogo, isso cria a possibilidade de caminhar junto.

O diálogo entre religião e ciência pode gerar inúmeros conhecimentos para o homem. Se pensarmos em desenvolvimento humano nessa dimensão mais vasta, mais larga, acredito realmente que essa dimensão religiosa traga algo de diferente daquilo que é produzido no conhecimento científico.

Aí acho realmente que, às vezes, as pessoas reduzem quando se fala assim: "a fé que cura". Talvez elas tentem trazer essa influência da experiência religiosa da forma mais simples possível. Nessa fé ou nessa dimensão religiosa, tem muita coisa. É uma dimensão do humano, sem dúvida, nova. Quando entrevistamos pessoas ou mesmo quando temos algumas dessas experiências narradas, percebemos que muitas dimensões da vida pessoal e social estão em jogo. Como traduzir isso ainda é difícil. Tenta-se traduzir pelo domínio do psicológico: é uma forma psíquica, sua auto-estima fica mais elevada. Então, tem essas traduções que tentamos fazer pelo tangível. O que sabemos é que essa vivência religiosa, toda vez que você busca, pode traduzir talvez o que está mais próximo a esse campo do emocional, mas também dessa transcendência, no sentido do encontro com o outro, nessa coisa menos fechada, mais coletiva. Esse e outros vários recursos que vão muito além de uma estratégia de sobrevivência, de solidariedade e várias coisas que se desenvolvem realmente nessa prática de "se encontrar" e começar a "encontrar o outro". Acho que valores são experimentados na prática. Esses valores podem não ser apenas falados, mas eles podem ser vividos. Nessa perspectiva, o espaço religioso é um espaço pode se revelar um espaço de múltiplas potencialidades.

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Roberto Crema

O mundo contemporâneo vive em crise que denomino de "demolição", que é a missão do demo. A missão da fragmentação, da desvinculação, da dissociação e por certo se quisermos nos aprofundar no contexto crítico para compreender o sentido do que está desabando, mas também para entrever e acolher o milagre do que está brotando, do que está surgindo.

O momento que vivemos pode ser visto nesta metáfora que aprecio muito: "a lagarta já morreu e a borboleta ainda não nasceu". Então, precisamos voltar nossos olhos de fato para o momento histórico na "pensamentosfera" européia que deu início a Idade Moderna no século XVII e que depois se desdobrou através do movimento do Iluminismo.

Naquela ocasião, estávamos transcendendo um paradigma. Um paradigma não é uma filosofia e nem uma religião, nem uma ciência, nem uma arte, é uma estrutura que gera pensamentos e, portanto, gera ideologias, gera ciências-artes como foi concebido na sua dimensão mais ampla por Thomas Kuhn, no seu livro sobre as revoluções científicas. Então, o paradigma que estava decadente no século XVII era o que se pode sintetizar como o Aristotélico-Tomista. Aquela grande síntese que São Tomás de Aquino fez resgatando a concepção básica de Aristóteles, que teve momentos maravilhosos como a construção das catedrais, mas que lá no século XVII estava desabando - como no momento está desabando o paradigma do racionalismo científico. Esse paradigma nos momentos mais obscuros, no Medieval, reprimia o fator objetivo, o fator da ciência, se pode dizer que a própria ciência era reprimida em nome de alguma coisa que confusamente era chamada de Deus. Basta lembrar que a diabólica inquisição matou mais seres humanos do que a II Guerra Mundial, ela se prolongou durante séculos e sob o jugo despótico daquilo que acabou se pervertendo num terrorismo consciencial, as mentes objetivas mais ilustres, como a de Giordano Bruno, foram torturadas, atiradas em fogueiras.

Então, precisamos levar em consideração aqueles seres humanos traumatizados por esse contexto que conspiraram por um novo paradigma. Aí cabe um elogio aos traumatizados, esses que captam na própria pele a dor da humanidade que é dilacerada, que é muitas vezes ferida mortalmente. Surge um Galileu que vai nos introduzir no mundo da quantidade, (hoje falamos na qualidade), mas durante séculos ficamos fascinados com a leitura da realidade como sendo aquela dos números, quando Galileu introduz o primeiro método científico, método hipotético-dedutivo e fez uma revolução extraordinária. Bacon nos introduziu na época que a realidade era vista através de um livro, a bíblia que poucos tinham acesso. Bacon fez a revolução do empirismo nos introduzindo aos cinco sentidos - temos que através dos cinco sentidos provar, experimentar a realidade. Bacon sugeria também o controle da natureza, ele dizia "saber é poder". Este princípio de dominação foi introduzido no pensamento moderno.

Depois, aquele que é considerado o pai da razão, Descartes. Ele que partia da dúvida como método sistemático, tão traumatizado que estava pelos dogmas. Foi ele que através do exercício de um raciocínio extraordinário em algum momento chega a conclusão: "para duvidar eu penso e, se eu penso, logo existo". Ele coloca o pensamento como a base ontológica e introduz a análise, que é em última instância decompor o todo para buscar compreendê-lo pelas partes no cerne do pensamento moderno. Descartes era um admirador das máquinas. Ele dizia que os filósofos apenas compreenderiam o ser humano se compreendessem de máquinas. A dimensão mecanicista, portanto, foi introduzida também no novo paradigma. Finalmente podemos falar de Isaac Newton que fez a síntese da matematização de Galileu, do empirismo baconiano e de racionalismo do Descartes. Naquilo que foi um edifício tão portentoso, que ele denominou de física mecânica. Ele extrapolou a metáfora da máquina para o universo. O universo é uma grande máquina movida por leis eternas. Este modelo de Newton foi identificado com a própria ciência durante séculos.

Penso em Voltaire, também, quando ele bradava: "lembre-se das crueldades". Todo movimento liberal que surge foi para matar Deus e, é claro, estes pensadores estavam com razão no sentido de que o que foi reprimido durante séculos eles estavam buscando resgatar. Todo o nascimento da Idade Moderna, que depois se configurou no Iluminismo, foi um movimento compensatório de resgate da razão crítica do pensamento analítico. Comte talvez tenha sido o grande filósofo que foi desvelar diversas facetas dessa razão.

Então, para se compreender a crise que vivemos nesse momento, não podemos deixar de acolher esse surgimento da crise da Idade Moderna com a obra prima desses grandes mentores do que podemos denominar de racionalismo cientifico. Que teve talvez como uma das suas invenções mais inovadoras a especialidade, ou seja, surgiu com esse modelo à especialização, a disciplina, surge à disciplina e como fruto de desenvolvimento disciplinar surge o especialista. Ora, aquilo que era para ser o movimento compensatório dialético, histórico, infelizmente levou a uma outra esclerose, levou de um extremo onde a ciência era reprimida em nome de algo que confusamente era chamado Deus, para os momentos obscuros da modernidade onde a experiência sublime, onde toda essa dimensão essencial - de onde jorram os princípios da ética - é reprimida em nome de algo que confusamente tem sido chamado ciência.

Um cientificismo ou cientismo, como se diz, é o domínio atualmente; ou seja, a razão ocupou o estatuto de uma nova religião. As universidades apresentaram seus novos sacerdotes para a sociedade que são os técnicos e um reitor é denominado de "o magnífico". Ou seja, podemos compreender através desses lapsos, através dessa simbologia como houve a mudança de poder e não foi só a experiência sublime, foi toda a interioridade, a subjetividade, a dimensão da alma, da consciência. Ela foi para o ostracismo e se exilou em templos e mosteiros sombrios e em certas vozes de poetas delirantes muitas vezes.

Assim, estamos em linhas muito vastas, percebemos como houve a mudança de um pólo onde predominava uma visão sintética mas escurecedora, para uma visão exclusivamente e excludentemente analítica. Portanto, isso nos colocou numa dimensão materialista e totalmente dissociada. Ou seja, essas duas funções - a científica e a religiosa que são os dois caminhos clássicos de apreensão da realidade - estão escritas em nosso próprio cérebro através dos dois hemisférios. O hemisfério esquerdo, que constela as funções psíquicas da sensação e da razão do pensamento, seria exatamente esse substrato metafórico neurofisiológico do exercício da ciência e da tecnologia. Enquanto o hemisfério direito, que constela as funções psíquicas do sentimento e da intuição conforma - esse substrato da nossa capacidade de articulação filosófica, foi reduzida a especialidades e epistemologias. Então, no hemisfério direito estaríamos com os dois outros fragmentos epistemológicos, que são a arte e tradição espiritual. Isso levou a uma situação de fato que é esquizofrênica. Ou seja, perdemos de vista o que é a consciência da inteireza e o que é o fenômeno humano integral.

Como produto dessa dissociação paradigmática, estamos presenciando um momento crítico global que denuncia exatamente o esgotamento paradigmático. Isso, porque um paradigma não é só uma visão do ser humano no mundo. Ele fornece, através de seus postulados partilhados por um consenso, uma atitude. Ele modela uma atitude perante o ser humano e perante o mundo. Os sintomas dessa falência paradigmática são bastante visíveis nos noticiários de cada dia - a destruição dos ecossistemas, a exclusão de bilhões de seres humanos, uma escalada global de violência, guerras infindáveis, a violência contra a infância (esse é um sintoma dos mais dilacerantes) e essa falência da ética e o quase fenecimento do Ocidente.

Muito dessa discussão pode ser traduzida nas concepções de ocidente e oriente, que pode ser vista "transgeograficamente". Se pode considerar que o ocidente é um estado de consciência que se refere exatamente a dimensão do hemisfério esquerdo da razão (que às vezes ou nem sempre tem razão!). Uma razão excludente foi denunciada por Chesterton, que dizia: "Louco é quem perdeu tudo, exceto a razão". Ora, então o nosso oriente interior seria o hemisfério direito e que acha bela sincronicidade em português, "oriente-se!". Precisamos orientar nossa ciência, nossa tecnologia por essa inteligência sintética, pelo nosso oriente interior. É claro que isso inicia através de uma transformação individual e precisa ser como que transpirada para a ecologia social para que possa beneficiar também a ecologia ambiental. Nesse sentido, creio que no Ocidente estamos despertando para essa realidade. Os cientistas de ponta, os filósofos e mesmo os artistas e os próprios representantes das religiões estão se dando conta.

Digo que quando uma espécie encontra-se ameaçada na sua perpetuação, mecanismos intrínsecos, biológicos, da sua inteligência são acionados e um novo paradigma é concebido em meio à agonia desse racionalismo científico decadente, moribundo. Não podemos ser contra o lado positivo, evidentemente, da razão. É preciso preservar o positivo do modelo do racionalismo científico. Temos que nos abrir para os hemisférios, para esse potencial inaudito que está inscrito nos hemisférios cerebrais. Temos que aliar, não se trata de misturar.

Na holística, há um princípio que se considera muito valioso: não mesclar, não separar, nem "um" nem "dois". A mescla da ciência com a religião seria algo extremamente degradante e regressivo. Não estamos propondo isso. A ciência tem um caminho próprio, que é o analítico. A religião tem um caminho próprio que é o sintético. Um não precisa do outro. Mas como afirmou Fritjof Capra: "o ser humano precisa de ambos". Diria que são as duas pernas que o ser humano necessita para empreender uma jornada com o coração. Então, evitar o equívoco que seria esta mistura, evitar a regressão da fusão. Porque a Idade Moderna nos trouxe exatamente o benefício da diferenciação que é o "dois". Acontece que nos momentos equivocados e sombrios essa diferenciação se perverteu em dissociação. Precisamos do beneficio da diferenciação, mas nos prevenindo contra a cilada da dissociação que seria o "dois" exclusivo. O cientismo que está ocorrendo se fundamenta apenas no "dois", que estabelece a fronteira - as fronteiras dão origem a todo tipo de conflito. Então, trata-se de evitar o "um" e de evitar o "dois". Precisamos da inteligência do "três". Precisamos, na fusão, evitar o "dois" da diferenciação, através do "três" que seria a inteligência da aliança, que está inscrita também no próprio cérebro - através de milhões de neurônios que conformam o corpo caloso. Concordo com Carl Seagan, que dizia que o futuro da humanidade depende do corpo caloso, uma metáfora que alguns apontam como a terceira visão ou chifre do unicórnio.

No entanto, como forma de controle é preciso fazer algumas pontuações. O primeiro, é que esse "três" talvez esteja sinalizando que estamos presenciando a emergência de algo que vai transcender o que conhecemos tradicionalmente como ciência e como religião. A tarefa do século XXI e do Terceiro Milênio será colher uma nova inteligência humana, será um salto qualitativo que vai integrar o positivo daquilo que conhecíamos como ciência e daquilo que conhecíamos como religião do século XX. De fato, não é difícil constatar que a crise global tem um denominador comum, que se chama o ego. O ego, o egocentrismo encontra-se na fonte mesmo desse momento tão crítico e avassalador que estamos testemunhando. O ego do ponto de vista psíquico seria um elemento básico e pessoal de separatividade. Ou seja, todo o desenvolvimento cientifico clássico tem o ego como suporte. A inteligência egóica é aquela que é regida pela própria consciência de vigília que necessita de um cérebro para decodificar estimulações e que obedece aos padrões estabelecidos de tempo espaço.

Então, não será pela lógica que inventou o problema que se vai resolvê-lo. De fato, precisamos de uma translógica, de uma visão transcendente que não vai ser contra o ego. Mas vai abrir o ego para uma dimensão de solidariedade, de fraternidade e de comunhão que são todas as virtudes que emanam do hemisfério sintético. Ou seja, após o Iluminismo inauguramos, eu diria que uma abordagem determinista que colocou a ênfase no conflito. Darwin, por exemplo, falava do conflito entre as espécies, da competição entre as espécies no seu determinismo biológico. Marx falava da competição entre as classes no seu determinismo econômico. Freud falava da competição entre as potências psicológicas no seu determinismo psíquico e outros determinismos que surgiram como o geográfico etc. A Revolução Francesa que foi um momento redefinidor da história ocidental enalteceu três valores: o bloco liberal-capitalista ficou com a liberdade, o bloco social-comunista ficou com igualdade e, ambos, menosprezaram a fraternidade por uma sessão paradigmática porque ambos são frutos do mesmo paradigma materialista, racionalista, atomicista, mecanicista. Portanto, como lograr essa abordagem da solidariedade e da fraternidade? Diria que essa virtude emana da mente sintética que é o apanágio das religiões. O que significa que é impossível a sobrevivência da espécie através de um salto qualitativo de consciência sem o resgate dessa visão, dessa mente sintética de comunhão. Então, finalmente, gosto muito de falar do pacto do século XVII e do novo pacto do século XXI: no século XVII foi feito este pacto entre o racionalismo científico, que era emergente através dos mentores que já citei, e outros com o poder despótico reinante na época, Igreja. Ou seja, Galileu, Bacon, Descartes, todos tiveram que negociar com a Igreja, quem não negociava poderia terminar como Giordano Bruno. Esse foi o pacto, bastante estratégico e tático também, que se resumiu nessa negociação.

Atualmente, os cientistas, os filósofos, os educadores, os terapeutas, os sacerdotes, despertos para a realidade, que pode ser fatal, com relação à sobrevivência da nossa espécie que encontra-se num grupo de risco de extinção, estão conspirando por um novo pacto. Esse novo pacto é o que chamamos de transdisciplinaridade, que em grande linha seria um encontro da ciência com filosofia, arte e tradição espiritual, um novo diálogo. Desde 1986, através de um grande mentor que é o Bassarab Nicolescu, que liderou o Colóquio de Veneza, da UNESCO, e gerou um documento impactante e talvez um dos mais importantes na história da ciência contemporânea. "A Declaração de Veneza", afirma peremptoriamente que "a ciência chegou diante de seus limites e necessita iniciar urgente diálogo com as outras formas de conhecimento". Esse documento, juntamente com a carta magna da Universidade Política Internacional, confeccionada por Pierre Weil e Monique Thoenig, nos levou a menos de um ano depois da deflagração do documento de Veneza, a realizar o I Congresso Transdisciplinar do mundo, em Brasília, em março de 1987. O evento gerou a "Carta de Brasília", que termina afirmando: "o século XXI será holístico ou não será?". Outros documentos, como a Carta de Paris, como a Declaração de Belém e de modo muito particular a Carta da Trandisciplinaridade, que foi gerada em Portugal e, finalmente em 1997, o Documento de Locardo, todos focando no aprofundamento desse novo pacto que é a trandisplinaridade e que vai nos colocar o grande desafio educacional do século. Isso ocorrerá através de quatro estratégias que são assim resumidas: educar para conhecer, educar para fazer, educar para conviver, educar para ser. Então, para que possamos aliar através do "três" o efetivo ao afetivo, a razão ao coração, a análise à síntese, o intelecto ao espírito, o masculino ao feminino, precisamos seguir colocando em todas nossas formas de saber, pensar e atuar a estratégia da transdisciplinaridade.

Para esta repactuação entre religião e ciência é preciso o que denomino de "mutação consensual", que já está em curso e que vai exigir uma abertura da ciência tradicional e também da religião tradicional. Isso, porque a ciência por um lado tem sido um instrumento de cisão, de fragmentação, que está sendo utilizado irresponsavelmente mais para se excluir, para se matar, para se dominar, do que para outras motivações mais nobres.

Como crítica à religião podemos citar que em 2003, de acordo com Bob Walter, presidente da Fundação Joseph Campbell, presenciamos 55 guerras, das quais 53 tem causas religiosas. Precisamos de uma religião de fato, que honre a etimologia da própria palavra religare. Todos temos que ser sumo pontífices, temos que religar a terra ao céu. A função nobre da religião é essa da religação, porém há o desvio para um certo "materialismo religioso" que movimenta milhões de dólares. Temos certas instituições pseudo-religiosas que se devotam a explorar a fonte de infinito que habita o coração, o cerne do ser humano, dominando e alienando rebanhos em certas negociações que também conhecemos.

Temos que articular primeiro, juntamente com a transdisciplinaridade, a transculturalidade, a vivência e o respeito às diversas culturas por sua singularidade e naquilo também que ela tem de comum e a transreligiosidade, que teria ao mesmo tempo de respeitar todas as religiões existentes. Isso, porque todas elas geraram os seus santos, as suas santas, geraram os seus "Franciscos de Assis", as suas "Teresas de Calcutá". A ênfase precisa ser numa espiritualidade transreligiosa. Está aí a emergência de uma nova forma de ser religioso no mundo atual. Colocar ênfase não naquilo que é histórico, naquilo que é do domínio existencial, naquilo que é institucional e sim nos valores comuns.

Isso, porque todas as religiões surgiram do sagrado, que movimenta certas forças amorosas, que me faz lembrar Teilhard de Chardin, que dizia: "quando o ser humano dominar as forças da natureza, os furacões, ciclones, os oceanos, quem sabe ele também dominará as forças do amor.

Pela segunda vez na história o ser humano terá inventado o fogo"; ou seja, todas as religiões são derivadas do amor em movimento, da força e da chama do sagrado. Agora elas podem se transformar em latifúndios do sagrado, da divindade e querer dominar através desse desvio, também denunciado por Leonardo Boff. Todas as religiões surgem do movimento e desse movimento amoroso, da força do sagrado se geram instituições que deveriam zelar por esta Chama, que nos deu e dá a vida, que nos criou e recria a cada instante.

O que é o desenvolvimento, se não a possibilidade de dar continuidade ao processo de criação? Co-criar é isso que o divino nos deu como oportunidade máxima. Não que a obra fosse inacabada, mas por misericórdia, por compaixão, por amor. Mas, para que eu possa fazer a co-criação, eu preciso parar para refletir. Eu só consigo parar para refletir no momento em que eu faço a religação, porque reflexão é essa religação. É essa colocação da educação para o conhecer. O fazer exige uma parada. Ele exige uma parada para que o fazer tenha um sentido. Foi o que fez Oppenheimer, que foi o líder da Operação Manhattan, que gerou a bomba atômica, quando viu esse artefato explodindo em Hiroshima e Nagasaki. Na sua própria consciência, ele quase enlouqueceu e disse uma frase - depois de ter estudado muito sociologia - e que se tornou célebre: "o maior perigo da humanidade é o cientista alienado". Temos que ampliar isso. É o técnico alienado, é o educador, é o terapeuta, é o empresário, é o político alienado.

O maior perigo da humanidade é o ser alienado. A alienação, sobretudo a alienação do que é o mais propriamente humano, que viemos dar testemunho na Terra. Quando você aponta para uma planta, você está indicando talvez a metáfora mais plena do que é um verdadeiro educador. É um jardineiro que prepara um solo fértil, para que a planta possa se desenvolver na direção do seu milagre próprio e singular. Nenhum jardineiro vai ensinar uma rosa a ser uma rosa ou um bambu a ser um bambu. A planta tem um tropismo para se tornar àquilo que ela é. O que o jardineiro faz? Cuida, propiciando um terreno fecundo, aduba, nem demais nem de menos, aprende a podar. Cada planta exige uma poda. Os limites têm que ser aplicados, centrados no aprendiz. Por que um ser humano não floresceria se tivesse esse cuidado? Então, estamos precisando de jardineiros, um bom jardineiro, menos conhecedor de botânica e mais o amante da planta. Aí, estamos diante da grande pedagogia do amor, que é a primeira e a derradeira lição na escola da existência. Também vejo a necessidade de distinguir o que é vida, da existência, pois, se confunde muito vida e existência.

Uma expressão que está sendo muito cogitada é a de qualidade de vida. Colocando a ênfase na qualidade, já que o racionalismo enfatizou a quantidade, agora temos que nos abrir para a qualidade. Para auferir quantidade, basta uma máquina, um computador. Mas para se verificar a qualidade é preciso de um sujeito, de uma alma e de vida. Gosto de diferenciar vida, de existência, lembrando dois grandes educadores e terapeutas plenos: Buda costumava perguntar para os seus discípulos "o que é o oposto à morte?". Os discípulos respondiam vida, com a mente binária e ele dizia "não, é o nascimento, porque a vida é eterna". Cristo dizia: "vim trazer Vida e Vida em abundância!" Está lá no preâmbulo de João: "No início o logos e o logos estava em Deus e era Deus e o logos encarnou e habitou nas trevas e as trevas não o reconheceram". O logos é a luz da vida que habita cada ser humano; ou seja, a existência é uma manifestação provisória, histórica da própria vida passageira e a vida é o que resta quando já não resta mais nada. Somos fanáticos da existência e tombamos ao lar da vida. Quando alguém faz aniversário, desejamos muitos anos de vida - quero ver quando vamos desejar muita vida nos anos. Porque não importa que eu vá viver alguns anos a mais ou a menos, importa é que haja vida, essa chama, nos meus dias.

Mas a nova pedagogia ainda fala de dois conceitos: conhecer e fazer. Conviver é o terceiro. Como facilitar aprender a conviver. Eu diria que aí precisaríamos de uma alfabetização psíquica, precisamos integrar a alma nas escolas. Como seria colocar a "alma" na escola? Através do desenvolvimento da inteligência emocional. Através da pedagogia das funções psíquicas e estamos fazendo isso há 16 anos na UNIPAZ. Jung falava das quatro funções psíquicas, que são: pensamento, sentimento, sensação e intuição. O racionalismo científico é produto da articulação da sensação com o pensamento. É grande a ingenuidade do racionalismo cientifico em buscar compreender a psique, que é sua mãe, utilizando apenas duas das quatro funções da própria psique. Então, urge uma estratégia educacional que possa facilitar a cada aprendiz o resgate daquela função psíquica que é dominante, procure se dar conta dessa função, desenvolvendo as que estão atrofiadas e buscando integrá-las e harmonizá-las. Isso faz parte de uma educação que também desenvolva a inteligência onírica. O racionalismo científico é o exercício da razão, de uma razão instrumental como o sonho não é racional, transcende o universo do tempo, do espaço e da razão, traz reportagens diárias da alma da pessoa, sinalizando novas direções, advertindo contra alguma ação destrutiva que está em curso. O sonho nos desvela momentos, o sonho pode nos reconectar com a alma da humanidade, com a alma impessoal, com o inconsciente coletivo, com a própria alma do mundo. É trágico constatar que as escolas desprezam solenemente esta inteligência. É como uma empresa que trabalha, de dia e de noite, e que apenas valoriza os produtos diurnos. Relega as preciosidades que advém da mente onírica.

Finalmente, é preciso desenvolver também inteligência relacional. Gosto de lembrar Carl Rogers, um grande pai da psicologia humanística no Ocidente, que se aproximou também da transpessoal. Ele dizia que a maior invenção do século XX foi o grupo. É impressionante como as atividades grupais, a dinâmica de grupo, que nos ensinam a arte de nos relacionar conosco e com o outro, com a sociedade, com o meio ambiente, não foram introduzidas ainda nas escolas. É preciso o exercício relacional, o exercício da intimidade, o exercício dialógico e isso significaria toda uma revolução, para que as escolas pudessem contemplar educar para conviver.

Por que, como um caminho religioso pode vir ao encontro de uma nova pedagogia, de educar para ser? Diz o grande poeta Fernando Pessoa:

Os deuses vendem quando dão, compra-se a glória com a desgraça, ai dos felizes porque passam. Baste a quem baste o que basta, o bastante que lhe baste, a vida é curta, a alma é vasta, ter é tardar.

Quando estamos diante da questão do educar para ser, se ter é passar então o ser é partir. É exatamente nessa inserção na categoria essencial daquilo que constitui o sujeito essencialmente é que uma pedagogia centrada no ser, terá que se fazer iniciática, ou seja, é preciso iniciar o ser humano como nas escolas das tradições espirituais autênticas, que ao longo dos milênios sempre nos ensinaram. Para que serve uma tradição espiritual, uma religião, se não para facilitar que o caminhante se coloque no caminho com o coração e floresça na dimensão essencial, na dimensão da vida? Na vida que é o que é, não é o que passa, apenas somos o que permanece. Então, a pedagogia que se dedique a educar para ser, precisa constelar a dimensão iniciática daquilo que é a educação perene. Facilitar que um ser humano da existência logre o essencial, ou seja, do ego possa descansar no ser. Uma pedagogia que facilite por uma via interior que o aprendiz possa não apenas saber, possa florescer, possa ser.

Em busca do saber o que é desenvolvimento, se chega a uma questão antropológica. É preciso esclarecer os nossos pressupostos antropológicos, ou seja, a nossa visão do que é o ser humano, do que é o ser humano no mundo para então chegarmos a lapidar um conceito de desenvolvimento. Primeiro, é preciso questionar essa falácia do progresso, que foi tão decantada por Comte no século XIX. Para Comte, que é considerado o fundador da sociologia, atravessamos três fases, entre as quais, uma mais mítica - a fase metafísica. Ele estava convencido que no século XIX o pós-Iluminismo estaria concretizando o ápice do que se viu do desenvolvimento.

Nessa ocasião, estávamos aqui fazendo a República no Brasil. Tão influenciados fomos por essa ótica, que a nossa bandeira passou a ser um instrumento de propaganda do lema básico positivista - Ordem e Progresso - que se baseava por sua vez na física mecânica. Sobre isso, há dois aspectos: a estática que se compreende por ordem e a dinâmica que se compreende por progresso. Isso é o que consta na Bandeira Nacional. Essa Bandeira é menor que o povo brasileiro. O povo brasileiro, além da física mecânica, tem um coração vasto e somente pode ser apreendido dentro de uma lógica quântica. Já que não há tempo mesmo a perder, poderemos manter a ordem e o progresso, porque se refere à dimensão analítica, a dimensão positiva da física mecânica. Porém, precisamos talvez, adicionar amor e solidariedade, que se refere ao hemisfério quântico. Aí teremos, quem sabe, um quatérnio que equilibraria o nosso hemisfério ocidental com o hemisfério oriental - o nosso hemisfério da "tecnociência", da ordem e do progresso com o nosso hemisfério da mística, da comunhão, da poesia que se abre para a dimensão do amor compassivo. Na realidade Comte achava que o progresso era inexorável e, sempre avante, hoje sabemos que a sua visão era bastante superficial, bastante ingênua. Porque trata-se de perguntar: que progresso é esse? Que progresso é esse que logramos?

Para poder responder a essa questão que está levantada, é necessária uma reflexão antropológica. Num primeiro pressuposto unidimensional, é necessária uma consideração: o ser humano é matéria. Então, o ser humano é um composto material regido por um cérebro e, nesse caso, estamos diante da concepção materialista - já postulada desde os pré-socráticos e atualmente dentro de um discurso bastante elegante, acadêmico: aquele que propõe que o ser humano é um macaco nu. Então, nesse sentido o desenvolvimento é um desenvolvimento material que possa nos trazer benefícios também materiais. Há um segundo pressuposto, que é o psicossomático - o ser humano não é qualquer matéria, é uma matéria informada. Ou seja, existem no "humano mente", emoções e um pacote de memórias como sempre insistiu Krishnamurti. Nesse caso: "os nossos horizontes se ampliam incomensuravelmente"; ou seja, se o ser humano é corpo e alma, o desenvolvimento passa também a ser considerado sob esses dois prismas - um de desenvolvimento material e outro de desenvolvimento anímico, ou seja, psíquico.

Nesse caso, o desenvolvimento tem que incluir a dimensão do afeto, das emoções, do sonho, da qualidade subjetiva e intersubjetiva. Aí, teríamos que ir além da concepção materialista positivista corrente de que, por exemplo, um país desenvolvido é aquele que apenas tem mais poderio econômico. Podemos constatar que um país pode ser muito bem desenvolvido economicamente e subdesenvolvido no ponto de vista psíquico; ou ainda, um país menos desenvolvido economicamente, pode ser uma referência extraordinária do ponto de vista da alma.

Avanço para um terceiro pressuposto antropológico: o ser humano é soma, é força, é psique, é alma e é luz, é consciência da consciência ou meta-consciência; ou seja, aí estamos diante do que podemos chamar de "mente contemplativa" - que é uma dimensão no humano aberta ao silêncio, à dimensão noética. Portanto, que pode nos trazer a bênção da serenidade, da paz e é também um espaço do imaginal, das grandes imagens estruturantes da consciência, da psique e da sociedade. Alguns irão traduzir luz por espírito, prefiro considerar essa dimensão como sendo aquela única que pode refletir o Absoluto, a Essência - porém, sem com ela se confundir. Estamos também diante de uma questão que considero talvez a mais nobre de uma nova educação: desenvolver a consciência de onde emanam os valores éticos essenciais; ou seja, uma pessoa pode ser desenvolvida do ponto de vista do corpo e da alma e não da consciência. Essa pessoa jamais saberia o que é a paz, porque o corpo têm as suas demandas infinitas e se dá a uma sede que sucede uma fome, que sucede a outro instinto emergente.

Temos portanto as três dimensões suscetíveis de desenvolvimento no ser humano - uma dimensão corporal, material que conhecemos muito bem, porque ela responde pela vertente econômica; uma dimensão psíquica, que vai estar mais conectada com a dimensão política do poder e a dimensão noética, que sempre nas tradições espirituais milenares foram o alvo do desenvolvimento. Sobre esta última, todas as grandes expressões como o hinduismo - com as suas diversas iogas - o cristianismo - com sua forma contemplativa da evocação do nome, as orações - o budismo - com suas diversas formas meditativas - o sufismo - com as danças - as artes chamanísticas. Esses são instrumentos milenares de desenvolvimento da dimensão noética, através da qual podemos refletir isso que chamamos de espírito, de essência ou de grande vida.

A título de satisfazermos aqueles que tem uma dificuldade de entender uma dimensão adicional, pode se qualificar diferentes estágios da evolução da alma, do espírito. Essa é uma reflexão muito justa com a qual concordo, porque o ser humano é aquele que tem consciência da alma e esse é privilégio humano. O próprio mestre dizia: "o espírito é o que há de mais próximo em mim". O mesmo acontece com as pedras, com as aves e com os animais, só que eles não sabem; ou seja, o ser humano seria esse espaço onde o universo pode se saber, pode se saborear, pode ser e nesse sentido o ser humano inclui o infra-humano porque temos essa dimensão da matéria, do mundo vegetativo, do mundo vital animal e constelamos também o supra-humano. O ser humano seria esse resumo da criação e poderemos abordar isso de uma forma mais profunda, infinita. O ser humano é o único que consegue se modificar, ele consegue superar-se, ele consegue superar as leis que o prendem. Ele é o único que é capaz de desafiar as leis que nenhum outro dos diferentes reinos é capaz de desafiar.

Então, a questão do desenvolvimento passa do ponto de vista existencial, porque do ponto de vista espiritual não se fala em desenvolvimento. É um absurdo até onde compreendo falar de desenvolvimento espiritual, porque o espírito está pronto, "a carne é fraca" - dizia Cristo. O espírito é o incriado - só se desenvolve aquilo que foi criado, aquilo que teve início. Portanto, terá um processo e um fim. Agora, como pode se desenvolver aquilo que não se iniciou, aquilo que finda? Trata-se, então, de desenvolver o existencial para que o essencial possa sair, possa se manifestar no existencial. Esse é um tema da "terapia iniciática" de Durkheim, quando ele definia a saúde plena como sendo o estado em que o essencial transparece na existência. O que podemos desenvolver é a dimensão corporal, a dimensão psíquica e a dimensão noética; ou seja, a dimensão consensial profunda de onde uma ética do coração jorra naturalmente, se aí lograrmos evolução e desenvolvimento.

A esse trabalho, Durkheim chamava de disciplina, que é o trabalho meditativo, é o trabalho da limpeza, é o trabalho do auto-esvaziamento das memórias - que ficam impossibilitando esse espelho, já que ele tem uma linguagem emocional racional. É como um espelho escrito com desenhos que vai sempre deformar essa visão da transcendência; ou seja, a diferença de uma teologia e de uma participação mística do universo é precisamente essa. Alguém pode "teologizar", como Tomás de Aquino fez muito bem com o raciocínio, com a dimensão psíquica mental. É como se olhar para uma chama e, falando sobre essa chama, agora mítica, implica se atirar na chama. Aí não haverá mais o que falar. Tomás de Aquino disse que tudo o que ele tinha escrito era insuficiente perante a experiência real que ele teve do espírito.

Isso me faz lembrar de uma passagem de Alexandre, o Grande, quando ele esteve no deserto com Diógenes, um grande sábio. Alexandre disse a ele, então, que foi uma pessoa bem preparada, que fez o sábio Aristóteles como o seu professor. Ele se dirige para Diógenes e disse: "eu sei quando eu me deparo com um grande sábio. Pode me pedir o que você quiser que eu lhe darei". Diógenes responde: "apenas se afaste, porque você está tapando o sol". A luz do sol era uma das poucas coisas que o conquistador não poderia dar ao sábio. Então, às vezes as pessoas dizem: "hoje não tem sol". Isso é um fala descuidada, porque o sol está aí. O que é correto dizer é que hoje há nuvens que ocultam o sol. Da mesma forma essas nuvens que existem na dimensão corporal através das enfermidades, das inclinações indevidas, as nuvens que existem na dimensão psíquica através dos ferimentos, dos traumas e as nuvens que podem obinubilar a dimensão noética é ignorância existencial que nos impede de refletir o que está aí desde todo o sempre e para sempre - o Alfa e o Ômega.

Há algumas "leis" que regem a existência da consciência humana. São princípios fundamentais do desenvolvimento, que denomino de meta-princípios. São princípios de princípios. Considero que são chaves muito preciosas no processo de se lograr a saúde como a plenitude. Diria que um primeiro meta-princípio seria uma meta-patologia, existe uma fonte comum de todo sofrimento humano que é o apego, o apego definido como uma identificação com um desejo, seja qual for, um desejo de posse material, um desejo afetivo ligado a alguém, um desejo ligado a uma teoria, a um status. Desde que você se identifique com algo, como tudo está em mutação, você vai sofrer. Porque o apego levaria ao medo, que levaria ao stress e a todas essas enfermidades da civilização que são tão bem conhecidas. Um segundo meta-princípio, que é também uma lei, uma meta-terapia, um princípio terapêutico inerente a todo o momento ao processo terapêutico, é a presença ou a plena tensão; ou seja, existe uma pequena tensão que tem a ver com uma relação do sujeito com o objeto específico e uma concentração, essa é uma pequena tensão que é cuidada pela pedagogia convencional. Mas a plena tensão é um derivado da qualidade noética, ou seja, é uma tensão sem escolha como diria Krishnamurti. Isso caracteriza uma pessoa saudável. Uma pessoa saudável não é uma pessoa que não tem problemas, é uma pessoa que está atenta a cada instante com relação aos problemas, com relação às maravilhas. Você vai encontrar isso em todas as tradições de sabedoria.

É uma tensão sem foco específico, você está aberto a todos os focos. É uma tensão que seria como uma função do despertar da kundaline, falando na psicologia hindu. Buda vem de "bode" que significa desperto. Buda é o desperto, aquele que despertou. Portanto, o que vai definir uma pessoa com qualidade noética, como a saúde plena, é essa plena atenção ao instante que nos traz tudo que precisamos, e o que vai definir muito a condição normótica, a condição patológica, é a pessoa que se deixa reger pelo passado que é uma ilusão ou pelo futuro que é uma ficção. Que perde um instante, esse instante, que é a própria eternidade no coração da finitude humana.

Há um terceiro meta-princípio de desenvolvimento integral, que denomino de aceitação; ou seja, há três pessoas que querem mudar a realidade, o primeiro é o rebelde que é um imaturo, alguém que está brigando com "papai e mamãe", que os projeta nas autoridades e os imaturos, que se fizeram terapia resolverão tudo. Existe a proposta da maturidade que é a revolução, o revolucionário; o revolucionário é aquele que já faz a crítica da ideologia e através de uma ideologia mais justa busca substituir a injusta. Porém, estamos presenciando a derrocada de todas as revoluções, as revoluções fracassadas, porque as revoluções são frutos do Iluminismo. Como a própria Revolução Francesa que propôs a igualdade que o bloco comunista-socialista enalteceu, a liberdade enaltecida pelo liberalismo-capitalista e ambos não lograram desenvolver a fraternidade, porque ambos são frutos do mesmo paradigma racionalista e materialista. A fraternidade é uma função dessa abertura noética, aquilo que está além da existência. A fraternidade é uma função da comunhão, da consciência de vinculação de não dualidade e de comunhão, na medida em que uma pessoa vivencia sua comunhão consigo, com o outro, com a humanidade, com a natureza e com o mistério, essa pessoa naturalmente vai desenvolver-se na direção da fraternidade. A aceitação é típica desse terceiro líder que precisamos, que é o conspirador - que está além do revolucionário. O conspirador é aquele que se deu conta que ele é um pedacinho de praça pública e se ele quiser ser agente de qualidade, de desenvolvimento no mundo, ele tem que começar por ele próprio. É aquele que aceita a realidade para se alinhar com ela, não é uma aceitação evidentemente comodista ou conformista. Pelo contrário, seja feita a vossa vontade. Gandhi dizia que era o resumo de todas as orações. Isso significa que eu me alinho com a realidade para que possa estar inteiro e com a minha energia, que vem da minha integridade, me atirar no processo da transformação dessa realidade.

O quarto meta-princípio, é a vocação. É a consideração de que somos filhos de uma promessa que nos fizemos e, na medida que me afasto da minha vocação, vou atrair problemas, atrair doenças que são denúncias de contradição e de desvio. A grande tarefa evolutiva é a pessoa se lembrar da sua própria promessa, ou seja, desvelar os talentos que recebeu e que lhe cabe fazer render nessa parábola, que chamo de parábola da vocação, que é a parábola dos talentos. O normótico é aquele que enterra o talento. Então, trata-se de evoluir da especialização para a vocação.

Finalmente, falo de um quinto meta-princípio que é o do serviço. É o viço do ser, ou seja, aí está a lei do amor, esse amor que é uma energia atômica a ser descoberta no século XXI. Esse amor que é a tecnologia mais sofisticada de todos os universos como já disse o mestre. Esse amor de onde viemos e para onde retornaremos, porque estamos condenados a amar. A existência é uma escola para onde viemos aprender a amar e a servir a partir de uma vocação particular. Porque não há forma de se servir mais excelente do que você se tornando quem você é.

Deveremos, primeiro, considerar que esse amor que se fala tanto é, talvez, a proeza mais extraordinária e magnífica. Alguém chegar a ser um presidente da República ou ganhar um Prêmio Nobel. Tudo isso é muito fácil e banal perto da tarefa de se aprender a amar. Essa tarefa, então, pede uma pedagogia, uma pedagogia que possa levar em consideração não apenas o cérebro, ou seja, o corpo, o desenvolvimento cerebral, os reflexos condicionados. Os reflexos condicionados ou adestramento, digamos assim, que se faz através de um exercício racional lógico cerebral, precisamos de uma pedagogia que contemple a dimensão da alma onde o aprendiz vai aprender a se exercitar nessas diversas inteligências, inteligência afetiva, emocional, a inteligência onírica e a inteligência relacional. Mas isso não é suficiente, precisamos de nos aplicar numa pedagogia, numa alfabetização noética; ou seja, facilitar que o aprendiz incline o coração para aprender e possa trabalhar nesse espelho da meta-consciência através de procedimentos e os encontramos em todas as tradições; ou seja, o declínio da ética e o "fenecimento" da civilização ocidental é inexorável com essa dissociação que foi estabelecida no século XVII, entre a ciência e a consciência; ou seja, a subjetividade, a interioridade entre a análise e a síntese, entre a dimensão masculina e a dimensão feminina. Já que a moral fracassa, porque é uma questão introjetiva, como chegar numa ética natural que existe em todo ser humano? O auto-conhecimento para o qual nos convocavam Sócrates, e todos os grandes mestres, é a única forma de prevenir a humanidade das guerras, dos genocídios e das grandes tragédias. Porque somente mata o outro, somente viola, exclui o outro, aquele que não se conhece, porque se conhecer é se conhecer na relação, na vinculação com o outro.

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Rosângela Azevedo Corrêa

O ser humano moderno vive um acelerado processo de secularização; não precisa de Deus para legitimar e justificar os pactos sociais. A religião persiste, mas não consegue ser fonte de sentido transcendente para o conjunto da sociedade.

O sagrado, entendido como a presença de algo irredutivelmente real, é inevitável para qualquer abordagem racional do conhecimento. Podemos negar ou afirmar a presença do sagrado no mundo e em nós mesmos, mas para elaborarmos um discurso coerente com a Realidade somos sempre obrigados a nos referir a ele.

O sagrado é o que liga. O sagrado se une, pelo seu sentido, à raiz etimológica da palavra "religião" (religare - "tornar a atar"), mas ele não é atributo de uma única religião. Certa vez, Mircea Eliade afirmou em uma entrevista: "O sagrado não implica acreditar em Deus, em deuses, ou espíritos. É ... a experiência de uma realidade e a origem da consciência de existir no mundo". O sagrado é antes de tudo uma experiência, portanto é traduzido por um sentimento - o sentimento "religioso" - daquilo que liga seres e coisas e, conseqüentemente, induz nas profundezas do ser humano um absoluto respeito pelos outros, com os quais ele está ligado por estarem todos compartilhando uma vida comum numa única e mesma Terra".

Até onde suas culturas foram conhecidas e seriamente estudadas, de um modo ou de outro, todos os grupos indígenas reconhecem que seus relacionamentos com o mundo natural próximo, como o rio ao fundo da aldeia, distante, como os fundos de uma floresta, até onde se vai raramente, ou imaginado, como o que deve existir "do outro lado do oceano", estão baseados em princípios sociais. Assim, eles decorrem sempre de uma capacidade criativa de pensar a natureza como símbolo e o sentido do simbólico como algo essencialmente social. Uma capacidade criativa, porque nunca é dada ao ser humano, mas precisa ser construída. Vivendo nos mesmos ambientes naturais e convivendo com os mesmos seres - plantas, bichos e minerais - para viver-e-pensar, povos vizinhos podem combinar simbolicamente os mesmos elementos da natureza de maneiras muito diversas e podem produzir tanto tecnologias de alimentação quanto cantos, máscaras, rituais e sistemas de mitos completamente diferentes. Pois eis o indivíduo: biologicamente o ser de uma única espécie, capaz, no entanto, de produzir uma infinidade de culturas. As sociedades indígenas são a melhor evidência deste misterioso milagre.1

1. Em boa medida, as idéias expostas aqui estão baseadas no trabalho de Carlos Rodrigues Brandão "Somos as Águas Puras - o pensamento aborígene sobre o mundo e seu destino", Campinas, SP: Papirus, 1994.

Esta maneira de pensar o mundo, que torna simbólico o natural e depois pensa o símbolo como social, opõe a cultura do indígena à experiência animal de lidar com o mundo. Pois neles, a natureza aparece como um mero conjunto de sinais e, portanto, não existe qualquer consciência da relação entre o ser e o mundo como algo social, mesmo entre os animais de vida coletiva. Ela distancia o "pensamento diferente" do modo ocidental de pensar. Entre nós e a natureza, estabelecemos o fosso de uma "dupla natureza", o que talvez torne o real mais realista e nos permita uma ciência provavelmente mais funcional do que a dos povos indígenas, mas nos impede de simbolizar qualquer relação com a natureza do ponto de vista social.

O que nos escapa é a possibilidade de imaginar o relacionamento humano com o mundo como algo passado entre duas categorias diversas, mas convergentes e comunicáveis, entre duas dimensões de subjetividade colocadas em relação. Pensando como conjunção, o que nós pensamos a partir de uma inevitável disjunção, os povos indígenas movem-se em um imaginário regido de parte a parte por uma ou por inúmeras formas de trocas, de reciprocidades. Isso porque, social e dotado de sentido de um lado (o humano) e do outro (natural), tudo o que se passa entre os humanos e os outros seres de seu mundo são trocas, porque são relacionamentos entre sujeitos, de um lado e do outro. De um lado e do outro de um sistema que só podemos compreender se nos contrapormos, sujeitos, a tudo o mais, objetos.

Portanto, os povos indígenas estão "naturalmente" imersos no mundo natural, vendo-se a si mesmos como as plantas e os animais com os quais convivem prática e simbolicamente. Há um conhecimento científico indígena do mundo e cada cultura particular o faz variar de acordo com a maneira como combina os seus próprios termos de significação da realidade. Dentro de uma lógica de explicação da origem dos seres humanos, um povo indígena pode imaginar-se descendente de uma união entre o sol e a lua, enquanto um outro pode considerar-se gerado por um casal de animais totemicamente tido como ancestral. Os povos indígenas vêem-se no interior de uma trama de relações ativas, intencionais e significativas no mundo da natureza. Isso com a condição de sentir este mundo como alguma coisa não apenas viva, mas vitalmente significativa, ou seja, algo animado e reciprocamente social. Social no sentido de, por exemplo, poder reger-se de acordo com as regras grupais de aliança e parentesco. Um mundo em que o indivíduo se inclui justamente porque pode "trocar" bens, serviços e significados de alguma maneira, tal como as pessoas o fazem, fazendo disso a possibilidade da própria vida social. Neste amplo e generoso campo de permutações, os povos indígenas vêem-se em trocas continuadas com a natureza e, também, em sistemas de trocas entre eles, por meio da natureza. Assim, o mundo em que vivem e o mundo que conseguem imaginar são, ao mesmo tempo, um sujeito de trocas e um contexto. Digamos isso de outra maneira:

As relações com a natureza não são assim nunca, tratando-se de sociedades humanas, relações naturais, mas imediatamente sociais. Não somente elas se travam a partir de formas sóciopolíticas determinadas, como pressupõem dispositivos simbólicos específicos, isto é, instrumentos conceituais de "apropriação" do real, cuja característica distintiva é a de serem culturalmente especificados, ou seja, relativamente arbitrários, e não determinados univocamente por parâmetros objetivos.

(Viveiros, 1992)

Do ponto de vista da modernidade ocidental, a chave dos relacionamentos entre categorias de pessoas é a idéia de produção. Em boa medida, é a produção de bens da natureza por meio de valores, regras e códigos de permutações sociais - aquilo que nas nossas sociedades atribui o próprio significado dado à natureza - de que não nos sentimos parte e que é concebida em função de sua subordinação aos projetos e intenções humanos.

Desde que, para nós, só existe consciência social em um dos pólos, o nosso, somente existe ação dotada de sentido do lado humano, isto é, social. Entre o indivíduo e seu mundo, para nós, não existe a possibilidade de trocas entre sujeitos diferentes, mas a apropriação legítima do pólo do sujeito agente sobre um plano de objeto reagente, mas passivo, e não dotado de capacidade de permuta.

No imaginário dos povos da floresta, as mesmas permutas entre a sociedade e natureza são algo mais do que relações recíprocas: elas são interconstituintes. Seres humanos e outros seres do mundo natural continuamente estão se reconstituindo como tais, por meio da continuidade de trocas que atualiza perenemente a lógica da vida: a reciprocidade entre sujeitos sociais passíveis de serem naturalizados e seres da natureza passíveis de serem socializados. De parte a parte, cada ser é aquilo em que se torna em si mesmo, como resultado de trocas sociais vividas também com a natureza, com um outro: ser humano, animal, planta, monte, rio ou deus.

Os Kariri-Xocó vivem às margens do Rio São Francisco, vizinho à cidade de Porto Real do Colégio, estado de Alagoas, se esforçam em manter um segredo que só poderia ser compartilhado entre seus membros, que segundo Clarice N. da Mota, este segredo torna-se o centro simbólico aglutinador dos "filhos da Jurema", resgatando seu preço à liberdade grupal e à identidade indígena. Ela conta que em uma ocasião, um fazendeiro local ousou violar a sacralidade do Ouricuri e acaba morrendo. O ponto principal da estória é que o fazendeiro estava tirando lenha da mata do Ouricuri, sem permissão dos seus donos. Na exegese nativa a mata tem uma natureza sacra e, portanto, inviolável. Qualquer lenha, seja cortada ou caída, pertence tão somente aos "encantados da floresta", seres espirituais, ou a seus donos terrestres, os Kariri-Xocó. As árvores vivas não podem ser abatidas, porque nelas residem seres espirituais vivos ou "encantados". Além disso, a floresta tem a proteção de seus habitantes invisíveis, que a dominam para o usufruto dos que os respeitam. As pessoas que entram na mata do Ouricuri são os iniciados já considerados como "filhos de Jurema" - isto é, os pertencentes aos grupos indígenas que celebram a santidade do seu espaço. Mas o fazendeiro não deu atenção a estes protestos, considerando-os "superstição" e continuou utilizando, para seu usufruto, um dos poucos espaços de mata ainda existentes na região. Ria-se das estórias de morte e vingança contadas pela população local. Logo, no entanto, começou a sofrer de alucinações auditivas, nas quais uma voz lhe comandava que tomasse veneno. Tal foi a insistência destas vozes, que ele acabou tomando um forte veneno, de origem vegetal e se matando. O ponto crucial da estória é que os "encantados" fizeram que o homem desse fim à sua própria vida, castigando-se pela violação do que era alheio e sagrado. Outra versão do mesmo conto é que o pajé teria envenenado este homem por meios mágicos, fazendo com que sua bebida preferida se tornasse veneno. É uma lenda que se conta para perpetuar a crença no poder do pajé e dos "encantados" da "mata sagrada", dos Kariri-Xocó.

É por isso que, em muitos mitos de culturas indígenas de todo o mundo, atos essencialmente sociais de seres e corpus de seres da natureza fundam e regeneram planos da realidade social (um clã, uma tribo, uma nação indígena, uma instituição tribal, como o matrimônio ou a matrilocalidade, um rito de passagem, uma crença de que parentes mortos podem retornar ao mundo dos vivos). Do mesmo modo como - "reciprocamente" - gestos humanos realizados como experiência social dotada de sentido simbólico recriam e perenizam planos de equilíbrio natural: um rito propiciatório fertiliza a terra, uma conduta social adequada mantém a regularidade da troca de estações, assim como um ato humano inadequado pode romper provisória ou definitivamente um plano de permutas entre o mundo natural e o humano.

Um exemplo de um mito de criação nos mostra a relação ser humano-natureza como relações fundamentais para a existência da humanidade; a seguir apresento um mito tupi-guarani:

O Criador, cujo coração é o Sol, tataravô desse Sol que vemos, soprou seu cachimbo sagrado e da fumaça desse cachimbo se fez a Mãe Terra. Chamou sete anciãos e disse: Gostaria que criassem ali uma humanidade. Os anciãos navegaram em uma canoa que era como uma cobra de fogo pelo céu; e a cobra-canoa levou-os até a Terra. Logo eles ali depositaram os desenhos-sementes de tudo que viria a existir. Então, eles criaram o primeiro ser humano e disseram: 'Você é o guardião da roça.' Estava criado o homem. O primeiro homem desceu do céu através do arco-íris em que os anciãos se transformaram. Seu nome era Nanderuvuçu, o nosso Pai Antepassado, o que viria a ser Sol. Logo os anciãos fizeram surgir das Águas do Grande Rio Naderykei-cy, a nossa Mãe Antepassada. Depois que eles geraram a humanidade, um se transformou no Sol e a outra, na Lua. São nossos tataravôs.

(Jecupé, 1998:65)

Assim, pensando em termos intercomunicados e metaforicamente equivalentes, o domínio da sociedade e da natureza, a consciência indígena atribui uma mesma qualidade de significados às ações e reações vividas de um lado e do outro. Pacífica, amorosa, belicosa, terrível ou guerreira, a relação é sempre uma espécie de troca social entre campos de subjetividade desiguais: os povos indígenas não são tolos e sabem que os "os bichos não falam", pelo menos com os homens e mulheres comuns, mas admitem que eles possam possuir uma fala inteligente entre eles e possam se comunicar inteligivelmente com um feiticeiro. Mas campos sempre abertos a trocas entre um plano e outro, por meio das quais, vimos, a natureza se socializa subjetivamente e a sociedade se naturaliza objetivamente, tornando um plano e outro, na verdade, dimensões recíprocas de um mesmo todo, onde e a partir do qual, cada dimensão da realidade ganha o seu sentido.

Em uma justa medida, o imaginário indígena recupera para o sentimento e para o conhecimento humanos a memória universal do tempo do mito. A consciência traduzida em miríades de fábulas, de danças, de desenhos inscritos na pele das pessoas, de gestos vividos como ritos e ritos vividos como gestos carregados de símbolo e sentimento, onde não há lugar para a existência de um princípio cartesiano de irreconciliação entre o espírito e a matéria. Tudo o que existe é vivo, ativo, capaz de partilha, recíproco e, portanto, relacional. A verdade da vida é a atualidade da troca.

Para o indígena, o mundo natural em que se move é uma dimensão subjetiva de sentido e não apenas uma existência objetiva de matéria e energia em suas infinitas expressões. Para ele, ela só se torna real, isto é, significativa, mais do que instrumental, quando um grupo humano a constitui como um ou inúmeros planos de intenção.

Existem três princípios de relações que orientam o sentimento e os saberes dos indígenas a respeito do mundo em que vivem e os seres naturais com que se envolvem:

a) a terra e os seus elementos não são uma coisa, mas um dom;

b) tudo o que existe e é dado ao ser humano estabelece uma obrigação de uma reciprocidade que dissolve a dualidade entre a natureza e a sociedade e que se atualiza continuamente por meio de trocas de parte a parte;

c) a terra não é somente um lugar, mas um tempo realizado de símbolos e de memórias. Assim como as nossas lembranças existem em livros, filmes e fotografias, imagens e templos, a dos povos indígenas existem na terra e como a terra.

(Brandão, 1994:26)

A idéia de deus para os indígenas é que o seu ato criador e a sua presença também estão ali e são parte de tudo o que é vivo. A própria terra não é "sagrada" porque seja um ser separado e poderoso de que dependem os seres humanos. Pois eles são parte dela e a terra e os seres humanos devem viver uma mesma teia de trocas amorosas - mesmo quando isto implique a morte de um animal, para a sobrevivência de uma pessoa - em que apenas os atos são diferentes de parte a parte, mas realizados por dois sujeitos, logo entre iguais diferenciados.

Fica mais fácil, agora, compreender como o sentido de história para os povos indígenas não é somente a história social dos atos e processos humanos no, sobre ou contra o mundo natural, entendido como um cenário, um território de valor político etc, mas antes, história dos seres humanos com a natureza. Melhor ainda, uma história social passada entre os seres humanos e outros seres da natureza. Uma história mítica de trocas, onde a própria idéia de conquista é estrangeira. Livres do relógio e de outro calendário que não seja o fluxo natural do passar do tempo, os próprios acontecimentos sociais são lembrados pelas inscrições da natureza neles. Uma grande festa na primeira lua cheia do tempo das águas; um matrimônio no dia da primeira nevada, no ano de caçada especialmente generosa de búfalos; a celebração de uma paz com os inimigos duas luas depois da última grande enchente dos rios.

Algumas teorias antropológicas dizem que o que torna as culturas humanas, indígenas ou não, diferentes umas das outras, são os diversos efeitos das maneiras como, ao longo do tempo, as pessoas de cada uma delas, se relacionam com o seu meio ambiente. Tecnologias de produção de alimentos, vestuários ou habitações, por meio de caça, pesca, coleta, agricultura ou pastoreio, tipos de economias, de formas de organização da vida social, a começar pela lógica do parentesco, são realizações comuns a todos os grupos humanos do passado e do presente. Mas a diferença que sempre houve em todas essas esferas das sociedades humanas depende, em boa medida, da consolidação de estratégias de adaptação ao ambiente e seus recursos. Religiões e outros sistemas sociais de interpretação da realidade, rituais e cantos, danças e máscaras sempre, de alguma maneira, derivam desse complicado processo de adaptação humana ao ambiente e direta e indiretamente não querem mais do que traduzir simbolicamente "isto".

Dentro da própria antropologia e da história sempre houve uma reação a essas teorias, principalmente quando o peso dado ao fator ambiental é muito determinante e quando se deixa uma pequena margem de flexibilidade e de criatividade para a atividade humana, sob a forma de cultura, Afinal, povos de um mesmo deserto, da mesma vizinhança do Círculo Polar ou da mesma Amazônia desenvolveram técnicas de aproveitamento de recursos naturais, formas de organização social, estilos de vida, símbolos e códigos culturais diferentes. A diversidade das línguas, dos mitos e das religiões entre os povos indígenas de um mesmo continente é bem uma demonstração disto. (ibid., pp. 29)

Natureza e cultura são formas de explicar e traduzir socialmente tanto o mundo natural como o mundo social. Segundo Lima, "a primeira categoria - natureza - organiza e explica o outro radical do qual nos diferenciamos. A segunda categoria - cultura - organiza e explica as nossas diferenças sociais. Tanto uma como outra são construções coletivas. É, portanto, como um produto do mundo social que analisaremos a construção da categoria de natureza. Partimos do conceito de natureza como uma invenção do social, diferenciando-a do mundo natural objetivo, com o qual não deve ser confundida. Tratar a natureza como categoria do social implica procurar os elementos sociais que lhe dão forma porque os mesmos valores que fundam a vida social permitem a cada sociedade ou grupo social organizar e explicar o mundo natural". (1998:40-41)

A própria natureza não se dá, não aparece para os humanos como um "dado bruto", exterior a ele, mas já como feixes e teias de significados. Os indivíduos não reagem a um meio ambiente. Reagem simbolicamente à sua própria reação ante o mundo natural. Para o esquilo, a árvore é um instintivo ponto espacial de referência, uma fonte de alimentos e um provável lugar de refúgio, acasalamento e guarda de sua prole. Para um indígena australiano, a árvore é tudo isso e, por isso, tem um nome. Em cada dimensão do ser - lugar, alimento e proteção - recebe sentidos, significados pelos quais as pessoas da tribo se dizem o que e quem é a árvore. Por meio de suas múltiplas relações com ela, quem são as próprias pessoas vivas e os ancestrais, quem é o próprio grupo e o que é a ordem cósmica do mundo em que tudo isso se intercomunica? Esquilos comem nozes. Os seres humanos comem símbolos através das nozes.

O mundo, a terra, não são exteriores às pessoas individualmente e às coletividades - como famílias e clãs, aldeias, tribos e povos - não existe a que "adaptar"; neste caso existe uma partilha ativa de parte a parte, a idéia de integração deixa à margem a dimensão de consciência de reconhecimento. A terra possui duas "paisagens". Uma é material e pode ser vista por todos os seres humanos. Mas a outra é espiritual e somente os indígenas podem percebê-la e se relacionar com ela plenamente. A única maneira de se possuir a terra é ser concebido por ela. Sentir-se da terra, seu filho e reconhecer nela a origem. Sendo o ser humano fruto da terra material e espiritual, nele os dois princípios não se opõem e a identidade de cada ser está em ambas dimensões.

Sentir-se parte da terra reflete um sistema no qual os laços de afeto e da reciprocidade entre as pessoas parentes não observam princípios de herança, por exemplo, tão determinantes em nossos códigos ocidentais de parentesco, porque simplesmente não se tem o que herdar individualmente. Já que o que une as pessoas, umas às outras, são regras de trocas e uma teia de prestações infindáveis de serviços e permutas de bens. De certo modo valem para os laços entre as pessoas o mesmo que vale para os laços entre a tribo e seu mundo natural: o que é bom, é o que existe fora do domínio individual e está sempre em circulação. Assim como o ar que se retém dentro do corpo mata e só vivifica o ar que se troca sem cessar com o mundo, assim também a mesma metáfora vale para a ordem de todas as relações. Nada é possuído, a não ser o dever de dar, receber e retribuir, a obrigação solidária da troca com a terra e, em seu nome e através de seus frutos, entre todas as pessoas que se consideram dentro desse fluxo vital e espiritual de transações intermináveis. Este é um modo de sentir e pensar a terra e suas relações com os seres humanos o que, talvez, dê forma a esse "modo de produção". Ela é a origem dos seres humanos, é a mãe comum e um bem material e espiritual que torna possível a dádiva e a troca, o princípio da vida.

Em algum sentido, essa maneira simples, e a nós tão atraentemente estranha, de ver as coisas e viver relacionamentos com a Terra, e a terra e seus seres, e seus bens e as pessoas, tem muito a ver com outros sistemas de pensamento. Mas ela possui uma diferença muito importante, quando comparada com aquelas em que nos movemos. Tal como acontece em outras visões indígenas de mundo, o conhecimento, o valor e o código de condutas não "pensam" e não "prescrevem" por meio de opostos: deus e os seres humanos, o céu e a terra, a natureza e a cultura, o eu e o outro. Há contrastes e dimensões, sim, como o material e o espiritual na natureza, o pai e o filho no parentesco, a dívida e a dádiva na economia. Mas eles se complementam como partes vivas de sistemas de reciprocidades - a natureza, a sociedade e a economia da tribo - que derivam uns dos outros, que transferem de um para o outro a mesma energia, o mesmo significado e os mesmos princípios da vida.

Quando os povos indígenas reclamam o direito às suas terras imemoriais - e eles basicamente sempre reclamam isto - não é porque tenham sido ou sejam os donos delas. É porque foram, através dos tempos, os seus habitantes imemoriais. Os seus antepassados tinham e eles seguem tendo para com "aquela terra" um envolvimento afetivo e simbólico que escapa à compreensão do sistema ocidental de pensamento. No interior da lógica do seu imaginário, eles não querem de volta o que possuíram. Querem resgatar o que são.

Os irmãos e os primos e os outros; os vivos e os mortos, devolvidos em matéria ao espírito da terra; os bichos e as flores, os ventos; um modo de vida indígena em que tudo isso é uno e é tudo.

A terra é irmã ou mãe e é também o lugar tornado sagrado porque nela estão, devolvidos à terra, os seus parentes mortos. Por outro lado, sendo coletiva e campo de partilhas, uma terra comum é o que todos os pais deixam a todos os seus filhos. Assim, todos possuem tudo e tudo se mistura: as vidas com a terra, os corpos na terra, as almas dos seres. Tudo são trocas que reforçam perenemente laços. Um modo de vida do indígena é a trama e o sentido da trama destes gestos entre todos os seres.

Entre os indígenas existe uma profunda capacidade de observação da natureza, sua força e suas múltiplas vicissitudes; existe uma escuta atenta da Terra, da qual se sentem filhos e filhas. Daí a imensa importância de incluir-se os conhecimentos ancestrais dos indígenas no curriculum escolar em todas as séries, pois como afirma Boff: "Eles são altamente civilizados, embora tecnologicamente primitivos. Sabem melhor do que nós, filhos e filhas da razão técnica-científica, casar Céu e Terra, integrar vida e morte, compatibilizar trabalho e diversão, confraternizar o ser humano com a natureza e harmonizar homens e mulheres, jovens e idosos. Nisso eles têm sábias lições a nos dar." (2001:155)

O modo de ser ocidental exclui a rede de trocas entre seres, a terra e os seus elementos. Isto é, tudo o que não está no círculo afetivo e culturalmente existencial do parentesco, ela pode ser colocada no plano da economia: dessubjetivada, ela pode ser possuída, pode ser comparada a outros bens de posse; pode ser vendida e comprada, pois é um bem, não um ser.

Como bem afirma Brandão: "Algumas vozes das florestas, dos desertos, faz muitos anos, têm nos dito coisas muito simples. Estivemos ocupados demais em conquistar para aprender a compreender. O tempo é chegado. Saibamos ouvi-los, povos da terra, filhos das florestas. Eles nos fazem o melhor convite: sermos segundo os nossos termos e apenas mudando o essencial em nossos modos de vida e sistemas de pensamento, não mais senhores do mundo, mas irmãos do universo." (ibid., pp. 41)

Mas porque o Ocidente perdeu essa dimensão do religioso que ainda permea o universo dos povos indígenas?

O decisivo não são as religiões, mas a espiritualidade subjacente a elas. É a espiritualidade que une, liga e re-liga e integra. Ela, e não a religião, ajuda a compor as alternativas de um novo paradigma civilizatório.

Mas o ser humano ocidental criou um "complexo de Deus". Comportou-se como se fora Deus. Através do projeto da tecnociência pensou que tudo podia, que não haveria limites à sua pretensão de tudo conhecer, de tudo dominar e de tudo projetar. Essa pretensão colocou exigências exorbitantes a si mesmo. O ser humano não agüenta mais tanto desenvolvimento que já mostra seu componente destrutivo ao ameaçar o destino comum da Terra e de seus habitantes.

Qual seria o papel da religião para corrigir esse desvio? Basta tornar as pessoas mais piedosas? A religião pode seguramente revitalizar uma dimensão da existência, o espaço institucional do sagrado e reforçar o seu poder histórico-social. Mas não, necessariamente, gera um modo de ser mais solidário e compassivo. Nem ipse ipso origina uma espiritualidade capaz de tudo religar e de tudo fundar na Fonte originária.

Alguns grupos opinam que para resolver a crise atual, deve-se reforçar a moral e a contenção dos costumes. Em nome dessa proposta, mobilizam-se milhões de pessoas em defesa da vida inocente, contra o aborto, pela paz e contra a guerra, por uma nova tecnologia mais benevolente para com o meio ambiente. A moral é importante, mas se não nascer de uma nova redefinição do ser humano e de sua missão no universo, no contexto de uma nova aliança de paz, de sinergia para com a Terra e com os povos que nela habitam, ela pode decair num moralismo enfadonho e farisaico e transformar-se num pesadelo das consciências. Uma nova ética pressupõe uma ótica nova. Cumpre investir nessa nova ótica.

Outras pessoas pensam que precisamos de mais educação, de mais formação e de mais informação. Obviamente, importa socializar os conhecimentos, aumentar a massa crítica da humanidade e democratizar os processos de empoderamento dos cidadãos. Certamente o saber é imprescindível. Sem ele não eliminamos os figadais inimigos da humanidade como a fome, a doença e a incomunicação. O saber nos confere poder. O saber e o poder nos levaram à Lua e já para fora do sistema solar. Mas a serviço de que projeto de ser humano, de sociedade e de mundo utilizamos o poder da ciência e da técnica?

A resposta a esta questão pede mais que ciência e técnica. O ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; "ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício, viveu freqüentemente para preparar sua outra vida além da morte. Por toda parte, uma atividade técnica, prática, intelectual, testemunha a inteligência empírico-racional; em toda parte, festas, cerimônias, cultos com suas possessões, exaltações, desperdícios, "consumismos", testemunham o Homo ludens, poeticus, consumans, imaginarius, demens. As atividades de jogo, de festas, de ritos não são apenas pausas antes de retomar a vida prática ou o trabalho; as crenças nos deuses e nas idéias, não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: "Possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o mito, a religião. Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens. No ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético." (Morin, 2000:59)

Analisando com mais profundidade, descobrimos por detrás do edifício da modernidade científico-técnica o funcionamento de uma determinada filosofia: o realismo materialista. Chama-se de realismo a esta filosofia porque imagina que as realidades existem como objetos independentes do sujeito que as observa. Elas, na verdade, não são independentes, pois não há objeto sem sujeito e sujeito sem objeto. A unidade sagrada da realidade que, como num jogo, sempre inclui a todos como participantes e jamais como meros espectadores. Esse realismo é pouco realista porque reduz o âmbito da realidade, ao não incluir nela o fenômeno da subjetividade, da vida e da espiritualidade.

Desde tempos imemoriais, todos os povos e culturas se enchiam de veneração face à realidade do Divino que impregna todo o universo, vivenciavam o significado sagrado de todas as coisas e cultivavam a espiritualidade como aquela visão interior que unia tudo à sua Fonte divina. Somente nos últimos quatro séculos, surgiu um tipo de humanidade cega a estas dimensões, por isso, profundamente empobrecida em sua realização no mundo. Ela encurtou a realidade ao tamanho dos cinco sentidos, organizados pela razão analítica.

Esta filosofia se entende materialista, no sentido antigo, porque pressupõe que a matéria (átomos, partículas elementares, vácuo quântico etc) constitui a única realidade consistente; os demais fenômenos são derivações secundárias dela. Não assimilou ainda o fato de que a matéria não é simplesmente "material", mas é energia estabilizada, cheia de interações complexas. A matéria, como a filologia da palavra sugere, é mãe de todas as coisas, até da vida que é a auto-organização da matéria. Ainda não se criou a consciência de que o visível é parte do invisível.

Hoje prevalece a lógica do ser no mundo como objeto. No centro de tudo se coloca o ser humano, dando origem ao antropocentrismo que instaura uma atitude centrada no ser humano e as coisas têm sentido somente na medida em que a ele se ordenam e satisfazem seus desejos; nega a conexão que o próprio ser humano guarda, quer queira, quer não, com a natureza e com todas as realidades, por ser parte do todo. Por fim, ignora que o sujeito, derradeiro da vida, da sensibilidade, da inteligência e da amorização, não somos, em primeiro lugar nós, mas o próprio universo, a Terra. Ela manifesta sua capacidade de sentir, de pensar, de amar e de venerar por nós e em nós. O antropocentrismo desconhece todas estas imbricações; e a ciência e algumas religiões parecem descansar no antropocentrismo.

No paleolítico, as culturas eram matrifocais e vivia-se uma fusão com a natureza; as pessoas sentiam-se incorporadas no todo. Eram sociedades marcadas pelo profundo sentido do sagrado do universo e pela reverência face à misteriosidade da vida e da Terra. As mulheres detinham a hegemonia histórico-social e davam ao feminino uma expressão tão profunda que ficou na memória permanente da humanidade através de símbolos, sonhos e arquétipos, presente na cultura e no inconsciente coletivo.

Mas a partir da revolução industrial, o trabalho passou a ser uma dominação que masculinizou as relações, abriu espaço para o antropocentrismo, o androcentrismo, o patriarcalismo e o machismo. Estamos às voltas com expressões patológicas do masculino desconectado do feminino, o animus sobreposto à anima.

O cuidado com a vida e todas as suas conseqüências foi difamado como feminilização das práticas humanas, como empecilho à objetividade na compreensão e como obstáculo à eficácia. Com o passo do tempo, o ser humano começou a utilizar a razão instrumental-analítica, que é mais eficaz para intervir com profundidade na natureza. Este tipo de razão exige "objetividade", impõe um certo distanciamento da realidade a fim de estudá-la como a um objeto para acumular experiências e dela assorear-se. Tudo faz com que os fatos materiais são diferentes e distantes dos fatos espirituais, ciência e religião separam-se.

De fato, a ciência e a religião não reinam sobre o mesmo campo. A primeira aprende, a segunda ensina. A dúvida é o motor de uma; a outra se sustenta na fé. Não são indiferentes uma a outra. A ciência atualiza a discussão sobre a origem da vida, não termina com ela.

A ciência tenta compreender o mundo; as religiões (e as filosofias), em geral, têm a missão de dar sentido a vida. Pode haver um esclarecimento mútuo, desde que cada um mantenha o seu próprio território. Cada vez que a Igreja Católica tentou impor a sua explicação sobre o mundo houve conflitos. Galileu dizia a seus adversários, que eram teólogos: "Digam como se vai ao céu e deixem que nós diremos como "marcha" o céu". Lembremos a oposição dos eclesiásticos às teorias de Darwin. À ciência lhe interessa os fatos visíveis, perceptíveis. Não permite interpretar o que existe "além" do visível. Contrariamente a uma opinião muito difundida, não elimina a Deus. Mas não pode provar a sua existência, nem a sua ausência. Este discurso é estranho para a ciência. A concepção científica sobre a origem da vida na Terra não é incompatível com a religião, pois a ciência, em última instância, só observa, não pode ser dogmática. Sabe muito bem que a realidade é sempre mais complexa. É preciso que a ciência desça do pedestal e que a religião promova a percepção da coletividade e a busca da humana-unidade.

Hoje os sinos dobram sobre o realismo materialista. Mas a física quântica demonstrou a profunda interconexão de tudo com tudo e a ligação indestrutível entre realidade e observador; não há realidade em si, desconectada da mente que a pensa; ambas são dimensões de uma mesma realidade complexa. O universo é consciente. A moderna cosmologia demonstrou que este universo é matematicamente inconsistente sem a existência de um Espírito Sagrado e uma Mente infinitamente ordenadora.

A nova filosofia apresenta-se holística, ecológica e espiritual. Ela funda uma alternativa ao realismo materialista, com capacidade de devolver ao ser humano o sentimento de pertença à espécie humana, à Terra, ao universo e ao propósito divino.

Assim se supera o dado mais grave que se esconde por detrás da falta de cuidado: a perda da conexão com o Todo; o vazio da consciência que não mais se percebe parte e parcela do universo; a dissolução do sentimento do Sagrado face ao cosmos e a cada um dos seres; e a ausência da percepção da unidade de todas as coisas, ancoradas no mistério do Supremo Criador e Provedor de tudo.

Boff (1999) afirma que a ditadura do modo-de-ser-trabalho-dominação está atualmente conduzindo a humanidade a um impasse crucial: ou pomos limites à voracidade produtivista, associando trabalho e cuidado ou vamos ao encontro do pior. Pela exasperação do trabalho produtivo se exauriram recursos não renováveis da natureza e se quebraram os equilíbrios físico-químicos da Terra. A sociabilidade entre os humanos se rompeu pela dominação dos povos sobre outros e pela luta renhida das classes. Não se vê outra coisa no ser humano senão sua força de trabalho a ser vendida e explorada ou sua capacidade de produção e de consumo. Perdeu-se a visão do ser humano como ser-de-relações ilimitadas, ser de criatividade, de ternura, de cuidado, de espiritualidade, portador de um projeto sagrado e infinito.

Concordo com Boff que é preciso o resgate do cuidado e a ciência e a religião podem contribuir para isto, desde que mudem de paradigma, com uma visão holística e sistêmica da vida. Dar centralidade ao cuidado não significa deixar de trabalhar e intervir no mundo. Significa derrubar a ditadura da racionalidade fria e abstrata para dar lugar ao cuidado. Significa captar a presença do Espírito para além de nossos limites humanos, no universo, nas plantas, nos organismos vivos, água, terra, ar, fogo etc.

Só que vivemos numa sociedade liberal que assume o desenvolvimento baseado na banalização do mal pelo trabalho, o que é visto como razoável e justificado, realista e racional, aprovado pela maioria dos cidadãos, preconizado abertamente como um modelo a ser seguido, no qual toda empresa deve inspirar-se, em nome do bem, da justiça e da verdade. Portanto, é um sistema que produz e agrava constantemente adversidades, injustiças e desigualdades e faz com que tudo pareça bom e justo.

Dejours (2001) afirma que a banalização do mal atenua a consciência moral em face do sofrimento infligido a outrem e cria um estado de tolerância ao mal. Além disso, este processo desdramatiza o mal e, por outro, mobiliza progressivamente um número crescente de pessoas a serviço da execução do mal, fazendo delas "colaboradores".

Para mudar o paradigma do desenvolvimento, precisamos formular políticas para um mundo sustentável, o que significa introduzir uma nova dimensão ética na política. A ética ecológica é um padrão de comportamento que flui através da percepção de que todos pertencemos à comunidade global da biosfera. Nós devemos nos comportar como os outros seres vivos - as plantas, os animais e os microorganismos que formam esta vasta rede da vida, sem interferir com a capacidade surpreendente desta rede de sustentar a vida.

Uma comunidade sustentável é organizada de maneira a promover a vida, os negócios, a economia, infra-estrutura e tecnologia sem interferir com a herança da natureza de sustentar a vida. O primeiro passo deste desafio é entender o princípio da organização dos ecossistemas para sustentar a rede da vida. Quando estudamos os princípios básicos da ecologia, descobrimos que eles são os princípios de organização de todos os sistemas vivos. Todos os organismos vivos dependem de um fluxo contínuo de energia e matéria, e todos produzem lixo, mas o lixo de uma espécie é o alimento de outra. A energia que move os ciclos ecológicos flui do sol. A rede é o padrão básico de organização da vida. Desde o princípio, há mais de três bilhões de anos, a vida surgiu no planeta não através da competição, mas através da cooperação, de parcerias e da formação de redes.

A natureza sustenta a vida criando e nutrindo as comunidades. Nenhum organismo sobrevive isolado. Os animais dependem da fotossíntese das plantas, as plantas dependem do dióxido de carbono produzido pelos animais, bem como do nitrogênio fixado pelas bactérias e raízes, e, juntos, as plantas, animais e microorganismos, regulam toda a biosfera e mantém as condições que mantém a vida.

A sustentabilidade não é uma propriedade individual, mas uma propriedade de uma rede inteira de relações. Ela sempre envolve toda a comunidade. Esta é a lição profunda que precisamos aprender da natureza. O modo de sustentar a vida é construir e manter comunidades. As comunidades interagem entre si. A sustentabilidade é um processo dinâmico de evolução conjunta. Ela inclui o respeito à integridade cultural e ao direito básico de autodeterminação e auto-organização das comunidades. Isto significa que a sustentabilidade ecológica e a justiça econômica são interdependentes. São dois lados da mesma moeda.

O fato da sustentabilidade ser uma propriedade de uma rede inteira de relações significa que a sustentabilidade de um país não pode ser implementada mudando apenas a política energética ou os subsídios para a agricultura. Ela só pode acontecer se for implementada simultaneamente em diversas áreas. A transversalidade é uma enorme tarefa e só obteremos sucesso se realmente compreendermos o principal princípio da ecologia: a vida não surgiu no planeta pela competição, mas através da cooperação, parcerias e formação de redes.

O conceito de sustentabilidade é como o de democracia: difícil e fugitivo, mas indispensável para marcar um ponto no horizonte do futuro. Também como o segundo, é uma forma de tratar o mundo que tem que construir-se a partir da prática. Igual que a moral teórica surge uma prática social da moralidade; a sustentabilidade irá adquirindo um conteúdo empírico suscetível de ser analisado e descrito, à medida que vai comparando as práticas de convivência social e com o mundo natural, com um ideal que, ao mesmo tempo, irá moldando essas práticas.

A busca de um desenvolvimento sustentável, tal como o formulou a Comissão de Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento aponta, nem mais, nem menos, ao desejo da espécie humana de seguir subsistindo na Terra com formas de vida semelhantes às que conhecemos hoje em dia. Semelhantes, mas não idênticas à tomada de posição a favor da sustentabilidade. Implica todo um programa de mudança social para o futuro.

Isto explica as controvérsias que existem ao redor do conceito. Perguntamos, num primeiro momento, qual é o estatuto científico que pode ter este conceito? Questionamos em seguida: o que implica isto em relação a programas políticos e econômicos já estabelecidos e canalizados da ação social? Finalmente, existem os conflitos e a manipulação da informação, surgidos a partir dos poderosos interesses de grupos econômicos ou nações, que já reagiram querendo aumentar a margem de dúvidas ao redor da necessidade de tomar medidas para a sustentabilidade. Como resultado, alguns governos e grupos de pressão continuam insistindo em que existe uma oposição entre a conservação do meio ambiente e crescimento econômico. De fato, não são necessariamente antagônicos; tudo depende do modelo de desenvolvimento que escolhermos. Ao contrário, só o equilíbrio entre ambos poderá levar a um desenvolvimento econômico e social que implique um uso racional, redistributivo e sustentável de seus recursos naturais.

A Comissão Brundtland, com base numa consulta em nível mundial, definiu a sustentabilidade como a possibilidade de "satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de que as futuras gerações possam satisfazer suas próprias necessidades". Como este conceito pode ser rigoroso a partir de um anuncio de um bom desejo?

O problema com esta definição, segundo Robert Ayres, é que ninguém sabe como medir o bem-estar em termos sociais. Por isto, ele propõe uma definição mais complexa: "a sustentabilidade é um processo de mudança em que a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional está em harmonia com o aumento do potencial atual e futuro para satisfazer as necessidades e aspirações humanas" (Ayres, 1991). Por mais que esta definição seja precisa, ainda deixa o problema de definir "em harmonia com". Isto aponta para a necessidade de envolver os cientistas sociais - antropólogos, sociólogos, psicólogos e outros - na exploração destes conceitos.

Mencionamos os anteriores porque, os economistas têm um caminho andado em elaborar uma definição mais operativa de sustentabilidade. Karl-Goran Maler, por exemplo, afirma que "o desenvolvimento econômico numa área específica (região, nação ou mundo) é sustentável se a reserva total dos recursos - humanos, de capital, de capital físico reprodutor, os recursos do meio ambiente e os recursos não renováveis - não decrescem com o tempo". (1990:240) A CEPAL, por outro lado, argumenta que o conceito biológico que considera uma atividade como sustentável, se não afeta certas leis naturais, deve ampliar seu significado integrando critérios sobre a utilização e uso dos recursos naturais, tais como participação cidadã, tomada de decisões políticas e instituições. (1990:22) Destacam que a sustentabilidade não deve ser definida com base na quantidade disponível de recursos naturais, senão pela utilização que se faz destes recursos.

Esta utilização relaciona-se com a forma em que se reproduzem as sociedades. A este respeito resulta interessante que o conceito de sustentabilidade tenha surgido poucos anos depois de ter sido discutido nas ciências sociais o conceito de "reprodução social". Sobretudo porque, sendo próximos em significante, são totalmente opostos no seu significado. O segundo derivou do interesse do neomarxismo, por saber como se reproduziam certas estruturas ideológicas ou culturais através do Estado ou das classes dominantes - Louis Althusser, Antonio Gramsci - ou culturas autoritárias através da violência simbólica na educação - Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron.

A contraposição não poderia ser maior. O conceito de reprodução social se utilizou para questionar porque não mudam situações de dominação e desigualdade que são indesejáveis. Pelo contrário, o de sustentabilidade propõe mudar situações de degradação de recursos naturais porque é um fim desejável.

Num outro nível analítico, não são opostos. O primeiro busca os motivos pelo qual existem mudanças precisamente para poder mudar uma situação. O de sustentabilidade, também questiona os motivos em que as práticas levam a degradação ecológica, para poder mudar essa situação. Por isto, pode inclusive afirmar-se que existe uma coincidência nesta última instância entre os dois casos: se pensarmos que a dominação e a desigualdade, como mostram alguns estudos, provoquem maiores níveis de esgotamento dos recursos naturais, porque agudizam tanto o excesso de consumo como o sub-consumo, diminuir estes desequilíbrios forma parte integral das estratégias de conquista para um desenvolvimento sustentável.

Outro desenvolvimento teórico próximo ao de sustentabilidade é o conceito de reprodução na análise feminista. Neste caso se diferencia um âmbito social, o de reprodução, em contrapartida com o âmbito de produção; o primeiro estaria considerando o gênero feminino e o segundo o gênero masculino na grande maioria de sociedades humanas. Neste âmbito, se diferencia as atividades de reprodução biológica, de reposição da força de trabalho e de reprodução social.

Até agora, o termo sustentabilidade reforça o acento na relação macrosocial entre a sociedade e recursos naturais. Para dar sentido na realidade microsocial que é a que altera as decisões macropolíticas e, ao mesmo tempo, cria os padrões que permitem formar modelos macro e globais, haveria que conectá-lo com este eixo analítico da reprodução social na unidade doméstica. Isto nos parece fundamental para dar-lhe um conteúdo mais operativo.

Em primeiro lugar, porque a primeira unidade de perseverança social é a família. Isto é, a competição pelos recursos, prestígio e poder cristalizam nas unidades primárias em nível local. É na família aonde se tomam as decisões, patriarcais ou não, sobre as necessidades de consumo e o preço em que estão dispostos a pagar por este consumo. Em segundo lugar, porque as ações mais imediatas sobre o mundo natural, desde o desmatamento até a compra de certos artigos no supermercado provêm das deliberações familiares. Em terceiro lugar, porque é onde afloram, com todo seu drama, as decisões desesperadas em quanto a utilização de recursos. Se bem nos países industrializados predomina o padrão altamente individualizado de comportamento e consumo, lembremos que na grande maioria de países em desenvolvimento, as decisões do indivíduo são fortemente influídas, senão que determinadas, pelas decisões corporativas, seja da família ou de outras entidades de parentesco ou sociais.

O passo novo que teríamos que dar é relacionar este imperativo humano de querer produzir o núcleo primário na qual se vive, cuja responsabilidade recai sobre tudo nas mulheres, com o novo imperativo de resguardar a utilização dos recursos para conservar um meio ambiente em equilíbrio.

A Maneira de Conclusão

Gostaria de sugerir neste momento algumas considerações para que possamos criar uma ponte entre as religiões e as ciências para a humanização da humanidade:

A) Espiritualidade

Voltar a descobrir e estabelecer as dimensões espirituais da humanidade que inspiram valores éticos e atitudes sociais, ecológicas, políticas etc, capazes de enfrentar os riscos que ameaçam a humanidade e o planeta Terra. A espiritualidade, longe de ser uma realidade estranha, da qual faz referência a verdades filosóficas, metafísicas e às vezes, misteriosas, é um elemento central na hora de elaborar a identidade cultural e os princípios éticos comuns e, em geral, na hora de explorar os mistérios da vida e da morte. A espiritualidade não nega a dimensão material da humanidade, senão que assume, com as suas virtudes e contradições, para oferecer valores éticos e pontos de referência e propor um projeto. Atualmente, a profundidade e abertura espiritual resultam necessárias ao favorecer uma atitude fundamental para a paz, respeito à natureza, justiça e fraternidade. Não se trata só de propor à humanidade projetos e linhas de ação que devam ser aplicados, senão dar um sentido a seu futuro.

B) Ética

É urgente que a humanidade, em toda a sua diversidade, comprometa-se a elaborar uma ética comum para dar sentido ao mundo do amanhã. Nesta tarefa, todas as religiões podem contribuir. Além das normas, ritos ou proibições, a humanidade espera que as religiões participem na construção do sentido para a vida, trata-se de criar uma ética comum a toda a humanidade que possa por uma parte, propor ações de oposição a tudo que seja contra a liberdade, a dignidade, a justiça, como o racismo, a miséria, a exploração, as novas formas de escravidão etc. Por outra parte, esta ética deve criar formas de ação concretas para construir sociedades onde cada pessoa possa alcançar sua plenitude. Os valores e os princípios podem inspirar atitudes inovadoras no âmbito dos intercâmbios econômicos, nas relações com o meio ambiente, o exercício do poder, a produção e distribuição de bens comuns etc. A ética do futuro deve buscar:

Trabalhar para a humanização da humanidade.

Trabalhar a feminilização social do mundo para dar luz a laços sociais afetivos.

Efetuar a dupla pilotagem do planeta: obedecer à vida, guiar a vida.

Alcançar a unidade planetária na diversidade.

Respeitar no outro, ao mesmo tempo, a diferença e a identidade quanto a si mesmo.

Desenvolver a solidariedade e a compreensão; o direito das minorias à existência e à expressão; é preciso proteger a diversidade de espécies para salvaguardar a biosfera assim como proteger a diversidade de idéias e opiniões, fontes de informação.

Assumir a condição humana indivíduo/sociedade/espécie na complexidade de nosso ser.

Assumir o destino humano em suas antinomias e plenitude.

Reconhecer ao Outro o direito de não ser.
C) Redistribuição de Recursos

Nas condições atuais do mundo, a humanidade deve se esforçar de forma ativa e eficiente para conseguir que todo mundo tenha o mesmo acesso aos bens essenciais, principalmente em relação à alimentação, saúde e educação. As diferentes religiões devem trabalhar no mundo para que haja uma autêntica distribuição dos recursos entre os povos, especialmente para que os menos favorecidos tenham acesso real aos bens essenciais pois o que temos observado durante o século XX, é que povos diferentes estão tendo destinos diferentes, onde uns estão fadados à pobreza e miséria e outros, à riqueza e à prosperidade como seu destino.

D) Cultura da Paz

As religiões devem comprometer-se ativamente na construção da paz no mundo. Os "senhores da guerra" sempre utilizam a religião para justificar seus atos e instigar a população a lutar em nome de Deus. É urgente realizar um exame crítico sobre as razões pelas quais se associa a religião e a violência e sobre as suas conseqüências. É preciso uma postura clara e permanente. Os devotos não podem cair nesta trampa de sacralização da violência, senão que devem participar ativamente na erradicação de todo tipo de violência e na construção da paz no mundo.

Gerar a paz é o processo de organizar as relações, mediando os diferentes interesses e necessidades de indivíduos, grupos e sistemas vivos e tecnológicos, buscando viabilizar as ações concretas que permitam solucionar as situações detectadas como problemas por estes mesmos grupos, sem ignorar as diferenças de perspectivas individuais. Esta gestão é entendida como participação e diálogo entre os diferentes atores, em torno de situações concretas, historicamente compreendidas e geograficamente contextualizadas.

E) Educação Transreligiosa

O diálogo interreligioso aporta um novo desafio na educação religiosa convencional e confessional. Mostra a necessidade de criar uma educação que ressalte a compreensão e o respeito a todas as tradições religiosas. A experiência de viver a fé em uma "aldeia global" exige que os diferentes ensinamentos religiosos saibam responder as situações que ameaçam a paz e a justiça. A educação transreligiosa se concebe não só como uma forma de preservar e revitalizar as identidades culturais e as disciplinas espirituais, senão também como uma forma de enfrentar os desafios sociais relacionados, por exemplo, com a injustiça, a discriminação, a intolerância, a violência etc. É necessário que todas as religiões realizem um exame profundo e real da auto-crítica com respeito a certas práticas de educação religiosa que tem favorecido as divisões e inclusive a repressão. Também é necessário que as religiões respondam a situações onde a ideologia de alguns governos censura, controla, desvia e manipula a educação religiosa, de maneira que os fiéis não possam conhecer sua herança, nem a de seus vizinhos.

F) Atitude Transreligiosa

O sagrado é o que liga, mas não é atributo de uma única religião.

O sagrado não implica acreditar em Deus, em deuses ou espíritos. É a experiência de uma realidade e a origem da consciência de existir no mundo. É aquilo que liga seres e coisas e, conseqüentemente, induz nas profundezas do ser humano um absoluto respeito pelos outros, com os quais ele está ligado por estarem todos compartilhando uma vida comum numa única e mesma Terra. Uma atitude transreligiosa torna impossível qualquer guerra religiosa.

Exige uma filosofia do ser e uma reflexão espiritual que nos fale do Sentido de todos os sentidos e que saiba organizar a convivência humana sob a inspiração da lei mais fundamental do universo: a sinergia, a cooperação de todos com todos e a solidariedade cósmica. Mais importante que saber, é nunca perder a capacidade de sempre mais aprender. Mais do que poder, necessitamos de sabedoria, pois só esta manterá o poder em seu caráter instrumental, fazendo-o meio de potenciação da vida e de salvaguarda do planeta.

Bibliografia

Boff, Leonardo. Saber Cuidar, Ética do Humano. Compaixão Pela Terra. Petrópolis, RJ; Vozes. 1999.

Brandão, Carlos Rodrigues. Somos as Águas Puras. Campinas, SP; Papirus. 1994.

Castro, E.B. Viveiros. Notas Sobre a Cosmologia Yawalapíti, em: Religião e Sociedade. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira. 1978.

Dejours, Christophe. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro; Editora FGV. 2001.

Jecupé, Kaka Werá. A Terra dos Mil Povos: História Indígena Brasileira Contada por um Índio. São Paulo; Peirópolis. 1998.

Lima, Ricardo Barbosa. Natureza: Uma Categoria do Social, em: Duarte, Laura e Braga, Lúcia; Tristes Cerrados: Sociedade e Biodiversidade. Brasília; Paralelo 15. 1998.

Morin, Edgar. Os Setes Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo; Cortez. Brasília; UNESCO. 2000.

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Posfácio
Haifa, 20 de junho de 2004
Ao sr. Iradj Roberto Eghrari
Caro Iradj,

Minha visita ao Brasil em outubro de 2003 foi muito animadora. As possibilidades abertas à sua nação são imensamente grandes. O fato dos líderes de pensamento estarem tão seriamente buscando um curso apropriado no qual o país seja conduzido da melhor forma possível é algo admirável e estou feliz em saber que o documento preparado pela Fundação para a Aplicação e Ensino das Ciências (FUNDAEC), destacando algumas idéias sobre o futuro da sociedade brasileira poderá contribuir para suas deliberações, mesmo que de forma modesta. Neste sentido, você me pediu algumas considerações adicionais sobre a natureza dos órgãos responsáveis pela promoção de aprendizado estruturado em uma população, descritas no documento acima e mencionadas em minha palestra no Centro de Estudos Estratégicos em Brasília. Espero que os seguintes comentários sejam úteis.

O documento preparado pela FUNDAEC sugere que o futuro da nação seja considerado em termos de dois pontos imperativos: promover prosperidade à inteira população do país e prover diferentes contribuições para o desenvolvimento de uma civilização global emergente. Estas duas metas inter-relacionadas, foi dito, demandam uma nova concepção do desenvolvimento social e econômico do Brasil. Foi proposto, então, que as estratégias de desenvolvimento se foquem na capacitação do povo do país em tornar-se o protagonista da transformação esperada, pois somente desta forma poderão ser alcançadas tão ambiciosas metas. O esforço de capacitação, por sua própria natureza, exige acesso ao conhecimento e neste contexto foi sugerido que uma atenção urgente seja dada ao estabelecimento dos alicerces de agências que possam se devotar formalmente à geração, aplicação e difusão do conhecimento junto às raízes da sociedade. Nos últimos meses, tenho refletido ainda mais sobre a natureza dessas estruturas e a seguir apresento algumas idéias que me parecem dignas de serem compartilhadas.

Quando um governo esclarecido decide pôr em ação um processo de transformação social, com o objetivo de engendrar condições que promovam uma prosperidade ampla e completa, irá certamente encontrar muitos desafios. Três se destacam como os maiores:

O primeiro tem a ver com a imperiosa necessidade das pessoas tornarem-se os protagonistas de seu próprio desenvolvimento. Isto claramente demanda uma gama de serviços, objetivando criar um conjunto mínimo de condições necessárias à ação individual e coletiva. Na verdade, todos sabemos dos efeitos debilitantes dos programas que reduzem o povo a meros recipientes de bens e serviços. Tais programas tendem a conduzir à passividade e à supressão do espírito de iniciativa nos indivíduos, famílias e grupos em geral. Oferecer os serviços necessários ao povo e, ao mesmo tempo, estimular iniciativas, implica a existência de estruturas apropriadas e de métodos adequados que criem condições para uma tomada de decisão com maturidade em diferentes níveis.

Um segundo desafio está relacionado à integração. Embora possa existir nos níveis mais elevados do governo uma visão integrada dos serviços oferecidos ao povo, quando estes alcançam os favorecidos intencionados, todos eles, muito freqüentemente, terminam como pacotes fragmentados, cada um deles voltado a algum aspecto isolado dos multifacetados problemas enfrentados pelas famílias carentes de ajuda. O tipo de coordenação necessário para contrapor-se à tendência de fragmentação não é fácil de se estabelecer. Em sua ausência, embora o propósito genuíno de serviços possa ser o de criar condições que levem ao empoderamento, o enfoque fragmentário torna isso virtualmente impossível.

Um terceiro desafio com o qual o governo se confronta é superar a falta de articulação entre o discurso da ciência e da tecnologia modernas com os tradicionais sistemas de conhecimento das populações atendidas. Estreitamente relacionado a isto, está o divórcio que convencionalmente foi imposto entre o discurso sobre desenvolvimento social e econômico e as aspirações espirituais do povo em geral, o qual deve tornar-se o protagonista de tal desenvolvimento.

Foi em resposta a esses três desafios que nossas conversas em Brasília, inspiradas pelo documento da FUNDAEC, centraram-se na criação de uma estrutura ao nível da comunidade local, a qual, por razões que tratamos naquela oportunidade, propusemos fosse chamada de um "Centro de Excelência." A função de tal Centro, foi sugerido, seria precisamente assegurar que os programas e serviços oferecidos pelo governo fossem integrados, que levem ao empoderamento das pessoas e que reconheçam a inter-relação existente entre as aspirações materiais e espirituais das comunidades envolvidas.

O tamanho da população servida por um Centro deste tipo terá de ser determinado de acordo com a realidade particular do Brasil. A população não pode ser tão pequena que o custo da operação do Centro torne-se proibitivamente caro em relação ao número de pessoas que dele irá se beneficiar. Mas há que se cuidar para que sua área de influência não seja tão grande a ponto de tornar impossível a participação da inteira população. Parece-me que, conforme a natureza de cada área geográfica, um Centro podia servir a quem quer que fosse dentre uma população de alguns milhares de pessoas até cerca de cinqüenta mil, dependendo do grau de sofisticação ao qual espera-se que funcione.

O tema central do documento preparado pela FUNDAEC, o qual foi recebido bem por aqueles que participaram de nossas consultas em Brasília, foi conhecimento. Da mesma forma, um Centro de Excelência deve ser concebido como um espaço social para a geração, aplicação e difusão do conhecimento. Neste contexto, gostaria de sugerir que o ponto essencial para seu sucesso deve ser sua natureza apolítica. Algumas funções definidas à Centro de Excelência incluiriam o seguinte:

1. Prover às populações onde irá atuar uma forma de entendimento dos diferentes serviços que estão sendo oferecidos a elas pelo governo. O Centro não deve prover ele mesmo tais serviços, mas buscar, em vez disso, torná-los disponíveis à atenção das pessoas e ajudá-las a ver como se relacionam entre si. Assim, por exemplo, embora não ofereça o próprio crédito, pode muito bem promover programas de micro-crédito, se apropriado às circunstâncias particulares da localidade servida.

2. Promover qualquer tipo de capacitação necessária na comunidade, assegurando-se de não serem pacotes fragmentados, meramente um meio de transferência de tecnologia, mas que levem em consideração os sistemas de conhecimento já existentes na comunidade. Há ocasiões em que o Centro pode achar útil prover ele mesmo algum tipo de treinamento.

3. Deverá identificar talentos dentro da população e utilizar as habilidades existentes para benefício da comunidade. Nesse sentido, seria um Centro que se esforça para adequar os recursos às necessidades. Mas não somente buscar encontrar dentro da comunidade as pessoas que possam suprir necessidades específicas, mas também trazer para a comunidade especialistas de fora para ajudar na geração e aplicação de conhecimento em áreas específicas, tais como saúde e educação. Esta função implica que haverá uma estreita conexão entre o Centro e as universidades operando na região.

4. Buscará articular as aspirações da comunidade com o governo e servir como um canal através do qual os diferentes órgãos do governo possam chegar até a comunidade. Para este fim, reunirá, de tempos em tempos, os agentes do governo engajados na prestação de serviços na região, proporcionando-lhes a oportunidade de se beneficiarem do conhecimento e da experiência que estiverem sendo gerados no nível local.

5. Em todas as suas atividades, o Centro irá promover o princípio da consulta como um processo de tomada coletiva de decisões. Longe de ser um procedimento de negociação para promover interesses pessoais ou de grupos, o processo consultivo deve ser visto como uma investigação coletiva da realidade. Como tal, exige o livre intercâmbio de opiniões, desapego de pontos de vista pessoais e uma análise racional e desapaixonada de opções. Deve promover soluções criativas a problemas comuns e a distribuição justa de recursos. Deve prover oportunidade à participação de membros da comunidade, os quais têm sido tradicionalmente excluídos das tomadas de decisões, mais particularmente as mulheres, bem como estimular a expressão de qualidades espirituais como honestidade, tolerância, paciência e cortesia. Deve promover o consenso sobre os passos a serem dados e um comprometimento à ação unificada.

Como sugerido nos itens acima, o Centro deve ser, mais que qualquer outra coisa, uma estrutura local preocupada com a geração, aplicação e difusão do conhecimento. É neste contexto que o "Centro de Excelência" irá provar ser uma designação apropriada para tal finalidade. Parece-me que para as pessoas se transformarem de meros consumidores de bens e serviços - grátis, baratos ou caros - a protagonistas na construção de um processo civilizatório, uma visão de excelência espiritual, moral e intelectual deve ser criada e mantida ante os olhos de pobres e ricos igualmente.

Finalmente, gostaria de expressar algumas palavras sobre o processo de criação dos "Centros de Excelência". Se a idéia for aceita, podemos assumir que inicialmente alguns centros seriam estabelecidos em áreas que representem a diversidade da sociedade brasileira, tanto urbana quanto rural. Creio que seria importante, principalmente nos estágios iniciais, que as tarefas determinadas a eles não deveriam ser muito complicadas. Quantas pessoas iriam trabalhar em cada Centro seria um ponto que irá depender certamente do tamanho da população atendida. Porém, independente do número do staff, cada Centro exigirá um coordenador treinado. Desenvolver um programa de formação desses coordenadores representaria, em minha opinião, a exigência mais urgente para que o esquema seja bem sucedido. Tenho dúvidas se tal programa pode ser desenvolvido reunindo-se especialistas para defini-lo, distanciados da prática devida. Pelo contrário, um programa deve surgir da experiência, através de um processo de ação, reflexão e consulta. Um conjunto de colaboradores seria treinado utilizando um programa com materiais que estariam provavelmente disponíveis em muitas organizações não-governamentais em operação no Brasil. Esses coordenadores treinados começariam então uma experiência e através de uma série de tentativas, um programa educacional seria aprimorado e melhorado com o tempo.

Colocar em ação tal processo de desenvolvimento curricular, imagino, exige a criação de uma estrutura conceitual dentro da qual o programa precisa ser formatado. Espero que você e os seus talentosos amigos que encontrei durante minha visita ao Brasil, que se encontram tão engajados em promover um discurso acerca da ciência, religião e desenvolvimento, possam prestar auxílio nesta conceitualização necessária.

Saudações,
Farzam
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Sobre os Autores
Affonso Camargo

Natural de Curitiba, Paraná, nascido em 30 de abril de 1929, formado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná. É Deputado Federal na Câmara dos Deputados de 2001. Atualmente participa da Comissão de Viação e Transporte e Comissão do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

Carlos Alberto Emediato

Sociólogo, Ph.D. em política da Educação pela Universidade de Stanford, com Mestrados em Ciência Política (UFMG) e em Educação (Stanford). Foi professor nas universidades: Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP; Universidade de Campinas - Unicamp; Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e "Visiting Scholar" da School of Education e Stanford University. Atualmente é coordenador da Rede Global de Educação para a Paz, rede de indivíduos ativos em projetos relevantes voltados à promoção de uma Cultura de Paz, através da educação e dos processos de produção de conhecimento.

Claudia Costin

Tem 48 anos e é formada em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, onde também cursou mestrado e doutorado. No Governo Federal, ocupou os cargos de Secretária de Planejamento e Avaliação do Ministério da Economia; Secretária de Previdência Complementar no Ministério da Previdência; Ministra da Administração Federal e Reforma do Estado. Foi também, por dois anos, Gerente de Políticas Públicas e Combate à Pobreza para a América Latina no Banco Mundial. Presidiu a Câmara Brasileira de Investidores em Energia Elétrica até assumir a pasta da Cultura, em janeiro de 2003.

Euclides Marchi

Doutor em História Social, Professor Sênior dos Cursos de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná, pesquisador na área de História da Igreja, Religião e Religiosidades, com vários artigos publicados e revistas especializadas.

Farzam Arbab

Farzam Arbab nasceu em Teerã e educou-se nos Estados Unidos da América, formando-se na Universidade Amherst em 1964, fazendo seu doutorado em física teórica na Universidade de Berkeley em 1968. Em 1969 mudou-se com sua família para a Colômbia para trabalhar no University Development Program (Programa de Desenvolvimento da Universidade ) da Fundação Rockefeller, a fim de fortalecer o Departamento de Física da Universidad del Valle. Iniciou nesta universidade estudos sobre o relacionamento entre ciência, tecnologia e política educacional, e seus efeitos sobre o desenvolvimento, fundando com um grupo de colegas a Fundación para la Aplicación y Enseñanza de las Ciências (Fundação para a Aplicação e Ensino da Ciência). Esta organização ainda funciona como um bem sucedido programa de desenvolvimento na Colômbia e conquistou uma reputação internacional quanto a sua aplicação de princípios espirituais na educação e desenvolvimento. Em 1993, dr. Arbab foi eleito para o corpo administrativo internacional da Fé Bahá'í, em Haifa, Israel, onde presta atualmente seus serviços.

Guacira Cesar de Oliveira

Socióloga, fundadora e Diretora colegiada do Centro de Estudos Feministas e Assessoria, integra a Coordenação Executiva Nacional da Articulação de Mulheres Brasileiras e a Articulação Feminista Marcosur.

Joaquim de Almeida Mendes

Mestre em Geofísica Nuclear, PPPG/Universidade Federal da Bahia e doutorado em andamento em administração universitária pela European University. Fez especialização em Administração Universitária - Fundação Getúlio Vargas - UFSC. UQ - (Quebec) em 1985 e especialização em Estudos de Impacto Ambiental e Relatórios de Impacto em Meio Ambiente - CRA - RIOCELL - COPENER - 1990. Em 2003, foi Pró-Reitor de Administração, Vice-Reitor Pró-Tempore da Universidade do Estado da Bahia, coordenador do Colegiado de Desenho Industrial, Reitor da Universidade do Estado da Bahia e Diretor presidente e sócio da UNYAHANA.

Maria de Lourdes Siqueira

Professora de Antropologia e Pesquisadora na Universidade Federal da Bahia. Doutora em Antropologia Social e Etnologia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales EHESS - Paris, França, é Diretora da Associação Cultural Ilê Aiyê, entidade que tem por objetivo a promoção da consciência negra, identidade étnico-cultural e o combate ao racismo. Além disso, é Coordenadora Geral do Núcleo de Tecnologia Educacional do Instituto Educacional Steve Biko - Projetos de Educação para o combate ao racismo, formação da consciência negra e ingresso de negros na Universidade. Fez Pós-Doutorado na Universidade de Londres - SOAS e Universidade da África do Sul - UNISA.

Mônica de Oliveira Nunes

Doutora em Antropologia pela Université de Montréal, U.M. Canadá. Mestre em Saúde Coletiva na Universidade Federal da Bahia, UFBA, Bahia, Brasil com especialização em Residência em Psiquiatria na Universidade Federal da Bahia. Atualmente é Professora Adjunta da UFBA, e Vice-Coordenadora da Pós-Graduação. Sua linha de pesquisa é " As diferentes faces de desigualdade em saúde: iniqüidade, discriminação e exclusão".

Roberto Crema

Psicólogo e Antropólogo do Colégio Internacional dos Terapeutas, analista transacional didata, criador do enfoque da síntese transacional, consultor em abordagem holística e ecologia do Ser, implementador da Formação Holística de Base e orientador da Formação em Psicologia Transpessoal da Universidade Holística Internacional de Brasília, diretor geral da Associação Holística Internacional - HOLOS BRASIL, membro honorário da Associação Luso Brasileira de Transpessoal-ALUBRAT, Fellowship da Findhorn Foundation, Escócia, vice-reitor da REDE UNIPAZ. É autor de diversos livros entre os quais Abertos de Conhecimento, com Pierre Weil e Ubiratan D'Ambrosio (Editora Summus); Antigos e Novos Terapeutas - Abordagem Transdisciplinar em Terapia (Editora Vozes); Normose, a Patologia da Normalidade, com Jean-Yves Leloup e Pierre Weil (Editora Verus, no prelo).

Rosângela Azevedo Corrêa

Graduada em História, Mestre e Doutora em Antropologia Social, é Professora na Área de Educação Ambiental e Ecologia Humana na Faculdade de Educação na Universidade de Brasília, é também Professora no UniCeub de Sociologia, representante no Distrito Federal do Instituto de Educação para a Paz e os Direitos Humanos. Publicação: Cultura e Educação sobre a Paz, em: Cultura de Paz: Estratégias, Mapas e Bússolas, Salvador, BA, no Instituto de Educação para a Paz e Direitos Humanos, em 2003.


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